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A criminalização no não recolhimento do ICMS: uma preocupante decisão

Agenda 27/02/2020 às 19:44

Segundo o STF, passa a configurar delito contra a ordem tributária o não pagamento de ICMS declarado por contribuinte.

I – UMA DECISÃO QUE TRANSCENDE OS LIMITES DA EXEGESE PENAL

Uma decisão publicada pelo STF, no 18 de dezembro de 2019, causou muito preocupação com relação aos contribuintes de ICMS que possuem valores em aberto perante o fisco estadual.

Segundo o Supremo Tribunal Federal, passa a configurar delito contra a ordem tributária o não pagamento de ICMS declarado por contribuinte, destaca-se, mediante conduta contumaz e com dolo de apropriação, e cujo ônus tenha sido repassado ao consumidor final.

O Relator, Ministro Luis Roberto Barroso, para fins de definição preliminar do conceito de “devedor contumaz”, afirmou que a decisão não afeta “quem deixou de pagar o ICMS eventualmente num momento de dificuldade, ou pulou um mês, dois meses, até três meses”, mas, sim, “o devedor contumaz, que não paga quase como uma estratégia empresarial, que lhe dá uma vantagem competitiva que permite que ele venda mais barato do que os outros, induzindo os outros à mesma estratégia criminosa”


II – O QUE É DEVEDOR CONTUMAZ PARA EFEITO DO DELITO? A QUESTÃO DA IMPONTUALIDADE

“O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º (inciso II) da Lei 8.137/1990”. Com esse entendimento, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) concluíram na sessão desta quarta-feira, dia 18 de dezembro do corrente ano, o julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 163334, interposto pela defesa de comerciantes de Santa Catarina denunciados pelo Ministério Público Estadual (MP-SC) por não terem recolhido o imposto.

O julgamento teve início, quando a maioria dos ministros se manifestou pela criminalização da apropriação indébita do imposto. A corrente majoritária seguiu o entendimento do relator, ministro Roberto Barroso, para quem o valor do ICMS cobrado do consumidor não integra o patrimônio do comerciante, o qual é mero depositário desse ingresso de caixa que, depois de devidamente compensado, deve ser recolhido aos cofres públicos. O ministro, contudo, frisou que, para caracterizar o delito, é preciso comprovar a existência de intenção de praticar o ilícito (dolo). “Não se trata de criminalização da inadimplência, mas da apropriação indébita. Estamos enfrentando um comportamento empresarial ilegítimo”, resumiu o ministro.

O ministro Edson Fachin lembrou que, no julgamento do RE 574706, o Supremo entendeu que o ICMS não integra a base de cálculo para PIS/Cofins exatamente por não fazer parte do faturamento do sujeito passivo da obrigação (no caso, o comerciante). Para Fachin, o valor que entra a título de ICMS apenas circula na contabilidade do comerciante, mas não ingressa definitivamente no seu patrimônio. Assim, no seu entendimento, não se trata apenas de inadimplemento fiscal, “mas sim a disposição de recurso de terceiro”.

Esse foi o mesmo argumento da ministra Rosa Weber. Para ela, a cobrança e a posterior omissão de recolhimento pelo comerciante implica efetivamente apropriação de valor de terceiros, o que legitima a tipificação penal. A ministra Cármen Lúcia votou no mesmo sentido, ressaltando que o recolhimento ao fisco do valor cobrado a título de ICMS é uma obrigação insuperável do comerciante.

Esses quatro ministros concordaram ainda com o fundamento do relator de que o delito não comporta a modalidade culposa (não intencional), sendo imprescindível o dolo. O ministro Luiz Fux deu exemplo de uma empresa milionária, cujos sócios residam em mansões, que não paga tributo. Essa situação, para ele, demonstra o ânimo de não pagar e de enriquecer à custa do Estado. “É a gênese da corrupção”, afirmou.

Afinal, o que vem a ser um devedor contumaz para efeito do que se decidiu? Ora, será aquele que deve mais de três meses? Ou será o que deve a partir do quarto mês? Data vênia, a expressão contumaz é, com o devido respeito, o sinal maior da falta de segurança jurídica trazida com aquela decisão. Pontualidade é indicador de quem não paga e nem de quem comete crime.

O devedor pode deixar de adimplir um contrato porque tem razões jurídicas para fazê-lo, seja uma dúvida que seja relevante sobre o montante da dívida, exceção de contrato não cumprido, falência do credor. Diverso é o devedor insolvente que é aquele que, sem escusa jurídica, porque não pode fazê-lo, não cumpre a obrigação, porque a situação econômica do seu patrimônio torna impossível a prestação devida.

 Para Teixeira de Freitas(Aditamentos ao código de comércio) a insolvência é a cessação de pagamentos, tal como exigida pelo revogado artigo 797 do Código Comercial. Mas essa opinião ficou isolada na doutrina. Insolvente é aquele que não solve as suas obrigações sem escusa jurídica.

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 A inaptidão econômica a adimplir refere-se a insolvabilidade. O insolvável deixa de adimplir porque não pode fazê-lo, porque a situação econômica de seu patrimônio torna impossível a prestação devida.

 A insolvência diz respeito à obrigação, a insolvabilidade é um estado que interessa a totalidade dos credores de devedor. A inaptidão econômica de adimplir caracteriza a insolvabilidade: insuficiência do ativo no patrimônio do devedor(insolvência em sentido clássico) ou falta de meios líquidos para prestar. A primeira é uma impossibilidade definitiva e a segunda é uma impossibilidade mais ou menos durável em função do crédito de que goze ou venha a gozar, o devedor insolvável e do tempo necessário à realização do seu ativo ilíquido.

Pontes de Miranda(Tratado de direito privado, tomo XXVII, ed. Bookseller, § 3.202) entendia que a insolvabilidade é o estado econômico em que a pessoa não pode satisfazer as dívidas, porque o ativo é menor do que o passivo, computando-se também como parcela do passivo o que seria de mister para as despesas de prestar.

A insolvabilidade é um dos estados de dificuldades dos devedores: não é o único. Por outro lado, o ativo pode ser, no momento, maior do que o passivo, porém faltarem disponibilidade para a satisfação de credores; há, aí, a insolvência ocasional, que pode ser de sérias consequências.

O que existe, na verdade,  é um regime de prazo de pagamento. Quando este prazo é excedido, há fluência de juros e acumulação de multa. Ora, para se verificar o crime não basta se dar a retenção, é preciso que sejam esgotadas todas as possiiblidades legais de recebimento. No passado, no julgamento do HC 1075, no extinto Tribunal Federal de Recursos, o ministro Amarílio Benjamin (Revista Brasileira Crim. Dir. Penal, 7/161) assim já se concluia.


III – A CORRETA DIVERGÊNCIA ABERTA

Os ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio acompanharam a divergência aberta pelo ministro Gilmar Mendes, para quem o delito previsto na Lei 8.137/1990 deve ser interpretado em conformidade com a Constituição para alcançar somente as situações em que o não pagamento do tributo envolva fraude, sob pena de estar se implantando uma “política criminal arrecadatória”.

Tratar-se-ia de crime omissivo próprio, sendo despiciendo qualquer especial fim de agir para a sua caracterização. O dolo do crime é a vontade de não repassar à Fazenda Pública  o tributo, dentro do prazo e das formas legais, não se exigindo o animus rem sibi habendi, sendo descabida, portanto, a exigência de se demonstrar o especial fim de agir ou o dolo específico de fraudar os cofres públicos, como elemento essencial do tipo penal.  

Assim o dolo seria genérico e não específico.

Anoto que o crime de apropriação indébita, por ser delito material, pressupõe para a sua consumação a realização do lançamento tributário definitivo, momento a partir do qual começa a contagem do prazo prescricional.  

Advirta-se que a decisão não se deu em sede de repercussão geral, permitindo com isso o afastamento dessa interpretação com relação a todas as decisões.

Ainda, acrescente-se, foi ventilado que, em casos de dificuldades financeira da empresa, ficaria afastada a apenação, uma vez comprovada a exculpante extralegal da inexigibilidade de conduta diversa.

Com o devido respeito, entretanto, louvo-me do voto do ministro Marco Aurélio que lembrou o voto da ministra Maria Thereza de Assis Moura, no REsp 15434865 quando acentuou:

“A denúncia parte da premissa de que, ao assim fazê-lo, os recorridos - através da pessoa jurídica - teriam deixado de recolher ICMS "descontado ou cobrado" do consumidor final dos produtos, que arcou economicamente com o custo do tributo. Friso que esse entendimento tem sido acolhido em precedentes da Quinta Turma deste Superior Tribunal de Justiça, como demonstrado nas seguintes ementas:   RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS DECLARADO PELO PRÓPRIO CONTRIBUINTE. FATO QUE SE AMOLDA, EM TESE, AO CRIME PREVISTO NO ARTIGO 2º, INCISO II, DA LEI 8.137⁄1990. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CARACTERIZADO. DESPROVIMENTO DO RECURSO. 1. O trancamento de ação penal em sede de habeas corpus é medida excepcional, só admitida quando restar provada, inequivocamente, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático-probatório, a atipicidade da conduta, a ocorrência de causa extintiva da punibilidade, ou, ainda, a ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito. 2. Da leitura do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137⁄1990, depreende-se que pratica o ilícito nele descrito aquele que não paga, no prazo legal, tributo aos cofres públicos que tenha sido descontado ou cobrado de terceiro, exatamente como ocorreu na hipótese em exame, em que o ICMS foi incluído em serviços ou mercadorias colocadas em circulação, mas não recolhido ao Fisco. 3. Não há que se falar em atipicidade da conduta de deixar de pagar impostos, pois é o próprio ordenamento jurídico pátrio, no caso a Lei 8.137⁄1990, que incrimina a conduta daquele que deixa de recolher, no prazo legal, tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação, e que deveria recolher aos cofres públicos, nos termos do artigo 2º, inciso II, do referido diploma legal. Precedente. 4. Recurso desprovido. (RHC 44.465⁄SC, Rel. Ministro LEOPOLDO DE ARRUDA RAPOSO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄PE), QUINTA TURMA, julgado em 18⁄06⁄2015, DJe 25⁄06⁄2015)   RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS DECLARADO PELO PRÓPRIO CONTRIBUINTE. FATO QUE SE AMOLDA, EM TESE, AO CRIME PREVISTO NO ARTIGO 2º, INCISO II, DA LEI 8.137⁄1990. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CARACTERIZADO. DESPROVIMENTO DO RECURSO. 1. O trancamento de ação penal em sede de habeas corpus é medida excepcional, só admitida quando restar provada, inequivocamente, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático-probatório, a atipicidade da conduta, a ocorrência de causa extintiva da punibilidade, ou, ainda, a ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito. 2. Da leitura do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137⁄1990, depreende-se que pratica o ilícito nele descrito aquele que não paga, no prazo legal, tributo aos cofres públicos que tenha sido descontado ou cobrado de terceiro, exatamente como ocorreu na hipótese em exame, em que o ICMS foi incluído em serviços ou mercadorias colocadas em circulação, mas não recolhido ao Fisco. 3. Não há falar em atipicidade da conduta de deixar de pagar impostos, pois é o próprio ordenamento jurídico pátrio, no caso a Lei 8.137⁄1990, que incrimina a conduta daquele que deixa de recolher, no prazo legal, tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação, e que deveria recolher aos cofres públicos, nos termos do artigo 2º, inciso II, do referido diploma legal. 4. Recurso desprovido. (RHC 44.466⁄SC, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 21⁄10⁄2014, DJe 29⁄10⁄2014).”


IV – TRIBUTO DESCONTADO OU COBRADO

Como se deve interpretar a expressão típica tributo "descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação"?

Nesse sentido, o STJ definiu em agosto de 2018, que a “interpretação consentânea com a dogmática penal do termo “descontado” é a de que ele se refere aos tributos diretos quando há responsabilidade tributária por substituição, enquanto o termo “cobrado” deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos (incidentes sobre o consumo). O Superior Tribunal encerrou esclarecendo que “não possui relevância o fato de o ICMS ser próprio ou por substituição, porquanto, em qualquer hipótese, não haverá ônus financeiro para o contribuinte de direito”.

Tal detalhamento também merece atenção regulamentar no sentido de esclarecer, uma vez distintos os responsáveis pelo recolhimento efetivo do ICMS – a exemplo do instituto da substituição tributária – ante a presença de contribuintes de direito e de fato, ante a presença de repasse ou não do recolhimento ao consumidor final e ante a existência ou não de ICMS a pagar no final do período de apuração.

Um terceiro ponto e não menos importante que deve ser avaliado em norma regulamentadora refere-se à retroatividade do referido julgado quando colocado frente a existência ou não de inscrição do débito em dívida ativa – visto que a norma penal apenas estabelece como elemento do tipo a “ausência do recolhimento”.


V – O CONTRIBUINTE E O RESPONSÁVEL TRIBUTÁRIO

 Argumentou a ministra relatora:

“O artigo 121 do Código Tributário Nacional diferencia duas categorias de sujeito passivo tributário: o contribuinte e o responsável. Confira-se a redação do dispositivo legal: Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária. Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se: I - contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador; II - responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.

O contribuinte é o titular da capacidade contributiva, aquele que, nos impostos, realiza os fatos signo-presuntivos de riqueza e é, por essa razão, escolhido pelo legislador como sujeito passivo direto da obrigação tributária. Já o responsável tributário é a pessoa que, em razão de exercer atividade conexa com os fatos signo-presuntivos de riqueza, tem, em algum momento, poder de disposição sobre os valores do contribuinte, o que justifica que a lei o coloque como sujeito passivo (indireto) da obrigação tributária.  Há responsabilidade tributária, por exemplo, na substituição tributária, para frente ou para trás. Na substituição tributária para frente, o tributo relativo a fatos geradores que ainda não ocorreram - mas deverão ocorrer posteriormente - é arrecadado de maneira antecipada, sobre uma base de cálculo presumida. De acordo com o artigo 150, § 7º, da Constituição, a lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido. Por exemplo, a refinaria, ao vender o combustível, recolhe o tributo devido por ela mesma na operação, assim como o tributo referente às futuras operações do distribuidor e do varejista. Para proceder à apuração do quantum devido, o Estado divulga uma base de cálculo presumida, segundo critérios definidos em lei. Essa base de cálculo deve observar a realidade do mercado, para a determinação do preço final praticado em cada operação. Quando o substituto vende a mercadoria ao substituído (contribuinte), aquele já cobra no valor do total da operação também o valor devido por este último. Já na substituição para trás, ou diferimento, o que ocorre é justamente o contrário. Apenas a última pessoa que participa da cadeia de circulação da mercadoria é que paga o tributo, de maneira integral, inclusive relativamente à s operações anteriormente praticadas. Pense-se, por exemplo, numa indústria leiteira, que se vale de matéria-prima fornecida por diversos produtores rurais. Ao realizar o pagamento pela matéria-prima, o estabelecimento industrial desconta o valor devido pelos produtores nas suas operações próprias. O tipo penal examinado se refere, justamente, a tais hipóteses de responsabilidade tributária, em que o sujeito passivo indireto desconta ou cobra valores pertencentes ao contribuinte e deixa de recolhê-los ao erário. Existe aí, portanto, uma circunstância que justifica a maior reprovabilidade da conduta do que o mero inadimplemento, pois o sujeito passivo não deixa simplesmente de recolher o tributo por si devido, mas, em verdade, apropria-se do tributo devido por outrem. Pois bem. No caso concreto, os recorridos deixaram, na qualidade de administradores da sociedade, de recolher o ICMS próprio da pessoa jurídica - e não o ICMS devido por terceiros, na condição de responsáveis ou substitutos tributários. O ICMS, como se sabe, está embutido no preço da mercadoria, de modo que o ônus econômico da tributação é repassado ao consumidor. Seria essa característica suficiente para que se reconheça que os recorridos, "na qualidade de sujeitos passivos da obrigação", "descontaram" ou "cobraram" da obrigação" do consumidor o valor do tributo e deixaram de repassá-lo ao erário estadual? Reputo que não. Da dicção do tipo penal resulta que somente comete o delito que "desconta" ou "cobra" o valor de tributo "na qualidade de sujeito passivo da obrigação". Uma interpretação sistemática entre direito penal e direito tributário, de acordo com os fundamentos anteriormente expostos, leva à conclusão de que o tipo penal está a se referir justamente à figura da responsabilidade tributária, forma de sujeição passiva indireta em que o sujeito passivo tributário se torna legalmente responsável pelo recolhimento de tributo de outrem. Não é o caso do ICMS próprio, em que a sujeição passiva tributária é direta, ou seja, o contribuinte é o sujeito passivo da obrigação tributária, não havendo que se falar em responsável tributário ou em sujeição passiva indireta. O fato de o consumidor arcar com o ônus econômico do tributo em nada afeta essa conclusão, do ponto de vista jurídico. O consumidor não é contribuinte do imposto, no sentido técnico, nem sujeito passivo da obrigação, o que significa que ele jamais será cobrado pelo pagamento do imposto devido na operação. Não existe relação jurídica tributária possível entre o Fisco estadual e o consumidor final, de modo que não é correto, juridicamente, considerar que o valor do ICMS embutido no preço tenha sido dele "cobrado" ou "descontado". O consumidor é, apenas, "contribuinte de fato", conceito que, juridicamente, tem relevância unicamente para fins de repetição de indébito tributário (CTN, art. 166). Salvo para essa finalidade, o conceito tem caráter meramente econômico. Sob esta perspectiva, é também o consumidor quem arca, por exemplo, com o ônus econômico do imposto de renda e com a contribuição previdenciária pagos pelo comerciante, já que, na formação do preço da mercadoria, são levados em consideração todos os custos, diretos e indiretos, da atividade. Da mesma forma, o custo do aluguel do imóvel, da energia elétrica, dos funcionários etc., tudo isso é repassado ao consumidor. Nem por isso alguém sustenta que há apropriação indébita do imposto de renda quando o consumidor compra um produto e o comerciante, após contabilizar corretamente o tributo, simplesmente deixa de recolhê-lo.  Cito, por fim, neste sentido, as lições de Roque Antonio Carrazza a respeito da questão (O ICMS e o delito capitulado no art. 2º, II, da Lei 8.137⁄90: problemas conexos. Justitia . São Paulo, v. 56, n. 168, out.⁄dez. 1994, pp. 22-23; destaquei): O consumidor final não figura no pólo passivo da obrigação de pagar o ICMS. Tanto não, que se não houver o recolhimento tempestivo do tributo, não é ele que será executado ou sancionado, mas o comerciante, o industrial ou o produtor, que praticou a operação mercantil. Ainda que o comerciante, o industrial ou o produtor deixarem de repassar a carga econômica do tributo ao consumidor final, não se eximirão do dever de pagar o ICMS (justamente porque são eles os contribuintes de jure ). Notamos que, no caso do ICMS, o repasse da carga econômica do tributo é feito às abertas e publicadas. Melhor dizendo, tudo é devidamente escriturado. Assim, as coisas se processam, exatamente para se viabilizar o cumprimento do princípio da não-cumulatividade, isto é, para que, com acentuado grau de certeza, se possa compensar "o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal" (art. 155, §2°, I, da CF). Isto, porém, não significa que apenas no ICMS ocorre este repasse da carga econômica do tributo. Pelo contrário, podemos dizer que quase sempre, embora de maneira menos explícita, a empresa repassa, ao preço final de suas mercadorias, os tributos (inclusive as contribuições previdenciárias) que é obrigada a pagar. Tudo acaba compondo o custo final das mercadorias. E nem poderia ser de outro modo. Deveras, se a empresa deixasse de fazer tal repasse, em breve estaria operando com prejuízo e, nessa medida, caminhando a passos largos para a falência. O repasse, nesses casos, também existe, apenas não é contabilizado. Fixada essa premissa de que o sujeito passivo do ICMS não é o consumidor final, mas o comerciante, o industrial ou o produtor que praticou a operação mercantil, fica fácil, segundo supomos, sustentarmos a inexistência, na questão proposta, de qualquer crime contra a ordem tributária. O comerciante que não recolhe o ICMS, dentro dos prazos que a lei lhe assinala, não comete delito algum. Muito menos o capitulado no art. 2°, II, da Lei nº 8.137⁄90. De fato, ele não está deixando de recolher, no prazo legal, tributo descontado de terceiro. O tributo é devido por ele (em nome próprio). Ele está, simplesmente, incidindo em inadimplemento. Inadimplemento que poderá acarretar-lhe o dever de pagar, além do tributo, a multa, os juros e a correção monetária. A Fazenda Pública, neste caso, poderá - e, ousamos dizer, deverá - executá-lo, nos termos da Lei nº 6.830⁄80 (Lei das Execuções Fiscais). Mas apenas isso. Nunca esse inadimplemento poderá conduzi-lo a uma condenação criminal. Por quê? Porque sua conduta não é típica. E, sem tipicidade, não pode haver crime, nem muito menos condenação criminal.   Do exposto resulta que a conduta dos recorridos não preenche os elementos do tipo penal do artigo 2º, II, da Lei nº 8.137⁄1990. Ante o exposto, nego provimento ao recurso. É o voto.” 

Disse bem Miguel Teixeira Filho (Omissão de recolhimento do ICMS não configura crime fiscal):

“Muito embora o emitente da nota fiscal de saída de mercadorias (como é o caso) seja o sujeito passivo da obrigação tributária, o fato é que o ICMS – Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços não é “descontado” nem tampouco “cobrado” por quem realiza a operação de saídas.

O que gera a obrigação de se pagar o ICMS é a ocorrência do fato gerador, que se verifica na saída da mercadoria do estabelecimento. Ou seja, quando o contribuinte dá saída na mercadoria em seu estabelecimento nasce a obrigação de recolher o imposto incidente sobre a operação.”


VI – CONCLUSÕES

A matéria, pois, por ser polêmica ainda poderá ser objeto de mais discussões.  

E se o devedor estiver em recuperação judicial? Aí, sob pena da total falta de razoabilidade, estará com dificuldades para pagar, num mínimo um pretexto para a afirmação da exculpante de culpabilidade, inexigibilidade de conduta diversa. Se está em recuperação judicial sinal maior para a impontualidade.

Com o devido respeito, a decisão judicial afronta a segurança jurídica, cria um tipo penal que não existe, de tal forma aberto que é, extrapolando os limites do fato típico punível.

Uma matéria que é puramente de direito tributário envolvendo o não pagamento de tributo em seu tempo transforma-se em criminal, levando a que o promotor público se transforme com o devido respeito “num cobrador penal”.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A criminalização no não recolhimento do ICMS: uma preocupante decisão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6084, 27 fev. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79742. Acesso em: 23 dez. 2024.

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