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O INDIGENATO E A EVANGELIZAÇÃO

Agenda 05/02/2020 às 08:26

O ARTIGO DISCUTE SOBRE A EVANGELIZAÇÃO DE ÍNDIOS NO BRASIL, NO PERÍODO DOS JESUÍTAS, E NOS DIAS ATUAIS.

O INDIGENATO E A EVANGELIZAÇÃO

Rogério Tadeu Romano

I – A PRESENÇA DE MISSÕES RELIGIOSAS NAS RESERVAS INDÍGENAS

A presença das missões religiosas nas reservas, com o objetivo de evangelizar os índios, levando-os a perder a sua identidade cultural própria é inconstitucional. A afirmação foi do presidente da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Roraima, Antônio Oneildo Ferreira. Ele diz que a terra, se retirada dos índios, pode ser devolvida, mas a sua identidade cultural não. Essa observação fará parte do relatório da OAB sobre a questão da Raposa/Serra do Sol, como se lê de "Evangelização de índios leva à aculturação", exposta, em 17 de janeiro de 2004, na Folha de Rio Branco.

Conforme o entendimento do presidente da Ordem, incutir uma crença religiosa a um povo indígena fere o artigo 231 da Constituição Federal, segundo o qual deve ser resguardado o direito à organização social, os costumes, as línguas, as crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras. "Logo, querer catequizar os índios é uma forma de acabar com as sua estrutura social própria e isso é inconstitucional", afirmou.

A presença das missões religiosas nas reservas, com o objetivo de evangelizar os índios, levando-os a perder a sua identidade cultural própria é inconstitucional. A terra, se retirada dos índios, pode ser devolvida, mas a sua identidade cultural não.

II - A CATEQUIZAÇÃO PELOS JESUÍTAS

A história nos traz a lição de que o trabalho de catequização e conversão do gentio ao cristianismo, motivo formal da vinda dos jesuítas para a Colônia brasileira, destinava-se à transformação do indígena em “homem civilizado”, segundo os padrões culturais e sociais dos países europeus do século XVI, e à subsequente formação de uma “nova sociedade”. Essa preocupação com a transformação do indígena em homem civilizado justifica-se pela necessidade em incorporar o índio ao mundo burguês, à “nova relação social” e ao “novo modo de produção”. Desse modo, havia uma preocupação em inculcar no índio o hábito do trabalho, pelo produtivo, em detrimento ao ócio e ao improdutivo. A atuação jesuítica na colônia brasileira pode ser dividida em duas fases distintas: a primeira fase, considerando-se o primeiro século de atuação dos padres jesuítas, foi a de adaptação e construção de seu trabalho de catequese e conversão do índio aos costumes dos brancos; já a segunda fase, o segundo século de atuação dos jesuítas, foi de grande desenvolvimento e extensão do sistema educacional implantado no primeiro período.

O Ratio Atque Institutio Studiorum Societatis Jesus , mais conhecido pela denominação de Ratio Studiorum, foi o método de ensino, que estabelecia o currículo, a orientação e a administração do sistema educacional a ser seguido, instituído por Inácio de Loyola para direcionar todas as ações educacionais dos padres jesuítas em suas atividades educacionais, tanto na colônia quanto na metrópole, ou seja, em qualquer localidade onde os jesuítas desempenhassem suas atividades.

A atuação jesuítica na Colônia pode ser compreendida em duas fases distintas: a primeira corresponde ao período de adaptação e construção de seu trabalho de catequese e conversão do índio aos costumes dos brancos. Já a segunda fase, que corresponde ao segundo século de sua atuação, foi um período de grande desenvolvimento do sistema educacional implantado no primeiro período, ou seja, foi a fase de consolidação de seu projeto educacional. Inicialmente os padres jesuítas dedicaram-se à catequização.

Sabe-se que os jesuítas foram expulsos do Brasil.

Pode-se supor que a expulsão da Companhia de Jesus e a destruição de sua organização educacional são de duas ordens: • política – os jesuítas representavam um empecilho aos interesses do Estado Moderno, além de ser detentora de grande poder econômico, cobiçado pelo Estado; • educacional – a necessidade da educação formar um novo homem – o comerciante e o homem burguês, e não mais o homem cristão –, pois os princípios liberais e o movimento Iluminista trazem consigo novos ideais e uma nova filosofia de vida.

III – A LIGAÇÃO DOS ÍNDIOS À TERRA : O INDIGENATO

O que liga os índios à terra é o conjunto de fatores "previamente elencados pela constituição" que dá a ele o direito de acesso e permanência em determinadas faixas de terras, resguardados pela União.

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Antes de a terra ser resguardada, tem que se resguardar a organização social, os costumes, as línguas e as tradições dos povos indígenas. Porque falar de religião para os povos indígenas é mais inconstitucional, ilegal e agressivo do que suprimir o direito destes a terra.

Sabe-se que a terra é a fonte de sobrevivência dos índios. Daí porque a Constituição de 1988 ter estipulado quatro condições para que se qualifique a noção de terras tradicionalmente ocupadas: a) serem habitadas com caráter permanente; b) serem utilizadas para atividades produtivas; c) serem imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar do indigenato; d) serem necessárias à reprodução física e cultural, segundo os seus usos, costumes e tradições.

Observo que a expressão “tradicionalmente” que é atribuída às terras diz respeito ao modus vivendi dos índios, aos seus usos, costumes e tradições e não a ocupação temporal, seja memorial ou histórica.

O que é indigenato?

O indigenato é tradicional instituição jurídica que deita raízes nos velhos tempos da Colônia quando o Alvará de 1º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, às terras outorgadas a particulares seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas.

Terras tradicionalmente ocupadas não revela uma relação temporal. Se formos ao Alvará de 1º de abril de 1680 que reconhecia aos índios as terras onde estão tal qual as terras que ocupavam no sertão, ver-se-á que a expressão ocupadas tradicionalmente não significa ocupação imemorial. Não se trata de posse ou de prescrição imemorial. Não quer dizer terras imemorialmente ocupadas, ou seja, terras que eles estariam ocupando desde épocas remotas que já se perderam na memória. Como bem alertou José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, 5º edição, pág. 716) o tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os ´índios ocuparem e utilizarem as terra e ao modo tradicional de produção, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra.

O indigenato não se confunde com a ocupação, portanto, com a posse civil. O indigenato é fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. Essa a lição obtida de João Mendes Júnior é observada por José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, RT, 5ª edição, pág. 717). Esse desenvolvimento é feito sobre a tese de que as terras de índios, congenitamente apropriadas, não podem ser consideradas nem como res de ninguém, nem como res derelictae. Não é uma simples posse, mas um reconhecido direito originário e preliminarmente destinado ao indígena.

Sabe-se que o artigo 231 da Constituição Federal reconhece o direito ao usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras que tradicionalmente ocupam. Tal usufruto é intransferível como lembra Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1, de 1969, t.IV/456 e 457).

Tal a tradição do direito brasileiro, exposto na Lei nº 601/1850, no Decreto Regulamentar nº 1318, de 1854, que fez respeitar o direito originário dos índios às terras de ocupação tradicional.

Não está em jogo, no tema da posse indígena, como revelou o Ministro Victor Nunes Leal (voto proferido nos autos do recurso extraordinário nº 44.585 – MT, julgado a 28.6.61), um conceito de posse, nem de domínio, no sentido civilista dos vocábulos. Trata-se de um habitat de um povo. Assim, a Constituição Federal determina que num verdadeiro parque indígena, com todas as suas características naturais primitivas, possam permanecer os índios vivendo naquele território.

O parágrafo quinto daquele artigo 231 consagrou ainda o princípio da irremovibilidade dos índios de suas terras.

Toda e qualquer experiência que seja adotada deve primar pela preservação da defesa da sua cultura e tradições. Defende-se a atuação do MPF (Ministério Público Federal), no sentido de coibir a aculturação dos povos indígenas pelas missões religiosas, seja da Igreja Católica ou não. Assim os religiosos devem estar lá, mas sem externar a sua opção religiosa e, muito menos, impô-la.

Explica melhor José Afonso da Silva, a respeito das terras indígenas:

Quando a Constituição declara que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios se destinam à sua posse permanente, isso não significa um pressuposto do passado para uma ocupação efetiva, mas, especialmente, uma garantia para o futuro, no sentido de que essas terras inalienáveis e indisponíveis são destinadas, para sempre, ao seu habitat. Se assim se destinam (destinar significa apontar para o futuro) à posse permanente é porque um direito sobre elas preexiste à posse mesma, e é o direito originário já mencionado” (Curso de direito constitucional positivo, 5º edição).

É com esse sentido, preso a esse direito congênito (e assim voltada para atos de violação da posse indígena ocorridos no passado), que deve ser compreendido o § 6º do art. 231 da Constituição, ao fulminar de nulidade os atos que tenham por ocupação a posse de terras indígenas.

A linha que não pode ser esquecida, a bem da história do Brasil, que tem toda uma dívida para com a causa indígena é a sua proteção de suas terras e do direito do índio à posse de suas terras, direito inalienável e irrenunciável, de modo que não cabe falar em proteção possessória de particular em terra reconhecida como de ocupação indígena.

IV – DA DOUTRINA MILITAR AO GOVERNO ATUAL

No passado, havia uma doutrina militar ultrapassada segundo a qual povos indígenas e suas terras representam uma ameaça para a soberania nacional e a integridade do território. Para esse entendimento era preciso com relação à Amazônia, “integrar para não entregar”.

Essa visão, desprovida de base factual, privilegia a mal denominada integração do índio à sociedade, ou seja, sua aculturação.

O atual governo já se negou a fazer novas demarcações.

Diante disso, preocupa, sobremaneira, a escolha para a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai de um missionário evangélico da organização norte-americana Novas Tribos (rebatizada Ethnos360), com a missão de converter à fé cristã 2.500 povos aborígenes em dezenas de países.

Isso é absolutamente inadmissível com relação à política indígena trazida pela Constituição-cidadã de 1988.

Trata-se a solução escolhida de nocivo confronto às soluções de Rondon para o indigenato, que inspiraram a criação da FUNAI onde se resguarda o isolamento cultural dos índios.

De toda sorte, repita-se que a conversão do índio aos costumes dos brancos, como meta, ainda que de desenvolvimento, é inconstitucional.

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

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