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NO LIMITE DA CONSTITUCIONALIDADE

Agenda 04/03/2020 às 16:05

O ARTIGO DISCUTE SOBRE RECENTE MEDIDA PROVISÓRIA APROVADA QUANTO A EXTENSÃO DE CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA.

NO LIMITE DA CONSTITUCIONALIDADE

Rogério Tadeu Romano

 

I – A EXIGÊNCIA DO CONCURSO PÚBLICO

A Constituição Federal exige o concurso público de provas ou de provas e títulos para investidura em cargo ou emprego público. Ademais é mister que haja pertinência nas disciplinas escolhidas para comporem as provas, assim como os títulos, a que se reconhecerá valor com a função a ser exercida. 

Por sua vez, Adilson Dallari(Regime constitucional dos servidores públicos, 2ª edição, Revista dos Tribunais, 1990, pág. 36) define concurso público como sendo “um procedimento administrativo aberto a todo e qualquer interessado que preencha os requisitos estabelecidos em lei, destinado à seleção de pessoal, mediante a aferição de conhecimento, da aptidão e da experiência dos candidatos, por critérios objetivos, previamente estabelecidos no edital de abertura, de maneira a possibilitar uma classificação de todos os aprovados”. 

A Constituição de 1988 utiliza a palavra investidura para designar o preenchimento de cargo ou emprego público. Como bem disse Celso Ribeiro Bastos(Comentários à Constituição do Brasil, volume III, tomo III, 1992, pág. 67), não se fala mais, como ocorreu, no passado, em primeira investidura, para deixar certo de que se cuida de todas as hipóteses em que se dá a condição de ingresso no quadro de servidores públicos.

Assim a Constituição repudia aquelas modalidades de desvirtuamento da Constituição anterior criadas por práticas administrativas, que acabaram por custar o espírito do preceito. Exemplificou Celso Bastos com o que acontecia com o chamado instituto da transposição, que com a falsa justificativa de que o beneficiado já servidor público era, guindava-o para novos cargos e funções de muito maior envergadura e vencimentos que não nutriam, contudo, relação funcional com o cargo de origem, com o beneplácito da legalidade sob o fundamento de que primeira investidura já não era. 


II  - A QUESTÃO DA CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA 

Os servidores da Administração direta ou indireta, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como de empregados ou servidores de suas subsidiárias e controladas não podem ser contratados temporariamente.

Os contratados temporariamente não podem receber atribuições, funções ou encargos não previstos no respectivo contrato, ser nomeados ou designados, ainda que a título precário ou em substituição, para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança, nem terem a sua contratação renovada, exceto nos casos de assistência a situações de calamidade pública, mediante prévia autorização do Ministro de Estado ou Secretário da Presidência competente.

As infrações disciplinares atribuídas ao pessoal contratado nos termos desta eram apuradas por sindicância, concluída no prazo de trinta dias e assegurada ampla defesa.

O contrato firmado extinguia-se, sem direito a indenizações, pelo término do prazo contratual ou por iniciativa do contratado.

O contratado temporariamente tinha o tempo de serviço prestado contado para todos os efeitos.

A partir de 1995, o Presidente da República editou nada menos do que 46 Medidas Provisórias com a numeração 1.887, que, apreciadas pelo Congresso Nacional, originaram a Lei nº 9.849 de 26 de outubro de 1999 que trata do assunto primeiramente trabalhado pelo legislador na lei de 1993.

Publicada em uma edição extra do Diário Oficial da União em 27 de outubro do mesmo ano, a Lei nº 9849 alterou os arts. 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º e 9º da Lei nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993.

Outra Lei federal ordinária, a de número 10.667, de 14 de maio de 2003, também tratou do assunto inicialmente previsto pela Lei nº 8.745. A primeira modificou os arts 2º, 3º, 4º, 5º e 7º e 12 da lei de 1993.

Era época de um modelo liberal financista que orientou o governo Fernando Henrique Cardoso, que muito se identificava com o de Clinton, pelo partido democrata, nos Estados Unidos.

As modificações realizadas para a contratação temporária de servidores públicos foram distintas.

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Primeiramente destaca-se o acréscimo ao texto do art. 2º, inciso III, que previa a realização de recenseamentos como hipótese de necessidade de contratação temporária, da previsão de outras pesquisas estatísticas realizadas pela fundação IBGE.

Com relação a situação desses servidores temporários, Adilson Abreu Dallari (Regime constitucional dos servidores públicos, 2º edição, pág. 126) entendia que “deve ser estipulado o processo de seleção do pessoal a ser contratado, já que a temporariedade não justifica sejam postergados os princípios da isonomia, da impessoalidade e da moralidade”. Não seria necessário, para a sua contratação, o rigor de um concurso público, mas não poderia ser uma escolha pessoal, subjetiva, imotivada, sem qualquer critério objetivo.

Mas, veja-se bem, é preciso atender ao espírito da Constituição Federal, evitando um arrombamento dessa abertura que é dada para contratação dos servidores temporários, impedindo que essa contratação temporária sirva, como já serviu antes da Constituição de 1988, para contornar a exigência do concurso público levando á admissão indiscriminada de pessoal, em detrimento do funcionalismo público.

Mas, de toda sorte, a contratação somente seria feita a título excepcional para atender a necessidades urgentíssimas da Administração. Não mais que isso.

Em síntese, é nula a contratação de servidor sem a prévia observância de prévia aprovação em concurso público. Não há geração de quaisquer efeitos jurídicos válidos em relação aos empregados eventualmente contratados, ressalvados os direitos à percepção dos salários referentes ao período trabalhado, e, nos termos do art. 19 – A da Lei 8.036/90, ao levantamento dos depósitos efetuados no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS.

III – A AMPLIAÇÃO DO SERVIÇO TEMPORÁRIO SERIA UMA TENTATIVA INCONSTITUCIONAL?

Como acentuou a Folha de São Paulo, em seu editorial, em 4 de março de 2020, esperava-se uma iniciativa emergencial para reforçar o atendimento do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), mas a medida provisória 922, editada na segunda-feira, dia 2 de março, foi muito além disso.

A norma baixada pelo governo Jair Bolsonaro estende a diversas atividades administrativas a possibilidade de contratação de servidores em caráter temporário, incluindo aposentados, sem concurso. Não por acaso, a MP despertou especulações sobre seus objetivos.

Desta vez, criam-se ao menos oito novas possibilidades de contratação de servidores temporários, entre elas obras e serviços de engenharia, pesquisa e desenvolvimento de produtos e serviços, redução de passivos processuais ou de volume de trabalho acumulado.

A MP ainda reduz as exigências de divulgação dos processos seletivos simplificados (que substituem os concursos públicos nesses casos) e os torna dispensáveis em um número maior de situações.

Em resumo, teríamos novas modalidades: 

- Pesquisa e desenvolvimento de produtos e serviços, no âmbito de projetos com prazo determinado, com admissão de pesquisador ou de técnico com formação em área tecnológica. Prazo de até 4 anos, prorrogáveis até atingir total de 8 anos.

- Atividades necessárias à redução de passivos processuais ou de volume de trabalho acumulado. Prazo de até 4 anos, prorrogáveis até atingir total de 5 anos.

- Atividades preventivas temporárias com objetivo de conter situações de grave e iminente risco à sociedade que possam ocasionar incidentes de calamidade pública ou danos e crimes ambientais, humanitários ou à saúde pública. Prazo de seis meses, prorrogáveis até atingir total de 2 anos.

* Em caso de contratação de servidor aposentado, prazo total máximo, incluindo prorrogações, é de 2 anos.

Mudanças em modalidades existentes

- Retirada da menção exclusiva a atividades nas Forças Armadas para contratação temporária que atenda a projetos temporários na área industrial ou a encargos temporários de obras e serviços de engenharia. Prazo total máximo de 4 anos.

- Retirada da menção a “atividades técnicas especializadas” para contratações temporárias necessárias à implantação de órgãos ou entidades, ou de novas atribuições definidas para organizações existentes, ou aquelas decorrentes de aumento transitório no volume de trabalho. Prazo de até 4 anos, prorrogáveis até atingir total máximo de 5 anos.

O alcance da MP é muito mais amplo do que o escopo inicial de permitir a contratação de servidores aposentados para ajudar a diminuir a fila de 1,9 milhão de pedidos de benefícios previdenciários e de assistência social. Estratégia semelhante foi adotada pela equipe econômica no Programa Verde Amarelo, que não só flexibilizou a contratação de jovens, mas trouxe mudanças apontadas como uma segunda fase da reforma trabalhista.

O texto editado permite, desta forma, a contratação temporária, sem concurso público, quando houver necessidade de redução de passivos processuais ou de volume de trabalho acumulado. Esse é o caso da fila do INSS, mas outros órgãos poderão se encaixar nessa situação e recorrer ao instrumento. A MP ainda amplia a contratação para outras situações e atividades, incluindo para funções que ficarão “obsoletas” no curto e médio prazos, sem dizer quais atividades são essas.

A remuneração é definida à parte e pode ser concedida por produtividade ou por jornada de trabalho. Essas condições permitem ao governo economizar com pessoal, já que os temporários custam bem menos do que os concursados. Além disso, em momento de restrição fiscal, seria possível dispensá-los com maior facilidade.

Ora, o texto é por demais abrangente, representando uma edição de uma reforma administrativa, além dos limites da Constituição, que determina o concurso público como regra na entrada do servidor no serviço público.

Haverá razões de interesse público que determinam tamanha amplitude? Certamente, não. O certo é que o modelo que o atual governo quer estabelecer é próprio de uma conjuntura neoliberal onde haja a menor participação do Estado nos gastos. Sendo assim, nesse aspecto, se permitiria adotar tal solução. Mas há um limite: a Constituição, que determina como norma impositiva o concurso público para preenchimento das vagas no serviço público.

Fica nítido o interesse do atual governo em desestruturar o serviço público da maneira como ele está. Ora, se assim quer, não será por medida provisória, norma típica primária, cuja urgência, para o caso, é questionável, mas por reforma da Constituição, norma paratípica.

Caberá ao Supremo Tribunal Federal dar a palavra final.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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