A SUSPENSÃO DO ATENDIMENTO DE PEDIDOS POR VIA DE LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO E UM PROJETO DE DEVASTAÇÃO CONSTITUCIONAL
Rogério Tadeu Romano
O presidente Jair Bolsonaro editou na noite dessa segunda-feira, dia 23 de março, uma Medida Provisória que prevê a suspensão do atendimento de pedidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) a todos os órgãos e entidades da administração pública cujos servidores estão sujeitos a regime de quarentena ou home office.
A medida, por outro lado, prioriza as solicitações que tratem de medidas de enfrentamento de emergência de saúde pública.
Pela LAI, todo órgão público deve responder em até 20 dias todo e qualquer pedido feito por um cidadão envolvendo dados, documentos ou informações públicas. O prazo pode ser estendido por mais dez dias corridos.
Com a MP, o prazo de atendimento fica suspenso caso o órgão tenha colocado servidores para trabalhar de casa, exija a presença física do servidor responsável pela resposta ou dependa de agente público ‘prioritariamente envolvido com as medidas de enfrentamento da situação de emergência’.
A suspensão valeria até o fim do estado de calamidade pública, decretado na última sexta-feira, 20, com prazo para vigorar até o fim do ano. Depois disso, o órgão deverá responder normalmente em até dez dias.
Afronta-se a liberdade de informação. Impede-se o acesso à informação por parte da imprensa, em tema necessário ao conhecimento da população.
A imprensa, como revelou José Afonso da Silva( Curso de Direito Constitucional Positivo, 5ª edição, pág. 219), à luz das lições de Albino Greco, Foderaro e Afonso Arinos de Melo Franco(Pela Liberdade de imprensa, in Estudos de Direito constitucional, 1957, pág. 323), desempenha uma função social consistente, em primeiro lugar, em exprimir às autoridades constituídas o pensamento e a vontade popular, colocando-se quase como um quarto poder, ao lado do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. A liberdade de imprensa se constitui uma defesa contra todo excesso de poder e um forte controle sobre a atividade politico-administrativa e sobre manifestações de abuso de relevante importância para a sociedade.
Daí porque deve ser objeto de repulsas esse impedimento à liberdade de informação. Haverá outros meios para a Administração Pública informar diante do quadro de emergência em que se encontra o Brasil diante da pandemia.
Assim nenhuma lei pode embaraçar a plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, nem se admite a censura de natureza política, ideológica ou artística, como se lê da Constituição Federal do Brasil(artigo 220, § 1º e 2º).
Afronta-se algo fundamental que é a liberdade de informação, mantendo-se, dentro de um regime de exceção, a população sem as necessárias notícias sobre o drama criado pela doença.
Como explicaram J.J.Gomes Canotilho e Vital Moreira(Fundamentos da Constituição, 1991, pág. 109), a distinção entre direitos e liberdades faz-se tradicionalmente e com base na posição jurídica do cidadão em relação ao Estado. As liberdades estariam ligadas ao status negativus e, através delas, visa-se defender a esfera jurídica dos cidadãos perante a intervenção ou agressão dos poderes públicos. Daí a doutrina considerar que é por isso que se lhes chama ainda direitos de liberdade, liberdades-autonomia, liberdades de resistência, direitos negativos, direitos civis, liberdades individuais. Eles estão, quase todos, consagrados nesse capítulo da Constituição de Portugal: direito à vida(artigo 24), direito à integridade pessoal(artigo 25), direito à liberdade e à segurança(artigo 27), direito à identidade, ao bom nome e à intimidade(artigo 26), direito à inviolabilidade do domicílio e da correspondência(artigo 34), liberdade de expressão e informação(artigo 37), liberdade de imprensa(artigo 38), liberdade de consciência, religião e culto(artigo 41), direito de deslocação e de emigração(artigo 44), direitos de reunião e de associação(artigos 45 e 46 etc).
Assim, como ainda explicam J.J.Gomes Canotilho e Vital Moreira(pág. 121) o regime próprio dos direitos, liberdades e garantias consiste nos seguintes traços: a) os respectivos preceitos constitucionais são diretamente aplicáveis, o que quer dizer que a sua aplicação não está dependente de intermediação legislativa; b) os mesmos preceitos constitucionais vinculam as entidades públicas e privadas(artigo 18, primeira e segunda parte); c) os referidos direitos fundamentais não podem ser restringidos senão nos casos expressamente admitidos pela Constituição(artigo 18, 2), não havendo nenhuma cláusula geral de admissão de restrição de direitos fundamentais; d) a restrição só pode ter lugar por via de lei(artigo 8º, 2); e) mesmo quando constitucionalmente autorizada, a restrição só se legitima se for exigida pela salvaguarda de outro direito fundamental ou de outro interesse constitucionalmente protegido, e a medida restritiva estabelecida por lei tem de sujeitar-se ao princípio da proibição do excesso ou princípio da proporcionalidade em sentido estrito, com suas três dimensões - necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito – de forma que as restrições se limitem ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos(artigo 18 – 2); f) as leis restritivas têm de revestir caráter geral e abstrato(artigo 18 – 3), não podendo haver leis de caráter individual e/ou concreto(mesmo que formalmente redigidas de forma pretensamente geral e abstrata); g) as leis restritivas estão materialmente vinculadas ao princípio da salvaguarda do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais garantidores de direitos, liberdades e garantias(artigo 18º - 3); h) o exercício destes direitos fundamentais não pode ser suspenso senão em caso de declaração nos termos da Constituição, do estado de sítio ou do estado de emergência(artigo 19); i) contra qualquer ordem que ofenda os direitos, liberdades e garantias existe o direito de resistência dos cidadãos(artigo 21), negando-lhe obediência ou repelindo pela força qualquer agressão; J) eles constituem um limite para as medidas policiais de prevenção criminal(artigo 272 – 3); l) a competência para a sua disciplina legal(restrição, regulamentação, conformação, concretização, etc) constitui poder reservado á AR(artigo 168 /1/b), não podendo o Governo legislar sobre direitos, liberdades e garantias senão no uso de autorizações legislativas(artigo 168) e com respeito delas(artigo 115 – 2); m) estão garantidos contra a revisão constitucional(artigo 288/d e e).
O país, ao que se sabe, não está vivendo estado de sítio ou de emergência.
A quem interessa essa omissão de notícias à sociedade?
O cenário é de devastação constitucional.
Falo do Projeto de Lei 791/2020, que –a título de providências para enfrentar a covid-19– institui medidas que afetam as competências do Judiciário, Ministério Público e da Defensoria Pública.
O projeto pretende criar um Comitê Nacional de Órgãos de Justiça e Controle para prevenir ou terminar litígios, inclusive os judiciais, relacionados ao enfrentamento do novo coronavírus.
Com esse novo mecanismo, o processamento de medidas judiciais ou extrajudiciais por parte dos órgãos federais de Justiça e controle terá como requisito a prévia tentativa de autocomposição perante as chamadas “comissões de autocomposição de litígios” – que seriam compostas por representantes dos órgãos envolvidos no litígio, mediante designação pelos membros do Comitê Nacional de Órgãos de Justiça e Controle, com poderes plenos para firmar acordos.
Impedir o Parquet de funcionar é quebrar uma garantia constitucional que coloca o Ministério Público como órgão fundamental da defesa da cidadania.
Nem um estado de emergência ou de sítio proporiam tais medidas.
Onde está a chefia do Parquet?