Depois de muitos debates teóricos, a transação tributária é uma realidade no Brasil, devendo nela sempre prevalecer o princípio consensualístico. Faz-se cada vez mais necessário abandonar a imposição unilateral pela Administração Tributária dotada de autoridade e formalismos em favor da valorização e da introdução de módulos bilaterais fundados no consenso do contribuinte e em observância ao princípio da “democracia fiscal”.
Os métodos adequados de solução de conflitos, dentre os quais se encontra o instituto objeto de nosso estudo, são um verdadeiro exemplo de interferência dos institutos e conceitos do direito privado nas dependências do direito tributário, na medida em que a autonomia negocial, manifestação típica e essencial do direito civil, faz o seu ingresso nas relações que se instauram entre fisco e contribuinte para o fim de se chegar a um acordo, pondo fim à lide tributária, cujo consenso do sujeito passivo é elemento determinante para a formalização do negócio jurídico consensual.
Todos os modernos e atuais institutos de solução de conflitos são manifestações que envolvem a prática colaborativa entre fisco e contribuinte, os quais despertam e objetivam o diálogo entre as partes, na intenção de terminar a lide, através da colaboração dos interessados e reduzindo o risco do erário de receber o que lhe é devido, acrescido da não menos importante humanização do processo tributário. São medidas, enfim, que permitem o diálogo entre administração tributária e contribuinte.
A transação tributária representa uma das soluções adotadas nos momentos de crise, mas apresenta dificuldade de ser operacionalizada. O certo é que, se aplicada de modo correto pode servir para superar o período de dificuldade financeira e movimentar a economia. As reformas, aliás, são filhas da crise. O instituto aqui tratado é uma exceção e, por ser uma exceção, as regras devem ser muito bem definidas pela lei, que não deve dar margem a interpretações dúbias. A lei deve privilegiar a celeridade e o bom andamento da administração pública.
No estudo da ciência do direito público e, mais exatamente no direito tributário, existe uma grande dificuldade em se admitir que no âmbito da função impositiva da administração tributária se possa exercitar a autoridade de se dispor do crédito ou de se renunciar de uma parte dele, porque todos os cidadãos contribuem para as despesas públicas, e, dessa forma, não seria sensato e nem justo que os gestores abrissem mão do que recebem para beneficiarem alguns em detrimento de outros, considerando a finalidade da arrecadação tributária, que é o financiamento do Estado como um todo. Deve-se ter em mente, enfim, que quando o cidadão paga o tributo, ele está participando na quitação das despesas públicas na medida de sua capacidade contributiva.
O fato é que, muitas vezes, em nome do cumprimento do rígido princípio da indisponibilidade, esquece-se que o dispêndio de cifra pública sem qualidade também é medida maléfica para o Estado. Ou seja, não adianta gastar os recursos públicos arrecadados sem qualquer finalidade com o único objetivo de se fazer cumprir o princípio da indisponibilidade do interesse público e do crédito tributário, em detrimento da sociedade. Nesse diapasão, é certo afirmar que não se pode ficar recorrendo eternamente aos tribunais e desembolsando o dinheiro dessa coletividade com os altos custos que o processo judicial e administrativo impõe à administração pública, por exemplo.
AntonellaTropeano, citando Zanni e G. Rebecca[1], diz que é legítima a transação fiscal porque cria um balanceamento do princípio da indisponibilidade com a preservação de vagas de emprego, com a efetividade da pretensão tributária e com a eficiência da administração pública. Veja-se:
Un orientamento dottrinale giustifica la legittimità della transazione fiscale in quanto creerebbe un bilanciamento del principio di indisponibilità con quello della salvaguardia dei posti del lavoro, dell'effettività della pretesa tributaria e dell'efficienza della pubblica amministrazione. Tale bilanciamento degli interessi coinvolti dev'essere tuttavia rigoroso, dal momento che sarà, nel caso, giustificatore dell'eccezionale deroga al principio di indisponibilità.
Na transação tributária, os limites devem ser respeitados e é necessário que sejam bem precisos. A transação não é para todos. Por isso a necessidade de critérios objetivos e subjetivos, bem como análise para cada caso.
No que concerne ao princípio da indisponibilidade tributária, há confusão em torno de seu conceito. Lupi[2], afirma que a indisponibilidade é uma metáfora jurídica daquelas tanto eficazes como não conclusivas, tratando-se de uma metáfora que deve a sua sorte a sua ambiguidade.
Giuzeppe Marini[3], ao falar sobre a transação tributária, diz que por se tratar de uma esperada intervenção normativa, essa deve se efetivar com a rigorosa observância da lei, porque, do contrário, estará violando o art. 23, da Constituição Italiana, que trata do princípio da legalidade. Enfatiza, ademais, que deve derivar de uma suficiente motivação, fundamentando a possibilidade de transigir porque, se não houver esse equilíbrio, o instituto será privado de seu necessário suporte administrativo.
O fenômeno tributário representado pelos meios de solução adequada de conflitos deve ser valorizado em conformidade com uma tendência sempre mais acentuada no nosso ordenamento jurídico, lembrando que se trata de institutos idôneos introduzidos pelo legislador ordinário e que em nada se contrapõe aos ditames constitucionais.
Como então podemos falar em abdicação do crédito tributário se essa possibilidade está prevista em lei formal? E como se pode afirmar que os descontos não podem atingir o montante do tributo, se evidenciado nos autos uma real dificuldade em cobrar o que é devido, seja pela existência de vício no lançamento, seja pela existência de jurisprudência pacífica a favor do contribuinte ou mesmo pela inexistência de capacidade contributiva do devedor?
Em relação à particularidade de os descontos poderem atingir o montante do tributo e não apenas os valores respeitantes aos juros e a multa, vale lembrar que se trata de um tema muito pouco explorado pela doutrina tributária. O que se vê são estudos em torno da possibilidade de se excetuar o princípio da indisponibilidade tributária, mas é difícil localizar manifestações expressas quanto à probabilidade de se poder adentrar na redução tributária referente ao montante principal da exação tributária.
O tema exige debate e a doutrina deve, sim, se debruçar sobre o assunto. Em nosso entendimento, a resposta está no próprio conceito de transação tributária insculpido no art. 171, do Código Tributário Nacional, quando permite que o ente tributante possa celebrar acordos mediante concessões mútuas. Uma dessas concessões, desde que amparadas por lei formal, pode ser a concordância da Administração Pública de conceder descontos sobre o próprio tributo e não apenas sobre os encargos incidentes sobre o mesmo, enquanto que, também fazendo uma concessão, o Devedor consinta em dar um fim à lide, lembrando que não há nada no Sistema Tributário Nacional que impeça tal procedimento, seja na Constituição Federal, bem como nas Leis Infraconstitucionais.
Importante também ressaltar que, dentro das medidas que relativizam o princípio da indisponibilidade, está a remissão (art. 156, inciso IV, do CTN), que como a transação (art. 156, inciso III, do CTN), é uma causa de extinção do crédito tributário. Ora, se a lei pode prever o perdão total do débito por qual motivo não pode dispor sobre a extinção parcial do mesmo por meio da transação, devendo ater-se apenas aos encargos incidentes sobre o tributo?
Sob esse prisma, faz-se mister lembrar que a maioria dos Municípios brasileiros, todos os anos, por meio de lei, autoriza descontos no IPTU em caso de pagamento à vista, visando premiar o bom pagador. Ou seja, os referenciados atos legislativos, há muito, vêm autorizando descontos sobre o montante principal do tributo municipal sem qualquer contestação, o que faz cair por terra o argumento de que não se pode conceder reduções sobre o valor principal do débito tributário quando da efetivação da transação tributária.
Ora, se a lei permite a premiação do bom pagador concedendo descontos no montante do tributo, por qual motivo não poderia fazer o mesmo em relação a débitos que são de difícil recuperação? Não se trata de uma benesse ao mau pagador, como muitos criticam ao se falar em transação tributária, mas de receber, ao menos em parte, o crédito que, pela via da cobrança usual, estaria totalmente perdido. E diga-se mais: a simples manutenção do processo com o único objetivo de preservar o princípio da indisponibilidade vem de encontro ao princípio da eficiência e do interesse público, considerando que se trata de uma medida inútil e altamente custosa à Administração Pública.
Dentro desse contexto, interessante frisar, igualmente, que na Itália, por exemplo, por meio do Programa “Pace Fiscale[4]” trinta e dois milhões de euros resultantes de débitos fiscais foram cancelados de ofício pela Administração Tributária a mais de doze milhões de contribuintes. Trata-se de dívidas tributárias antigas e respeitantes aos anos de 2000 a 2010 e de pequena monta. Ou seja, inferiores a mil euros.
A Lei Municipal nº 8.532/2017 de Blumenau, que dispõe sobre a transação de créditos tributários e não tributários, trabalha com processos que tenham sido objeto de execução fiscal ajuizada até 31.12.2014 ou de litígio judicial, cujo valor histórico não ultrapasse o montante equivalente a 40 (quarenta) salários mínimos vigentes no momento da transação, permitindo descontos de 100% na multa e nos juros podendo chegar, ainda, dependendo do caso concreto, e de forma excepcional, em até 70% (setenta por cento) do principal.
Sempre segundo se infere da legislação municipal acima citada, a aferição dos requisitos subjetivos — depois do devedor ter comprovado os requisitos objetivos — se dá por meio de uma tabela de pontuação, que vai de zero a cinco, em que será considerado, em cada caso em particular, o histórico fiscal do devedor, a economicidade da medida, a sua situação econômica, o tempo de duração do processo em Juízo, a chance de êxito do município na causa e, finalmente, a existência de precedentes jurisprudenciais contra a tese do credor já pacificadas por súmula dos tribunais superiores, repercussão geral ou recursos repetitivos.
Até o momento, em Blumenau[5], no período compreendido entre 12 de abril de 2018 (data que se iniciaram as audiências de transação tributária) e 24 de outubro de 2019, foram realizados 1.112 (um mil cento e doze) acordos, encerrados 1.897 (um mil oitocentos e noventa e sete) processos de execução fiscal e negociados R$ 2.745.531,68 (dois milhões setecentos e quarenta e cinco mil quinhentos e trinta e um reais e sessenta e oito centavos).
Na transação tributária, portanto, considerando os aspectos constitucionais e infraconstitucionais do sistema tributário brasileiro, nada há que impeça que os descontos possam atingir o montante do tributo, desde que haja lei formal dispondo sobre os critérios para a sua realização e desde que os interesses envolvidos na situação possam justificar uma exceção ao princípio da indisponibilidade.
Mas para se falar em dispor do tributo ou de se deixar de determinar a sua extensão - por meio de lei formal - é necessário, igualmente, que se faça um balanceamento entre os interesses envolvidos na situação e que possam justificar uma exceção ao princípio da indisponibilidade. Esse balanceamento deve ser rigoroso e não superficial, tendo-se o cuidado para que a disposição do crédito tributário não seja relegada, em nenhuma hipótese, à discricionariedade da administração tributária.
Entendemos que no Brasil, em particular, existe um motivo a mais para se relativizar o princípio da indisponibilidade do crédito tributário. Sabemos que todo o cidadão é obrigado a participar do custo das despesas públicas, por meio da exigência do cumprimento da obrigação tributária. Em assim sendo, tem ele também o direito de receber os serviços que devem obrigatoriamente ser prestados pelo Estado. Ora, se esses serviços não lhe são ofertados com qualidade ou simplesmente não lhes são disponibilizados, ocorre aí mais uma exceção ao princípio da indisponibilidade tributária, justamente porque o produto da arrecadação não está sendo utilizado para suprir as necessidades básicas de uma população, que é uma das grandes metas da tributação ou ao menos deveria ser.
E não se diga que o princípio da indisponibilidade se restringe somente às imposições tributárias, sendo certo afirmar que o mesmo se aplica igualmente ao produto da arrecadação, como bem asseveram Luiz Mathias Rocha Brandão e Melanie Claire Fonseca Mendoza, nos seguintes termos:
A indisponibilidade das imposições tributárias (obrigações tributárias) e do produto da arrecadação (créditos tributários) tem relação direta com dois fatores: a) o dever de obediência estrita ao princípio da legalidade; b) os limites da discricionariedade atribuída aos atos administrativos inerentes à tributação.[6]
Enfim, repita-se, sendo a transação tributária medida de exceção, essa deve obedecer com rigor os ditames da lei e aos consequentes procedimentos previstos exclusivamente pelo legislador e, principalmente, pelo requisito da motivação dos atos e da conduta do agente administrativo.
Serena Busatto[7], em artigo intitulado “Il principiodiindisponibilitàdell’obbligazione tributaria” nos ensina, em suma, que somente a lei formal pode fixar pressupostos voltados a instituir tributos ou implementar tipos tributários de exceção ou de exclusão tributária, como é o caso da transação. Veja-se:
il principio di indisponibilità trova una prima giustificazione nella gerarchia delle fonti legislative, per la quale gli atti emessi dalle pubbliche amministrazioni non possono porsi in contrasto con la legge formale, con la naturale conseguenza che è inibito all’Amministrazione Finanziaria di produrre norme volte alla fissazione di presupposti d’imposta, ed altresì di istituire fattispecie di esenzione o di esclusione tributaria, dovendosi esclusivamente limitare all’applicazione della legge ordinaria.
Muito importante dizer, ademais, que no direito civil a regra é a disponibilidade e a indisponibilidade é a exceção. No direito tributário, a regra é a indisponibilidade e a disponibilidade é a exceção e, nesse diapasão, importante enfatizar que a transação tributária não pode prescindir do perfil garantidor da lei, sendo certo afirmar que o legislador é o único titular para dar certa discricionariedade e relatividade ao princípio da indisponibilidade do tributo.
A administração tributária, enfim, no exercício de sua função pública não é titular de modo exclusivo do interesse do tributo e de sua arrecadação. Pelo contrário, o grande detentor desse poder é o cidadão, que entrega dinheiro ao Estado. Tanto o gestor governamental, como a autoridade fiscal ou o procurador fazendário, são apenas a representação do poder tributário, responsáveis pela operacionalização da busca da receita pública, não havendo espaço de se dispor do crédito tributário se inexistente a autorização legislativa.
Nesse sentido, muito salutar é a adoção da transação tributária como forma de extinguir o crédito tributário, nos moldes já previstos no Código Tributário Nacional, em seu art. 156, inciso II, desde que sejam observados critérios rígidos para a sua realização, devendo ser apreciado caso a caso, e, principalmente, que tais pressupostos sejam editados por lei formal. Normas menores e editadas unilateralmente não podem sobrepor-se à lei, seja nas questões de imposição tributária, seja nas questões de exoneração ou redução tributária, dentre as quais se encontra a transação tributária.