3. A Constituição de 1988 e o Mercado
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88) houve campo democrático para transformações substanciais no ensino jurídico. Vários direitos e garantias haviam sido introduzidos no ordenamento jurídico brasileiro pela nova CF/88 e essa onda cidadã permitiria inovações nos cursos de Direito.
No início da década de 90, as estatísticas davam conta de que no Brasil havia 186 cursos de Direito no país, os quais mantinham a mesma estrutura curricular tradicional desde a reforma de 1973. O resultado dessa política era a existência de um ensino reprodutor, deformador e insatisfatório na preparação de bacharéis para um mercado profissional saturado, conforme relata MELO FILHO (1993, p.09).
Tais aspectos da crise "crônica" do ensino jurídico agora floresciam com toda a sua intensidade. Não havia mais o crescimento econômico do "milagre brasileiro" a absorver a vasta gama de profissionais "fabricados", com a formação minimamente técnica requerida. As exigências do momento demandavam profissionais do Direito, com qualificação superior àquela fornecida pelo ensino jurídico tradicional, aptos ao enfrentamento da complexidade dos conflitos, até então contidos pelo autoritarismo, cujo reconhecimento vinha no embalo da Constituição Federal de 1988.
Enfim, a liberdade de expressão abriu possibilidades ao amplo e livre debate sobre os problemas do ensino jurídico brasileiro, sobre a formação profissional tradicional do bacharel e sobre o Direito e a Justiça.
Das repercussões sociais da crise dos cursos de Direito, a OAB, por meio de sua Comissão de Ensino Jurídico, desde 1992 iniciou um estudo nacional buscando uma "reavaliação da função social do advogado e de seu papel como cidadão"10.
Começou-se pela realização de estudos e avaliações sobre as condições dos cursos de Direito no Brasil, tendo, como parâmetro regulador, a Resolução CFE n. 03/72, até aquele momento ainda responsável pelas diretrizes do ensino jurídico.
Acompanhando as grandes repercussões desse processo de avaliação do ensino jurídico, da Comissão de Ensino Jurídico da OAB, surgiu a Comissão de Especialistas em Ensino Jurídico da SESu/MEC.
A conclusão desse processo de análise auto-avaliativa da práxis dos cursos de Direito resultou na elaboração do texto final da Portaria 1.886/94 do MEC, revogando a Resolução CFE n. 03/72 e passando a regular as diretrizes curriculares mínimas para os cursos de Direito no Brasil.
Sem uma atuação maior do Estado, a Portaria 1.886/94 poderia ter seguido os mesmos caminhos da regulamentação anterior. Todavia, a presença de outras regras, entre as quais a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96), permitiram a criação de um sistema de avaliação do ensino superior sob o encargo do Estado, cujos maiores instrumentos seriam o Exame Nacional de Cursos (Lei 9.131/95), voltado à avaliação do desempenho discente, e as Avaliações Institucionais Externas, voltadas à análise das condições de ensino das Instituições de Ensino Superior (IES).
As modificações e as inovações da Portaria 1.886/94, reforçadas por uma política estatal de fiscalização e avaliação periódica das IES, repercutiram positivamente no cenário educacional do Direito. O intervencionismo estatal chegara com meio século de atraso no ensino jurídico.
No tocante aos conteúdos, a adoção de um currículo mínimo e a obrigatória composição desse com disciplinas regulares, cumprindo um mínimo de 3.300 horas de carga horária de atividades.
Outras inovações qualitativas da Portaria 1.886/94, superando as reformas anteriores, vieram pela criação de novas atividades nunca exigidas perante os cursos de Direito, entre elas, a monografia final, o cumprimento de carga horária de atividades complementares e a obrigatoriedade de cumprimento do estágio de prática jurídica.
No aspecto estrutural, a Portaria 1.886/94 criou a exigência de que cada curso de Direito mantivesse um acervo jurídico de, no mínimo, "dez mil volumes de obras jurídicas e referência às matérias do curso, além de periódicos de jurisprudência, doutrina e legislação". Na parte do estágio, passou a exigir a criação de um "Núcleo de Prática Jurídica" dotado de "instalações adequadas para treinamento das atividades profissionais"11.
Como crítica, os aportes da Portaria 1.886/94, mesmo ao inovarem e tentarem superar o aspecto das reformas limitadamente curriculares, deixaram ainda exposto o maior dos espaços de aprendizagem, a sala de aula, porquanto é na sala de aula que a herança liberal continua a reproduzir seu modelo pedagógico tradicional. Este é o locus privilegiado ainda fechado às reformas: o seu "ponto de produção"12.
No estudo dos motivos da Portaria 1.886/94, RODRIGUES (1995, p.122) afirma existirem os seguintes pressupostos dessa norma:
"(a) o rompimento com o positivismo normativista;
(b) a superação da concepção de que só é profissional de Direito aquele que exerce atividade forense;
(c) a negação de auto-suficiência ao Direito;
(d) a superação da concepção de educação como sala-de-aula;
(e) a necessidade de um profissional com formação integral (interdisciplinar, teórica, crítica, dogmática e prática)."
Como esses cinco pressupostos supracitados se realizam na sala de aula e por mais que a Portaria 1.886/94 tivesse por princípio retirá-la do centro das atividades do ensino jurídico, o arquétipo liberal ainda se realiza, pois é a sala de aula o local onde os estudantes continuam a permanecer durante grande parte de seus cinco anos de curso de Direito, ou seja, na maioria das 3.300 horas de atividades exigidas durante o curso.
Daí a crítica de que todas as reformas até hoje realizadas partiram do plano exógeno, com a finalidade de atingir o plano endógeno do curso. O tipo do medicamento geralmente aplicado, o remédio curricular, nunca se demonstrou ideal para a patologia em questão, pois o arquétipo liberal vem sendo mantido e, agora, revigorado pela tendência do Estado Neoliberal.
Nesse ciclo de reprodução histórica de um padrão nos cursos de Direito, o seu "ponto de produção" ainda não pôde ser atingido de dentro para fora, ou seja, na evolução do ensino jurídico no Brasil ainda não ocorreu uma reforma voltada para a construção de inovações pedagógicas dentro das salas de aula, como se propunha com a Escola Nova.
Para PÔRTO (2000), essa estratégia de transformação pode ser obtida pela ocupação das "brechas" do projeto pedagógico dos cursos, como alternativas de paulatina modificação do ensino jurídico. Isso demonstra que é necessária a construção de novas propostas, capazes de modificar o modelo existente no ensino jurídico. Dessa feita, surge um "risco do aprendizado" a ser buscado.
Nesse sentido, complementa FACHIN (2000, p.06):
"No horizonte a vencer, o que se diz é tão relevante quanto como se diz. Daí, a perspectiva inadiável de revirar a práxis didática. Sair da clausura dos saberes postos à reprodução e ir além das restrições que o molde deforma." (grifo nosso)
Desse convite de superação origina-se um chamado à "humanização". Uma possibilidade de que, mesmo sob a hegemonia liberal e do mercado do ensino jurídico em contínua ampliação, sejam criados mecanismos estratégicos em seu interior, voltados a "revirar a práxis didática" e a transformá-la em um ato de efetiva emancipação social.
O desafio de mudanças se intensifica quando se observa o crescimento acelerado dos cursos de Direito nos últimos anos. Acompanhando a tendência histórica, a abertura democrática, somada aos ideais do neoliberalismo, trouxe a maior explosão mercantil de cursos de Direito, hoje, acima da casa dos oitocentos.
No ano de 2005, as tentativas de Reforma Universitária e as recentes criações de novos instrumentos de avaliação dos cursos superiores ainda necessitam maior acompanhamento para se avaliar sua eficácia.
CONCLUSÃO
Historicamente, o Ensino Jurídico Brasileiro foi construído sobre a matriz do modelo Liberal. A partir da cristalização desse modelo, baseado na adoção de currículos privatistas e metodologias pedagógicas tradicionais, mudanças pouco ocorreram na evolução histórica dos cursos de Direito.
A influência de um modelo tardio de Estado Social intervencionista, chocou-se com o paradoxo de expansão do mercado do ensino jurídico, na década de 90.
As mudanças qualitativas, ao não adentrarem ao ponto principal de produção do ensino, a sala de aula, omitiram-se do enfrentamento do centro da crise histórica, a qual se configura pelo afastamento da academia do contexto da realidade social.
Esse cenário sugere o desafio dos próximos anos, num espaço acadêmico marcado historicamente por forças que se reproduziram e se mantiveram. Daí a chamada para novas problematizações emancipatórias sobre o assunto.
NOTAS
2. Situado em Portugal, trata-se do ponto territorial mais avançado do continente Europeu, em direção ao Oceano Atlântico.
3. "O positivismo da ciência jurídica do séc. XIX tinha, com a formação de um sistema fechado de direito privado e de uma teoria geral do direito civil, não apenas imposto pela primeira vez no direito positivo as exigências metodológicas do jusracionalismo, mas tinha ao mesmo tempo exprimido do ponto de vista científico e justificado do ponto de vista espiritual a imagem jurídica da sociedade civil do seu tempo." WIEACHKER, Franz. História do direito privado moderno. p.628.
4. SIQUEIRA, Márcia Dalledone. Faculdade de Direito, 1912-2000. p.35
5. "Esse debate se acirrou no centenário da fundação dos Cursos Jurídicos no Brasil – 1927, mas apesar das reformas de ensino da 1.a. República, não houve mudança significativa no ensino jurídico." SIQUEIRA, Márcia Dalledone. op.cit. p.34-35.
6. Segundo o Dicionário Aurélio, "lente" é um sinônimo obsoleto do termo professor, mas, de acordo com a revisão bibliográfica realizada, usualmente utilizado no período histórico em análise.
7. "Examinandos os quinze anos de evolução do ensino jurídico (1930-1945), vamos verificar que os resultados apresentados foram bem mofinos. Enquanto que no campo econômico e social as transformações eram bem significativas, no setor educacional nenhum sério esforço se realizava; inclusive em matéria de ensino superior, os cursos jurídicos mantinham-se na mesma linha estacionária." VENÂNCIO FILHO, Alberto. op.cit. p.311.
8. "A luta dos inovadores liberais começara por volta de 1924 quando se reuniram em torno de uma Associação, a ABE (Associação Brasileira de Educação), criada naquele ano e que culminou em 1932 com o Manifesto dos pioneiros da educação nova e a realização de várias Conferências Nacionais de Educação, entre as quais as mais importantes desse período foram a IV e a V, nas quais as duas ideologias se defrontaram." GADOTTI, Moacir. Concepção dialética da educação. p.111.
9. "A escola nova não conseguiu ser totalmente implantada porque suas proposições, que implicavam uma sensível mudança qualitativa do nosso sistema de ensino, encontraram, como obstáculo, a mentalidade reacionária e tradicionalista de certos educadores." COTRIM, Gilberto; PARISI, Mário. Fundamentos da educação. p.270.
10. CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. OAB. Ensino jurídico. Parâmetros para elevação de qualidade e avaliação. p.13.
11. Cf. art. 5 e art. 10 da Portaria 1.886/94 do MEC.
12. "Primeiro, a crise atual do ensino jurídico é generalizada com raízes estruturais na crise do estado e da sociedade sendo que nenhum dos atores individuais tem responsabilidade única pela resolução das deficiências do ensino jurídico. Segundo, as soluções mais eficazes terão origem no ponto de produção, ou seja, no âmbito das faculdades e do corpo docente; isto implica uma luta pela incorporação de novo conteúdo e métodos de ensino por parte dos profissionais envolvidos." FELIX, Loussia P. Musse. Considerações acerca das perspectivas de avaliação dos cursos jurídicos... p.83.
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