A CONDENAÇÃO DE PARLAMENTAR E A PERDA DE MANDATO
Rogério Tadeu Romano
I - OS FATOS
Ordenada pelo TSE, a cassação de Selma Arruda (Podemos-MT) divide o Senado, cuja cúpula busca uma saída para o impasse.
A senadora foi cassada por abuso de poder econômico e caixa dois na campanha eleitoral de 2018. O TSE determinou a realização de nova eleição, que foi marcada para 26 de abril. No fim de janeiro, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, determinou que o terceiro colocado na disputa para o Senado em Mato Grosso assumisse o mandato assim que o Senado declarasse que o cargo está vago, mas isso não aconteceu.
Embora o Senado discuta a possibilidade de manter Selma Arruda (Podemos MT) no mandato, juristas afirmam que cabe à Casa apenas cumprir a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de cassar o mandato da parlamentar.
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), disse que tem dúvidas se o cumprimento da decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a cassação da senadora Selma Arruda (Podemos) é obrigatório por parte do parlamento. O senador disse que vai levar o caso para a mesa diretora e admitiu que os pares podem entender que a decisão do TSE não foi correta, mas garantiu que não sabe, ainda, como proceder se isso, de fato, ocorrer.
“Eu também tenho dúvidas, porque no último caso concreto [envolvendo a cassação do senador João Capeberibe, em 2005], a Mesa manteve a decisão. Se acontecer a decisão de a votação da Mesa não seguir a decisão do Tribunal, será o primeiro fato concreto em relação a isso”, disse aos jornalistas.
II - A CASSAÇÃO DE PARLAMENTAR
Discute-se a questão da cassação diante da condenação penal de parlamentar.
Cassação é a decretação da perda de mandato, por ter o seu titular incorrido em falta funcional definida em lei e punida com esta sanção. Extinção do mandato é o perecimento do mandato pela ocorrência de fato ou ato que torne automaticamente inexistente a investidura eletiva, tal como a morte, a renúncia, por exemplo.
Os casos de cassação de mandato de Parlamentar estão previstos no artigo 55, I, II e VI, que dependem de decisão da Câmara dos Deputados, no caso de Deputado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante a provocação da respectiva Mesa ou de Partido Político representado no Congresso Nacional assegurada a ampla defesa. Aqui a decisão é constitutiva. Será o caso da infração a qualquer das proibições estabelecidas no artigo 54 da Constituição; de procedimento incompatível com o decoro parlamentar e ainda, no caso em estudo, quando sofrer o Deputado Federal condenação criminal em sentença transitada em julgado.
Observo a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho(Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. 2, 2/57, 1991, Saraiva), para quem o procedimento previsto reclama provocação da respectiva Mesa, ou de partido político representado no Congresso Nacional. Assim importa em contraditório que assegure ao interessado uma ampla defesa, que redunda em decisão a ser tomada pela casa respectiva, numa votação secreta, que só determina a perda do mandato se a tanto for favorável a maioria absoluta dos integrantes da Câmara. Assim a Casa julga a conduta do interessado, podendo recusar a perda do mandato se entender essa conduta justificada, no caso concreto.
Assim há quem entenda que a cassação do parlamentar é matéria de reserva do Poder Legislativo.
Os casos do artigo 55, III, IV e V, são de simples extinção do mandato, de modo que a declaração pela Mesa da perda deste é meramente declaratória, envolvendo o mero reconhecimento da ocorrência do fato.
Veja-se que a hipótese não é de mera decisão declaratória, mas constitutiva, pois envolve cassação e não simples extinção do mandato, que incide nas hipóteses do Parlamentar deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada; que perder ou tiver suspensos os direitos políticos; quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos na Lei.
No passado, no julgamento do Recurso Extraordinário 179.502, o Ministro Moreira Alves entendeu que, enquanto estiver no exercício do mandato, a condenação criminal, por si só, e ainda que transitada em julgado, não implica a suspensão dos direitos políticos, só ocorrendo tal se a perda do mandato vier a ser decretada pela Casa a que o parlamentar pertencer.
Naquela decisão, em voto lapidar, o Ministro Marco Aurélio, diante do disposto do artigo 55, VI(Perderá o mandato o Deputado ou Senador, que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado), perguntava: Neste caso, é automática a perda do mandato? È uma perda de mandato simplesmente homologada pela Mesa da Casa? Não.
Prosseguia o Ministro Marco Aurélio, pedindo que se atentasse que o processo-crime depende da licença da Casa a que esteja integrado o parlamentar. Concedida, responde ele a processo como cidadão comum. Era o cenário, observando-se a redação que foi trazida ao artigo 53 da Constituição Federal pela Emenda 35.
Nesse raciocínio aplicar-se-ia como efeito político da condenação penal a perda de mandato eletivo nas hipóteses previstas no artigo 92, I, ¨a¨ e ¨b¨, do Código Penal.
Sabe-se que o mandato eletivo é o poder político outorgado pelo povo a um cidadão por meio de voto e com prazo determinado, para que governe ou o represente nas Casas Legislativas.
A perda do mandado, como efeito da sentença penal condenatória, deve ser justificada pelo juiz na sentença condenatória, exigindo-se os mesmos requisitos necessários à aplicação do efeito da perda do cargo ou função pública.
Na redação dada ao artigo 92, I, do Código Penal pela Lei 9.268, de 1º de abril de 1996, é prevista a perda do mandato eletivo quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação do dever para com a Administração Pública.
O juiz deve de forma motivada decretar a perda do mandato eletivo, entendendo-se que havendo abuso do poder ou violação de dever é cabível o efeito previsto no artigo 92, I, do Código Penal.
A segunda hipótese da perda de mandato eletivo ocorre no caso de condenação transitada em julgado ¨quando for aplicada pena privativa de liberdade com tempo superior a quatro anos, nos demais casos¨.
Mas, o Supremo Tribunal Federal é o supremo guardião da Constituição Federal, do que se lê do artigo 102 da Constituição Federal.
Relembro a lição do Ministro Celso de Mello, externada no julgamento daquele RE 179.602, no sentido de que a norma inscrita no artigo 55, § 2º, da Constituição(Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado pelo Congresso Nacional, assegurada ampla defesa), enquanto preceito de direito singular, encerra garantia constitucional destinada a preservar, salvo deliberação em contrário da própria instituição parlamentar, a intangibilidade do mandato titularizado pelo membro do Congresso Nacional, impedindo que uma decisão emanada do Poder Judiciário, um outro poder, implique a suspensão dos diretos políticos e a perda de mandato.
Evitar-se-ia, com isso, qualquer ingerência de outro Poder na esfera de atuação institucional do Legislativo. Isso porque se trata de prerrogativa que é instituída em favor dos membros do Congresso Nacional, e que é consagrada pela Constituição, em atendimento ao postulado da separação de poderes e de fazer respeitar a independência político-jurídica dos membros do Congresso Nacional.
Para o Ministro Lewandowski a cassação do mandato é um assunto político e desta forma a decisão caberia à Câmara dos Deputados.
A Ministra Rosa Weber acompanhou o Ministro Lewandoswki, para quem entre o texto do Código Penal e o da Constituição prevaleceria esta. O Ministro Dias Toffoli destaca a representatividade popular do parlamentar para justificar sua posição. A Ministra Cármen Lúcia acompanhou o voto do revisor, cabendo ao Legislativo a responsabilidade para a cassação.
No entanto, o Ministro Luiz Fux, que seguiu o Ministro Relator, Joaquim Barbosa, pensa que é cabível a cassação do mandato por efeito da condenação do Judiciário.
III - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONCORDÂNCIA PRÁTICA
Contundente a posição do Ministro Gilmar Mendes para quem uma norma que impede a candidatura de condenados não poderia conviver com eventual decisão do Supremo Tribunal Federal de permitir a continuação do exercício do mandato. E alertou que teríamos uma situação incongruente: um parlamentar cumprindo expediente no Congresso Nacional e à noite, recolhendo-se a estabelecimento prisional. Para ele, a condenação criminal implicaria também em improbidade, que seria motivo suficiente para a decretação da perda de mandato.
Naquele julgamento da AP 470 o ministro Gilmar Mendes, em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes atentou para a aparente antinomia do artigo 55, CRFB. Como solução invocou o princípio da concordância prática:
“Os bens constitucionalmente protegidos devem ser tratados de forma que um não anule a validade de outro. Ao ocorrer algum conflito, a ponderação de valores desses bens não pode sacrificar a validade de um em detrimento do outro. É preciso, nesses casos, elaborar um exercício de optimização, de harmonização prática, e estabelecer limites aos bens conflitantes, de modo que ambos consigam alcançar a melhor efetividade possível. Essa ponderação deve ser feita no caso concreto e com base no princípio da proporcionalidade. (HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Heidelberg: C. F. Müller, 1999, p.28). Por essa razão, a solução que se afigura constitucionalmente adequada deve evitar sacrifícios de bens jurídicos de elevada estatura, tais como a isonomia, o princípio republicano, a moralidade e a probidade no trato dos negócios públicos, bem como não deve permitir que normas constitucionais restem esvaziadas em seu conteúdo.”
O Ministro, então, considerou que por meio de interpretação lógico-sistemática que evite contradições na aplicação da Constituição, nos casos de condenação criminal transitada em julgado por crimes nos quais a improbidade administrativa esteja ínsita nos respectivos tipos penais, o Poder Judiciário poderá aplicar o art. 15, III, c/c o art. 55, IV, e § 3º, culminando com a perda do mandato em razão da suspensão dos direitos políticos, a qual deve apenas ser declarada pela Casa legislativa. O mesmo ocorrerá quando a condenação for por um crime grave, sendo o parâmetro nesse caso o artigo 92 do Código Penal. Arguiu que:
“Reforça a minha convicção de que a interpretação ora proposta é a que melhor concilia e harmoniza os dispositivos e valores constitucionais em conflito, o fato de o Congresso Nacional ter aprovado nova redação do art. 92, do Código Penal, por meio da promulgação da Lei 9.268/96, que assim dispõe:“Art. 92. São também efeitos da condenação:I – a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo: 37 a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública; b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos”.
Note-se que essa redação do Código Penal constitui interpretação da Constituição levada a efeito pelo Poder Legislativo. Toda criação de Direito, ensinava Kelsen, é também aplicação do Direito. O legislador interpretou a Constituição e a aplicou ao aprovar essa nova redação do art. 92, do CP, a qual faz uma interpretação compreensiva do texto constitucional, que coincide com aquela que proponho neste voto.
Concluiu que:
“Desse modo, garante-se efetividade ao princípio republicano, ao da moralidade pública e ao da isonomia, bem como às decisões do Supremo Tribunal Federal; ao mesmo tempo, preserva-se amplo campo de aplicação à norma contida no art. 55, VI, e § 2º, da Constituição, tendo em vista que as Casas legislativas deliberarão sobre a perda do mandato em todas as hipóteses de condenação criminal transitadas em julgado decorrentes de crime outros que não aqueles de maior potencial ofensivo ou que contenham em seus respectivos tipos a improbidade administrativa da conduta, em todos os casos com fundamentação expressa na decisão condenatória. A interpretação proposta neste voto afirma que, nos casos mencionados (improbidade administrativa contida no tipo penal e condenação à pena privativa de liberdade superior a quatro anos), a suspensão dos direitos políticos poderá ser decretada pelo Judiciário com a consequente perda do mandato eletivo. Por outro lado, consoante exposto acima, remanesce com as Casas legislativas o poder de decidir sobre a perda do mandato em diversas outras hipóteses de condenação criminal, não abarcadas pela interpretação proposta, especialmente quanto aos crimes de menor potencial ofensivo.”
Aliás, em seu último voto no Supremo Tribunal Federal, na Ação Penal 470, decidiu o Ministro Cezar Peluso pela perda de mandato eletivo de deputado federal, condenado por crimes contra a Administração Pública.
Como que antecipando o seu voto, o Ministro Celso de Mello discorreu, no julgamento, que o Congresso Nacional não pode interferir nos efeitos que resultam de uma condenação penal transitada em julgado proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
Veja-se que a hipótese não é de mera decisão declaratória, mas constitutiva, pois envolve cassação e não simples extinção do mandato, que incide nas hipóteses do Parlamentar deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada; que perder ou tiver suspensos os direitos políticos; quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos na Lei.
IV - CONCLUSÕES
A decisão da Justiça Eleitoral tem que ser cumprida. O caso do deputado Wilson Santiago (PTB-PB) é diferente. Segundo entendimento do STF fixado em 2017, cabe ao Congresso confirmar ou revogar medidas restritivas impostas pelo Judiciário que afetem o exercício do mandato parlamentar.
A decisão da Corte eleitoral deve ser executada de imediato.
Isso é um cumprimento formal, isso é para que o Senado comunique e tome providências. E não é só nesse caso. Nem se coloca essa hipótese (de não ser cumprida a decisão do TSE).
No caso em tela, repita-se, já há condenação que deve ser respeitada pelo Poder Legislativo.
Caso o Senado Federal entenda em não respeitar a decisão final da Justiça Eleitoral, será caso de representação ao procurador-Geral da República para ajuizar medida cabível(ADPF) junto ao Supremo Tribunal Federal.