Vivemos tempos de grandes mudanças e de enormes desafios, tempos da Quarta Revolução Industrial.
A cada dia, o engenho humano se desenvolve e as atividades econômicas se fortalecem. Por mais que as tecnologias busquem a excelência, os riscos aumentam.
Tanto que o Direito também evoluiu substancialmente e hoje já se tem por certo, como um direito fundamental, o de ninguém ser vítima de um dano, algo muito maior e mais profundo do que o antigo neminem laedere.
O Direito atual trabalha até mesmo com a ideia de responsabilidade civil pela expectativa de dano potencial.
Para muito além da responsabilidade civil objetiva, essa ideia dispõe que o potencial de dano que alguém pode causar a outrem é, dependendo das particularidades do caso concreto, o bastante para se cogitar em dever de reparação.
Algo fantástico e, talvez, essencial para o desenvolvimento da cidadania.
Já não se trata de se aceitar ou não os chamados punitive damages, mas de tentar assegurar, de um modo ou de outro, o direito que todo o mundo tem de não ser vítima de dano.
Vanguardista? Sem dúvida, mas algo que tem que estar presente em toda e qualquer discussão séria a respeito da responsabilidade civil, seus desdobramentos e sua invulgar dimensão social.
Muito aproveita atentar que antes mesmo dessa visão mais recente e inovadora, o anseio pela necessidade de compensação justa do dano sofrido pela vítima e punição exemplar do seu causador já se fazia notar pelo princípio da reparação civil integral, presente em quase todos os ordenamentos jurídicos do mundo.
No caso específico do Brasil, o princípio se encontra taxativamente previsto no art. 944 do Código Civil e implicitamente presente no inciso V do art. 5º da Constituição Federal, que assegura a reparação civil ampla e integral.
Considerando que o art. 5º trata dos direitos e garantias fundamentais e é marcado com o selo de cláusula pétrea, pode-se dizer que no Brasil a reparação civil integral é, mais do que um princípio de natureza civil, um direito fundamental constitucional, ancorado na cidadania.
Por isso, inaceitável a existência, nos dias de hoje, salvo em casos muito específicos, absolutamente especiais e extraordinários, normas, regras, cláusulas, enfim, qualquer espécie normativa, que tenha por objetivo a limitação de responsabilidade do causador do dano.
Toda limitação de responsabilidade do causador de um dano é o esvaziamento da direito da vítima, do ofendido.
Acrescento, com fundamento no Direito Natural e na própria ordem moral, que a limitação de responsabilidade aplicada em benefício do autor do ato ilícito ofende a dignidade da vítima e do Direito como um todo.
Não há superposição do conceito de Justiça ao de Direito se este é usado para beneficiar quem causa dano indevido à outrem. O Direito se torna claudicante, deformado, inimigo da Justiça.
Isso porque quem causa dano tem que arcar integralmente com os resultados e efeitos de sua conduta inidônea, nada aquém, talvez tudo além.
Por isso, a insurgência, quase com ares de uma Cruzada Santa, às normas legais e/ou contratuais limitadoras de responsabilidade.
Veja-se o caso da Convenção de Montreal, que bisou a de Varsóvia. Prevê a limitação de responsabilidade do transportador aéreo internacional de cargas em casos de faltas e avarias.
A norma é injusta e intolerável, para dizer o certo, e anacrônica, para dizer o mínimo!
Quando do nascimento da Convenção de Montreal – início do século passado -, da qual a de Montreal se valeu substancialmente, a indústria da navegação aérea se encontrava em gestação, os riscos eram demasiadamente elevados e mecanismos jurídicos de proteção se faziam necessários.
Hoje, a indústria é forte e saudável, tanto que as principais construtoras de aviões, Boeing e Airbus, trabalham com o chamado “risco zero” e a navegação aérea cada vez mais segura. Ora, em sendo assim, qual a razão de ser da antiga proteção legal, da limitação de responsabilidade?
Justamente por conta das atuais tecnologias, as faltas e avarias apuradas nas cargas confiadas para transportes nada mais são do que vulgares desídias operacionais, incúrias administrativas, falhas empresariais inescusáveis das transportadoras aéreas. Merecem, então, benefícios normativos como os de limitações de suas responsabilidades? Isso é justo e moralmente ordenado em relação aos donos das cargas ou seus seguradores?
Afirma-se, aqui, com categórica convicção: não, não é justo nem mesmo tolerável aos olhos da moral!
A preocupação da renomada Universidade de Salamanca em estudar “Sociedad del risgo, nuevas amenazas y derechos fundamentales” há que passar necessariamente pelo princípio da reparação integral e o repúdio ao conceito de limitação de responsabilidade, mesmo a de natureza tarifada.
É bem verdade que, talvez, em alguns poucos casos, quando confrontada com outros importantes postulados do Direito, como o da teoria da preservação da empresa, talvez a limitação possa ser admitida, mas sempre em caráter excepcional e diante de forte justificativa.
Mas, feita a exceção das exceções, o Direito tem que primar pela reparação civil integral sob pena de intolerável grau de injustiça, de acentuado formalismo e de gravíssimo prejuízo à vítima.
Aliás, é a vítima que tem que ser o alvo de todas atenções da hodierna responsabilidade civil, não o causador do dano. Na proteção máxima da vítima que reside o bem social e as funções restauradora, reequilibradora, principiológica e edificante do Direito, braço concreto da Justiça.
Usal (802 años): Decíamos ayer. Diremos mañana.
BIBLIOGRAFIA
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