DENÚNCIA CRIMINAL COM RELAÇÃO AO HOMICÍDIO DE HERZOG
Rogério Tadeu Romano
Após determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o Ministério Público Federal (MPF) apresentou ontem denúncia criminal contra militares, policiais, peritos e um procurador de Justiça sob a acusação de terem participado da tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog e, posterior, fraude processual e acobertamento dos autores do crime. Trata-se da primeira vez – 45 anos depois do delito – que uma acusação formal é apresentada à Justiça.
A tramitação do caso Herzog se difere de outras denúncias apresentadas pelo MPF contra militares e policiais envolvidos nos crimes cometidos contra opositores na ditadura militar. Uma decisão da CIDH em 2018 determinou que o Estado brasileiro investigasse, processasse e punisse os autores do delito ocorrido em 25 de outubro de 1975 nas dependências do Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército (SP).
O DOI apurava a relação de jornalistas com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), então clandestino. O MPF acusa na denúncia dois militares pelo assassinato: o então chefe da 2.ª Seção do 2.º Exército, coronel José Barros Paes, e o então comandante do DOI, coronel Audir Santos Maciel. “O homicídio praticado pelos denunciados foi cometido com emprego de tortura, consistente na inflição intencional de sofrimentos físicos e mentais agudos contra a vítima, com o fim de intimidá-lo e dele obter informações”, escreveu a procuradora da República Ana Letícia Absy.
Os dois coronéis são ainda acusados com o carcereiro Altair Casadei de fraude processual porque teriam montado a cena do crime para induzir a Justiça a acreditar que o jornalista se matara. Os então médicos-legistas Henri Shibata e Arildo de Toledo Viana são acusados de fazer uma falsa perícia para encobrir o crime.
Por fim, o procurador Durval Ayrton Moura de Araújo é acusado de prevaricação porque teria ajudado a encobrir o crime, deixando de fazer constar nos depoimentos das testemunhas as denúncias de tortura contra o DOI. Os depoimentos faziam parte do Inquérito Policial-Militar (IPM) do Exército que apurou o caso. O IPM concluiu que o jornalista se suicidara.
Intimado a "prestar esclarecimentos", o diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, Vladimir Herzog, apresentou-se no dia 25 de outubro de 1975 ao DOI-Codi (Destacamento de Operações e Informações-Centro de Operações e Defesa Interna) subordinado ao comando do II Exército, de São Paulo. Pouco depois, o órgão divulgava sua versão para a morte do jornalista, enforcado dentro de uma cela: suicídio. O caso abriu uma crise no Governo Ernesto Geisel, que planejava a abertura e a extinção da tortura e do assassinato de opositores do regime militar, que vigorava desde 1968.
A versão de suicídio foi, na verdade, uma mentira.
Vale salientar que o rabino Henry Sobel determinou que o corpo de Herzog fosse enterrado no centro do cemitério judaico, para marcar a posição contrária à tese do suicídio de Vlado. O fato mobilizou não apenas importantes setores da oposição, mas até o conservador empresariado paulista.
Em 1978, num processo aberto pela família Herzog, sentença judicial condenou a União como responsável pela prisão, tortura e morte do jornalista, desfazendo a falsa versão de suicídio divulgada em 1975 no relatório do IPM do II Exército, comandado pelo general Ednardo D'Ávila Mello. Em junho de 2013, a Comissão da Verdade decidiu questionar a versão de suicÍdio e abrir novas investigações.
Há no caso a Lei 6683/79 onde foi concedida anistia aos envolvidos com atos criminosos envoltos durante o regime militar.
Foi ajuizada para tanto a ADPF para declarar sua inconstitucionalidade.
Não se trata a anistia de perdão, mas de esquecimento.
Só o homem perdoa, só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar. Porque só uma sociedade que, por ter grandeza, é maior do que os seus inimigos é capaz de sobreviver.” A afirmação é do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, último a votar no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153) em que a Corte rejeitou o pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) por uma revisão na Lei da Anistia (Lei nº 6683/79).
A Ordem pretendia que a Suprema Corte anulasse o perdão dado aos representantes do Estado (policiais e militares) acusados de praticar atos de tortura durante o regime militar. O caso foi julgado improcedente por 7 votos a 2.
O voto vencedor foi do ministro Eros Grau, relator do processo. Ontem, ele fez uma minuciosa reconstituição histórica e política das circunstâncias que levaram à edição da Lei da Anistia e ressaltou que não cabe ao Poder Judiciário rever o acordo político que, na transição do regime militar para a democracia, resultou na anistia de todos aqueles que cometeram crimes políticos e conexos a eles no Brasil entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Além do ministro Eros Grau, posicionaram-se dessa maneira as ministras Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ellen Gracie, e os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso.
Defenderam uma revisão da lei, alegando que a anistia não teve “caráter amplo, geral e irrestrito”, os ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto. Para eles, certos crimes são, pela sua natureza, absolutamente incompatíveis com qualquer ideia de criminalidade política pura ou por conexão.
O ministro Dias Toffoli não participou do julgamento porque estava à frente da Advocacia Geral da União à época em que a ação foi ajuizada e chegou a anexar informações ao processo. O ministro Joaquim Barbosa está de licença médica.
Sobre ela disse o ministro Eros Grau, em entrevista concedida ao Estadão:
“Seguramente, foi o meu voto mais importante no tribunal. Eu havia vivido momentos históricos importantes e sido preso duas vezes. Sabia que a anistia tinha de ser ampla, geral e irrestrita. Era isso que estava por detrás de todas as movimentações antes do surgimento da Lei da Anistia. Além disso, é importante ver o que está escrito na lei e o que está escrito é muito claro. O juiz, seja de 1.ª instância ou ministro de um tribunal superior, é responsável pela correta aplicação da Constituição e das leis. Não vai lá dar sua opinião pessoal e não pode ser vítima de seus sentimentos. Ele deve interpretar a lei ainda que não goste do que diz a lei. Ele terá o dever de proceder prudentemente. Quando falamos de jurisprudência estamos falando de prudência, e não de ciência, de paixão, de arte. É a prudência aristotélica. Ganhei alguns inimigos em razão do voto que dei. Aí entra outro ponto, que é profundamente importante em torno do qual tenho me batido: há uma distinção entre lei e justiça. Um juiz deve aplicar a lei. Ainda que não goste dela eu tenho de aplicá-la. E a justiça não tem nada que ver com a lei. E a justiça, como diz o profeta Isaías (32:15-17): ‘O direito habitará no deserto e a justiça no vergel. O fruto da justiça será a paz. E o efeito da justiça será sossego e segurança para sempre’. Ainda bem que a leis existem, pois, mesmo quando os mais fortes dominam, eles precisam fazer leis que garantam a sobrevivência dos mais pobres. Essa diferença entre lex (lei) e jus (justiça) é fundamental. O que o tribunal fez quando julgou a ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental)? Ele não fez justiça, ele aplicou a lei e a Constituição com serenidade e prudência.”
Para justificar tal entendimento pontuou o ex-ministro Eros Grau:
“O artigo 1.º da Lei 6.683/79 concedeu anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, seu parágrafo 1.º definindo como conexos “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.
No Estado Democrático de Direito o Poder Judiciário não está autorizado a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a qualquer texto normativo. Cabe bem lembrarmos, neste passo, trecho do voto do ministro Orozimbo Nonato no Recurso Extraordinário Criminal 10.177, julgado em 11 de maio de 1948: “Ao Poder Judiciário cabe apenas o encargo de interpretar a lei que traduz a anistia, sua extensão e alcance quanto aos fatos e às pessoas. No que tange ao mais, nada lhe cumpre fazer”.
A anistia da Lei de 1979 foi reafirmada no texto da Emenda Constitucional (EC) 26/85 e pelo poder constituinte da Constituição de 1988. Todos, estão todos como que (re)anistiados pela emenda, que abrange inclusive os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. Por isso não tem sentido questionar se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988. Pois a nova Constituição a (re)instaurou em seu ato originário. A norma prevalece, mas o texto - o mesmo texto - foi sobreposto por outro. O texto da lei ordinária de 1979 resultou substituído pelo texto da emenda constitucional, que a constitucionalizou.
A EC 26/85 consubstancia a ruptura da ordem constitucional que decaiu no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988. Daí que a reafirmação da anistia da lei de 1979 já não pertence à ordem decaída. Está integrada na nova ordem.
De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1.º do artigo 4.º da EC 26/85, existirá a par dele (dicção do § 2.º do artigo 2.º da Lei de Introdução ao Código Civil).
Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma-origem. No bojo dessa totalidade - totalidade que do novo sistema normativo - tem-se que “(é) concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos” praticados no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.”
O Ministro Teori Zavascki deferiu liminar em sede de Reclamação 18.686, para determinar a suspensão de ação penal contra cinco militares acusados de envolvimento no desaparecimento e na morte do deputado federal Rubens Paiva, em janeiro de 1971. “São relevantes os fundamentos deduzidos na presente reclamação. Em juízo de verossimilhança, não há como negar que a decisão reclamada é incompatível com o que decidiu esta Suprema Corte no julgamento da ADPF 153, em que foi afirmada a constitucionalidade da Lei 6.683/1979 (Lei de Anistia) e definido o âmbito da sua incidência (crimes políticos e conexos no período de 02/09/1961 a 15/08/1979, entre outros)”, assinalou o relator.
O ministro ressaltou que a decisão na ADPF 153 tem eficácia erga omnes – para todos – e também efeito vinculante, o que possibilita exigir seu cumprimento por meio de reclamação.
Resta saber se a denúncia aqui noticiada, onde é rememorado o triste episódio da morte de Vladimir Herzog, durante a ditadura militar, será ou não recebida. Se o for, certamente, poderá ser ajuizada reclamação, writ constitucional, para fazer valer aquela decisão do STF na ADPF 153.