INTRODUÇÃO
A perplexidade causada ao estudioso do Direito diante das variantes teóricas pode não significar um grave problema para a compreensão do fenômeno jurídico. A atenção conferida à multiplicidade de correntes teóricas sem um conhecimento dos fundamentos da ciência jurídica é que podem ocasionar incertezas.
Entender a historicidade, não apenas da ordem jurídica como de sua teoria, com base nos seus desdobramentos evolutivos, significa um caminho seguro para a compreensão do fenômeno jurídico.
A proposta aqui apresentada segue essa compreensão. Como será abordado, o modelo positivista do Direito não deve ser simplesmente desconsiderado em nome de pretensas inovações epistemológicas. Não se nega o valor de novas abordagens sobre o Direito, entretanto, não se defende, como será visto, uma ruptura com uma tradição científica que logrou alçar o Direito a um campo autônomo do saber científico social.
No primeiro plano, será abordado o campo objetivo do Direito, como forma de situá-lo concretamente, não apartado de sua dimensão racional quanto à sua elaboração normativa. Noutro lugar, o conhecimento sobre o Direito, sua teoria e sua dimensão unitária. Assim sendo, pretende-se apresentar uma discussão sobre as perspectivas que possam ser seguidas para o estudioso do Direito, a partir das referências apresentadas, com respeito a uma diversidade possível sem corromper a unidade da ciência jurídica.
1. O CAMPO OBJETIVO DO DIREITO
Antes de passarmos à discussão sobre a teoria do Direito, devemos atentar, em apertada síntese, para algumas considerações sobre a sua posição dentro da sociedade. Há o reconhecimento de que o Direito é uma construção social (GREEN, 2012, p. XV), mas, em seu aspecto normativo, não tem seus limites rigorosamente determinados pela prática social (KELSEN, 1998, p.79)[1] . Quando se afirma que o direito tem essa dimensão, não há que se admitir um reducionismo às ações humanas apenas reguladas por normas[2]. Seria negar que as normas são concebidas para à prática social, e que esta seja incapaz de induzir a construção do Direito.
E quando se atina à dimensão construtiva do Direito, sem atém à intersecção entre realidade e conhecimento da mesma, que permite a construção normativa de uma ordem jurídica, não reduzida apenas ao social, pois que, se o direito é dependente do poder para impor-se, o aspecto político o legitima por meio de instituições (MAcCORMICK, 2008, p. 17), no âmbito do que se denomina Estado de Direito.
De outra parte, as relações de poder – que exigem ação política – e as relações meramente sociais, não se confundem. Quando se afirma que “o direito nasce do fato e ao fato se destina, obedecendo sempre a certas medidas de valor substanciadas na norma” (REALE, 1998, p. 201), limita-se, de certa forma, o âmbito do Direito. Essa tridimensionalidade exigida por esse autor para a definição do direito, já não cobre de modo suficiente a atual situação da prática do direito, que entre nós, já supõe a tópica e a jurisprudência como dimensões de criação do direito, além de outras vertentes de relevo, em termos teóricos, que buscam definir o fenômeno jurídico.
Assim sendo, esteja a localização do Direito associado apenas a um sistema social mais amplo, ou como consequência de decisão política que implica o Poder do Estado na sua elaboração ou destituição[3], ou que, o Direito mesmo, imanente ao Estado é distinto deste, ou ainda, que o Direito, enquanto conjunto de normas coercitivas que regulam as condutas[4], esteja a par de outros sistemas como o econômico, não se prescinde neste espaço da sua dimensão como meio de organização da sociedade política que depende das instituições públicas ou privadas para sua realização. Resta saber o sentido teórico que se dá ao conhecimento sobre o Direito enquanto conjunto de normas.
2. O CONHECIMENTO SOBRE O DIREITO
Inegavelmente, o Direito teoricamente construído[5] ainda é elaborado, em maior grau, em torno do Direito posto – o Direito positivo, ainda que as fontes tenham ganhado uma dinamicidade com a presença, colateral à lei, dos precedentes (MARINONI, 2010)[6], e às especulações, fora da chamada dogmática jurídica, que são cabíveis à Filosofia, à Sociologia, e outras áreas, sem a preocupação com algum rigor sobre a interpretação das normas visando sua aplicabilidade.
Portanto, nesse aspecto, o Direito não perdeu a sua essência em torno dos enunciados normativos veiculados pela lei – em sentido amplo [7]. Algumas correções não normativas são pertinentes ao campo da ética, podendo valer, de modo contingente, face ao Direito Positivo. Não há como subverter o objeto à teoria. Esta pode influir nalgumas direções, acompanhar mudanças e sugerir alterações legislativas. No entanto, quanto à força normativa do Direito, consideradas as suas especificações contidas nos enunciados, em regra, proposicionais/mandamentais, não há como manter um entendimento consentâneo em respeito aos pontos de partidas para a construção teórica do próprio Direito.
Os diálogos em torno da objetividade do Direito seriam impraticáveis. As discussões racionais seriam impossíveis em torno de um objeto subvertido a um determinado campo do saber que convenha a um jurista/economista, a um jurista/filósofo, ou a jurista/sociólogo, etc. As tentativas de refundar uma ciência fora dos paradigmas construídos por Kelsen (GOYARD-FABRE, 2002), talvez não lograram êxito por negar a ideia de um saber objetivo que se aproxime de uma apreciação teórica consistente e coerente para descrição da ordem jurídica. Embora tenhamos que reconhecer brilhantes contribuições para o enriquecimento do debate em torno dos fundamentos teóricos e da aplicabilidade do Direito[8], não se ajusta à razoabilidade negar o que já fora construído em termos científicos, ou próximos à uma ciência jurídica[9].
Pode existir um grave problema cognitivo em relação ao próprio ser do direito, seu caráter ontológico, sua natureza normativa. No dizer de Luhman (2005, p. 586)[10], “a ruptura em relação aos fundamentos tradicionais do pensamento jurídico não parece ter sido tão abrupta a ponto de provocar reflexões epistemológicas especiais no domínio paralelo da cognição”. Se não há correção dessa deficiência, a teoria deve seguir no caminho da ilusão cognitiva: em outras palavras, qualquer ruptura com os propósitos teóricos primordiais do Direito não logrou êxito se apenas limitou-se em romper com a tradição científica inaugurada pelos positivistas (p. ex.: Kelsen, Hart), o que muitas vezes não consistiu em novas abordagens epistêmicas, mas sim, direcionou o estudo do Direito para outros campos de saber.
CONCLUSÕES
De modo que possa haver uma compreensão sobre a necessidade de reconhecimento dos seus pressupostos metodológicos e para se evitar a clivagem teórica do Direito, as atitudes consistentes em promover a mera apreciação disruptiva em face às construções teóricas já reconhecidas de importância, poderia constituir uma interrupção na construção teórica do Direito e do seu enfoque epistemológico. A exclusão de correntes importantes dos primórdios da teoria do Direito não representa inovação se nada de mais relevante foi apresentado.
É compreensível que qualquer teórico do direito tenha limites quanto ao seu referencial teórico. Não há como apreender todas as correntes teóricas e considerá-las criticamente. A coerência impera para não ocorrer imprecisão e desconfiança quanto aos pontos de partida utilizados por determinado pensador. Quem adota o pensamento sistemático não pode ao mesmo tempo ser adepto do pragmatismo. Mas, em nenhum dos casos, qualquer adepto de correntes distintas poderá negar os cânones teóricos que evitaram a subtração do objeto do Direito por diversas áreas das ciências sociais, o sem estabelecimento de um programa unitário para a teoria jurídica.
A importância em se observar os cânones[11] do pensamento jurídico ocorre por força da historicidade mesma do Direito e de sua teoria. O objeto do Direito, em dado momento da evolução social e política, foi consentâneo a esse processo. Sua historicidade é inegável, como inegável é também a historicidade do pensamento jurídico. A filosofia, de sua parte - por persistência metafísica - pode não estar presa absolutamente a um dado contexto social, político e econômico. Isso não vale para a Sociologia, para a Economia e, como é o caso, para o Direito. A historicidade dos saberes científicos sociais determina de certo modo o seu estatuto teórico, que percorre um encadeamento de teorias que se interligam sem necessariamente haver uma sobreposição de saberes.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
BLOOM, Harold. O cânone americano. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Objetiva, 2017.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge/Massachusetts: Harvard university Press, 1977.
__________. A matter of principle. New York: Oxford University Press, 1985.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma Introdução. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2015.
GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GREEN, Leslie. Introduction In.: HART, Herbert L. A. The concept of law. Third Edition. Oxford/United Kingdom: Oxford University Press, 2012.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LUHMAN, Niklas. El derecho de la sociedade. Traducción de Javier Torres Nafarrate. 2 ed. México: Editorial Herder, 2005.
MacCORMICK, Neil. Retórica e o estado de direito. Tradução de Conrado Hubner Mendes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2010. Disponível em: http://www.marinoni.adv.br/wp-content/uploads/2016/08/Confer%C3%AAncia_IAP2.pdf. Acesso em 01 de maio de 2019.
POSNER, Richard. Para além do direito. Tradução de Evandro Ferreira e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
SCHMITT, Carl. Teologia política. Tradução de Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
Notas
[1] Na apreciação introdutória sobre o Direito e sua Ciência, Kelsen concebeu uma das maiores construções lógicas que ainda merece detida atenção (não imune às objeções pós-positivistas) por força da rigorosa relação entre a teoria e seu objeto, capaz de esclarecer ao mesmo tempo qual o conteúdo deste em relação àquela: “Na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a afirmação - menos evidente - de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou consequência, ou – por outras palavras – na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas” (1998, 79).
[2] Pois se nem toda ação humana representa um fato social, por maior razão, existem ações humanas que são indiferentes ao Direito.
[3] Sobre o sentido decisionista quanto à criação e à ruptura com a ordem jurídica, conferir Schmitt (2006, p. 7-13).
[4] Nesse sentido, importa a contribuição de Habermas (2012, p. 183) sobre outras funções das normas do Direito: “a contribuição do direito para a função própria do poder organizado em forma de Estado revela-se especialmente na formação de regras secundárias, no sentido de H. L. A. Hart. E aí se trata de normas de competência, que revestem as instituições do Estado com autorizações, como também de formas de organização, que determinam procedimentos segundo os quais se criam programas de leis que são elaboradas na administração ou na justiça. O direito não se esgota simplesmente em normas de comportamento, pois serve à organização e à orientação do Poder do Estado.”
[5] A teoria jurídica, o campo do saber discursivo sobre as normas em sua dimensão estática e no plano dinâmico da aplicação, recebeu tradicionalmente a definição de dogmática jurídica (ver a exposição sobre a diferença entre dogmática e teorias não dogmáticas – zetéticas –(FERRAZ JR, 2015, p. 18-30). A forma de expressão do seu discurso idealista/racionalista através do raciocínio sistemático foi tradicionalmente estruturada em torno da interpretação dos preceitos legais e pontualmente, alguma jurisprudência. O estudo de casos, em torno de problemas práticos, só recentemente veio a ter maior presença no ensino e na abordagem teórica do Direito. Essa perspectiva tópica, argumentação como técnica de discussão de problemas foi bastante beneficiada pela difusão da obra de Theodor Viehweg (DINIZ, 2009, p. 493). Como no Brasil a recepção do Direito continental europeu, de matriz romano-germânica, é tradicionalmente marcante em face do sistema do common law, nada surpreendente que fosse um trabalho teórico daquele sistema que obteve maior receptividade entre nós.
[6] Sobre a importância de uma necessária revisão da teoria das fontes do Direito e a importância dos precedentes (MacCORMICK, 2008, p. 191 e ss)
[7] Pode parecer paradoxal entender o direito enquanto técnica fundada em normas (princípios e regras – tal como recepcionado por nosso doutrina a partir do desenvolvimento teórico de Ronald Dworkin [1977, p. 14-80; 1985, p. 33-70] e Rober Alexy [2008, p. 85 e ss]), utilizar esse fundamento em si e observar que as teorias que o explicam não devem ser dotados de certeza. A busca pela aproximação conceitual já é um esforço relativamente impreciso, e quem a repete pode ser apenas um reprodutor de equívocos. Não seria o caso de negar a necessidade da teoria do Direito, mas reconhecer que ela não é construída como certeza cognitiva em torno do seu objeto.
[8] Sobre a importância da apreciação política na interpretação e aplicação do Direito, trazemos à colação uma passagem de um dos mais importantes críticos ao positivismo jurídico, Ronald Dworkin: “advogados e juízes não podem evitar a política no sentido amplo da teoria política. Mas a lei não é uma questão de política partidária pessoal, e uma crítica do direito que não entende essa diferença proporcionará uma má compreensão e até uma pior compreensão (Tradução Livre) “Lawyers and judges can not avoid politics in the broad sense of political theory. But the law is not a matter of personal party politics, and a critique of law that does not understand this difference will provide misunderstanding and even worse understanding” (1985, p. 146).
[9] Alguns autores, em especial da corrente pragmática norte-americana, não admitem a cientificidade do Direito. Logo, não existe a Ciência jurídica. Por vezes, vêm no conhecimento sobre o Direito, a partir da perspectiva do pragmatismo, até mesmo, uma anti-teoria (POSNER, 2009, p. 2).
[10] No original: “La ruptura em relación con los fundamentos tradicionales del pensamiento jurídico no parece haber sido tan abrupta como para suscitar reflexiones epistemológicas especiales em el âmbito paralelo de la cognición”.
[11] Aqui, parafraseando Harold Bloom (2017) na intenção de adaptar o termo utilizado na crítica literária para o campo da ciência jurídica. Como no passado o termo “literatura” fora utilizado para se referir, de modo abrangente, à escrita sobre diversos campos do saber – literatura médica, literatura biológica, literatura canônica, etc. – nada obsta que se utilize – de um modo romântico - o termo para designar o que se escreve sobre o Direito. Evidentemente, literatura passou a ser um termo restrito à escrita artística ficcional. Nesse sentido, ver Terry Eagleton (2011),