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A guerra fiscal que não interessa a ninguém

O ano de 2004 foi positivo para o Estado de São Paulo, que comemorou o crescimento da economia e com ela o crescimento da arrecadação do ICMS, seu principal imposto, que responde por 2/3 da receita líquida de São Paulo.

A euforia, no entanto, merece ser temperada pela observação de que a participação relativa de São Paulo no ICMS arrecadado no país diminuiu 12,5% desde 1998, tendo atingido o seu ponto mínimo histórico de 31 % em janeiro de 2004.

Gráfico da participação relativa do Estado de São Paulo no PIB e na arrecadação de ICMS.

Podemos apontar como uma das principais causas da queda da participação paulista na arrecadação do ICMS no Brasil a "Guerra Fiscal" travada entre os Estados, que tem prejudicado as finanças de diversas Unidades da Federação e comprometido as perspectivas da manutenção da arrecadação do ICMS no longo prazo.

O conjunto de práticas de concessão de benefícios irregulares de ICMS, conhecida popularmente como Guerra Fiscal, esconde, sob a mesma denominação, duas formas de atuação distintas, que passaremos a denominar de Guerra Fiscal Industrial e Guerra Fiscal Comercial.

A Guerra Fiscal Industrial consiste na concessão de benefícios irregulares de ICMS para indústrias de transformação e tem uma lógica fundamentada na ideologia de promoção do desenvolvimento local, integrando-se às demais políticas públicas de médio e longo prazo de estímulo ao crescimento da atividade econômica nos Estados menos desenvolvidos do Brasil. É inegável que a atração de indústrias pela concessão de benefícios fiscais industriais é prejudicial a São Paulo, como se constata quando se analisa a participação paulista no PIB industrial brasileiro. Todavia, a guerra pela atração de indústrias confronta valores importantes, sendo sempre relevantes os argumentos tanto de quem defende a preservação da arrecadação de ICMS, quanto dos que exaltam a necessidade de promoção da redução das desigualdades regionais brasileiras. Embora acreditemos que a Guerra Fiscal Industrial seja mais prejudicial do que benéfica para o país, esta espécie de Guerra Fiscal não será o foco deste artigo.

A Guerra Fiscal Comercial, que avaliaremos mais minuciosamente, é completamente diferente. Muito prejudicial à arrecadação de ICMS e à livre concorrência entre empresas, é baseada em políticas imediatistas e predatórias dos Estados que a promovem. Tal espécie de Guerra não gera nenhum incremento da atividade econômica ou desenvolvimento dos Estados que a realizam, razão pela qual não pode ser justificada pela ideologia de promoção de desenvolvimento regional.

Ao conceder um benefício fiscal para um comerciante (atacadista ou distribuidor) o Estado, que passaremos a chamar de "hospedeiro", não tem por objetivo gerar empregos ou atrair investimentos permanentes em seu território. Na realidade, busca usurpar uma parcela do ICMS que caberia originalmente a outros Estados, fazendo circular em seus territórios mercadorias que, não fosse o benefício tributário, jamais passariam por ali.

A lógica por trás da Guerra Fiscal Comercial tem respaldo na forma pela qual foram definidas pelo Senado Federal as alíquotas do ICMS nas operações interestaduais e pela característica do ICMS ser um tributo não cumulativo (o imposto cobrado anteriormente reduz o imposto devido nas operações seguintes).

Quando uma mercadoria sai dos Estados do Sul e Sudeste (exceto o Espírito Santo) com destino aos Estados do Norte, Nordeste e Centro Oeste a alíquota do ICMS é de 7%. Quando sai do Sul e do Sudeste com destino ao próprio Sul e Sudeste a alíquota é de 12%.

Já nas operações em que as mercadorias saem do Norte, Nordeste e Centro Oeste, a alíquota é de 12%, não importando o Estado de destino da mercadoria.

Essa diferença de alíquotas foi definida em 1989 para distribuir a arrecadação do ICMS nas operações interestaduais, contemplando com fatia maior os Estados menos industrializados. Entretanto, desvirtuando o objetivo inicial, alguns Estados tem utilizado essa diferença de alíquota para viabilizar a prática predatória de apropriação da arrecadação do ICMS paulista e de outros Estados, mediante concessão de benefícios tributários ilegais.

Por exemplo: num ambiente de Guerra Fiscal Comercial, uma mercadoria, que normalmente sairia de Guarulhos para ser consumida em Osasco, é remetida para o longínquo Centro-Oeste do Brasil. A mercadoria sai de Guarulhos com 7% de ICMS recolhidos a favor de São Paulo.

O Estado do Centro-Oeste que atraiu a operação recebe 7% de crédito de ICMS, correspondente ao imposto cobrado por São Paulo. Na saída da mercadoria, a alíquota aplicável é de 12%, podendo o Estado cobrar a diferença entre o valor do débito (12%) e o valor do crédito relativo a entrada (7%). No entanto, como a lógica é fazer o atacadista pagar menos ICMS, o Estado "hospedeiro" não cobra integralmente a diferença de 5%. Na verdade, na grande parte dos benefícios fiscais comerciais, a arrecadação efetiva do Estado hospedeiro não passa de 1%, visto que o comerciante recebe um desconto de cerca de 80% do imposto que deveria pagar ao Estado hospedeiro.

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Tabela 1 – A matemática da Guerra Fiscal Comercial

Situações

Guerra fiscal comercial

Interna

Interestadual

Guerra

Industria localizada em

SP

SP

SP

Valor da compra de insumos

100,00

100,00

100,00

Crédito de ICMS na compra (18%)

18,00

18,00

18,00

Valor da mercadoria sem ICMS

82,00

82,00

82,00

+ Custo industrial

30,00

112,00

112,00

112,00

+ Margem

30%

145,60

145,60

145,60

Alíquota de ICMS na saída %

18%

7%

7%

Valor do ICMS na saída

31,96

10,96

10,96

Valor da operação de saída

177,56

156,56

156,56

ICMS apurado em % da saída

7,9%

-4,5%

-4,5%

Valor ICMS a recolher (SP)

13,96

-7,04

-7,04

Atacado localizado em

SP

CO

CO

Valor da operação de entrada

177,56

156,56

156,56

Crédito de ICMS na compra

31,96

10,96

10,96

Valor da mercadoria sem ICMS

145,60

145,60

145,60

+ Margem

20%

174,72

174,72

174,72

Alíquota de ICMS na saída %

18%

12%

12%

Valor do ICMS na saída

38,35

23,83

23,83

Valor da operação de saída

213,07

198,55

198,55

ICMS apurado em % da saída

3,0%

6,5%

6,5%

Valor ICMS a recolher

6,39

12,87

12,87

Desconto do ICMS a pagar (* 80%)

10,29

Valor ICMS pago

6,39

12,87

2,57

Varejo localizado em

SP

SP

SP

Valor da operação de entrada

213,07

198,55

198,55

Desconto financeiro (** 1/2 Desc)

5,15

Crédito de ICMS na compra

38,35

23,83

23,83

Valor da mercadoria sem ICMS

174,72

174,72

169,57

+ Margem extra (*** 1/4 desc)

2,57

+ Margem

30%

227,14

227,14

223,02

Alíquota de ICMS na saída %

18%

18%

18%

Valor do ICMS na saída

49,86

49,86

48,96

Valor da operação de saída

277,00

277,00

271,97

ICMS apurado em % da saída

4,2%

9,4%

9,2%

Valor ICMS a recolher (SP)

11,51

26,03

25,13

Situações

Resumo

Interna

Interestadual

Guerra

Valor do ICMS cobrado por SP

49,86

36,99

36,09

Valor do ICMS cobrado pelo CO

12,87

2,57

Total de ICMS cobrado

49,86

49,86

38,66

Valor em percentual

100,0%

100,0%

77,5%

Carga efetiva de ICMS cobrado

18,0%

18,0%

14,2%

* O desconto de 80% do valor do ICMS a pagar é apenas um exemplo de benefício tributário, mas existem várias modalidades.

** Parte do benefício recebido é transferido ao cliente via desconto

*** O varejista que comprou com desconto cobra uma margem maior

Embora não tribute integralmente a operação, o Estado hospedeiro permite que o contribuinte situado em seu território emita uma nota fiscal em que o ICMS objeto do benefício fiscal aparenta ter sido cobrado com alíquota de 12%. Dessa forma, quando a mercadoria retorna para Osasco, vem acompanhada de uma Nota Fiscal com 12% de crédito para o estabelecimento paulista que a recebe. O estabelecimento que recebeu a mercadoria, passa então a poder utilizar o crédito de 12% constante na nota fiscal para diminuir o ICMS devido para São Paulo em razão de suas operações. O Estado de São Paulo, que só arrecadou 7%, perde a diferença entre os 7 e 12%, em razão da existência do benefício ilegal de ICMS.

A mágica é simples. Ganhando cerca de 1% sobre o valor da operação, o Estado do Centro-Oeste causa uma perda de arrecadação 5 vezes maior para São Paulo, reduzindo o ICMS total arrecadado pela cadeia de distribuição (o mecanismo do benefício é detalhado na Tabela 1).

As conseqüências dessa perda podem ser compreendidas quando se compara a perda de arrecadação anual de São Paulo em razão da guerra fiscal (cerca de 4 bilhões de reais) com o total disponível para investimentos no Estado (aproximadamente 2,6 bilhões de reais no ano de 2003), ou seja, se não fosse a guerra fiscal, São Paulo poderia investir em obras e melhorias quase o triplo do montante que tem investido (fonte: relatório do Secretário – ano 2003, disponível em www.fazenda.sp.gov.br ).

Os Estados do Norte e do Nordeste, mais pobres do que São Paulo, também perdem muito com a guerra fiscal de atacadistas. Uma mercadoria produzida em São Paulo e vendida diretamente para um comerciante de Pernambuco é tributada com alíquota interestadual de 7% de ICMS permitindo ao Estado de Pernambuco cobrar a diferença entre 7% e 17% (alíquota interna). Devido à Guerra Fiscal Comercial é comum esta mercadoria passear pelo Centro-Oeste, onde os 7% (devido ao Estado de São Paulo) são transformados em 12%, mediante um recolhimento adicional de 1% para o Centro Oeste. Após este passeio, o Estado de Pernambuco pode cobrar apenas a diferença entre 12% e 17%. O ICMS que caberia originalmente à Pernambuco fica reduzido em até 50%, prejudicando a capacidade de investimento e promoção do desenvolvimento regional do Estado.

É de fundamental importância notar que o Distrito Federal, um dos maiores promotores da Guerra Fiscal de atacadistas, tem a maior renda per capita e índice de desenvolvimento humano dentre todas as Unidades Federadas Brasileiras e que Goiás, outro notório promotor da Guerra Fiscal Comercial, encontra-se acima da média nacional nos dois quesitos, em patamar muito mais confortável do que o do Nordeste (fonte relatório das Nações Unidas, disponível em www.pnud.org.br).

O ganho do Estado hospedeiro no curto prazo se traduz em custos enormes para a sociedade, consistentes no aumento do consumo de combustíveis causado pelo deslocamento inútil de mercadorias, pela poluição do ar causada por motores a diesel funcionando sem necessidade, pelo uso desnecessário da já sucateada malha viária nacional, pelo aumento dos roubos de carga e dos gastos com o policiamento necessário ao seu combate, entre outros.

Além disso, os ganhos ficam concentrados em poucas empresas grandes, que geralmente abrem estabelecimentos em diversos Estados e fazem a mercadoria circular, sem trocar de mãos, com a única finalidade de fabricar créditos de ICMS, enriquecendo-se à custa da sociedade. Não são gerados novos empregos, mais renda ou atividade econômica.

As empresas de atacado ou distribuidores que não tem benefícios tão generosos não conseguem competir. Cria-se estímulo à concentração de mercados, o que dá margem ao aumento de preços no longo prazo. Também surge daí uma tendência ao aumento da informalidade, que se busca de todas as formas combater no Brasil.

Assim, quando se ouve falar que a Guerra Fiscal promove o desenvolvimento regional, há que se questionar sobre qual das guerras se está falando.

Uma coisa é a Guerra Fiscal Industrial. Pode-se até tentar defendê-la com base na promoção do desenvolvimento regional. Outra espécie de guerra é a comercial. Essa última somente traz prejuízos a São Paulo e ao país, devendo, a todo custo ser combatida pela sociedade brasileira. Para tanto, faz-se necessária a redução e unificação das alíquotas do ICMS em operações interestaduais num patamar único nacional, de modo que se desarticule a viabilidade do passeio de mercadorias.

Parte do esforço da sociedade brasileira no sentido de modernizar e melhorar o hoje caótico sistema tributário nacional deve se concentrar na eliminação das políticas tributárias predatórias, que criam privilégios, desequilibram a concorrência e beneficiam alguns em detrimento da coletividade. A Guerra Fiscal Comercial, sendo o exemplo maior do que pode ser uma política tributária irracional e desastrada, deve ser a primeira política a ser perseguida e expurgada do seio da sociedade brasileira.

Quanto à redução das desigualdades regionais e promoção do desenvolvimento econômico, acreditamos que esta deva ser uma meta séria, perseguida por políticas públicas de longo prazo, respaldadas pelos Parlamentos, e não relegada à condição de simples desculpa para a criação de privilégios arbitrários, ilegais e concentradores das riquezas da sociedade nas mãos de poucos, sob a famigerada alegação de que os fins justificam os meios.

Sobre os autores
Rodrigo Frota da Silveira

Graduado em Administração e Direito. Mestre em Administração (FEA USP). Juiz do TIT (Tribunal de Impostos e Taxas de SP). Professor Assistente Fiscal da Fazesp - Escola Tributária da SEFAZ/SP.

Fábio Roberto C. Castilho

consultor tributário da Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo, juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo, mestre em Administração pela Universidade de Pittsburgh, especialista em Direito Tributário pelo IBET/IBDT

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVEIRA, Rodrigo Frota; CASTILHO, Fábio Roberto C.. A guerra fiscal que não interessa a ninguém. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 974, 2 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8022. Acesso em: 23 dez. 2024.

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