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Da adequação dos efeitos dos contratos à nova realidade imposta em decorrência da pandemia de coronavírus

Agenda 24/03/2020 às 16:37

A pandemia do covid-19 (coronavírus) afetou negativamente muitas relações contratuais.Os princípios da função social do contrato e da conservação do negócio jurídico justificam a readequação dos termos das avenças ao quadro atual.

Aspectos introdutórios. Muito se tem escrito sobre as consequências da pandemia do COVID-19 para os contratos.

Excelentes estudos sobre a viabilidade de “quebra antecipada” da avença foram publicados, entre os quais destacamos o do Professor Carlos E. Elias de Oliveira, que faz uma correlação entre tal possibilidade e a análise da vontade presumível das partes[1].

O viés que se pretende dar aqui, porém, é um pouco distinto e diz respeito à necessidade de manutenção das avenças involuntariamente apanhadas pelos efeitos da pandemia de conronavírus, em 2020. Tal estudo não se fará sob o prisma da vontade presumível das partes, mas pela óptica da função social do contrato, e de sua necessária manutenção, para a higidez econômica do país.

Aspectos históricos. As relações privadas podem ser abaladas não apenas por problemas individuais, circunscritos aos respectivos partícipes dos negócios jurídicos, mas por outros, de gravidade comunitária, nacional e não raro internacional. O último deles, talvez o mais grave dos últimos tempos, foi a pandemia de coronavírus, que se iniciou em 2019 e, qual uma onda piroclástica, numa erupção vulcânica, varreu o mundo desde então, deixando-nos atônitos.

Muitas vezes, o Estado com o seu viés regulatório disciplina os efeitos concretos das crises, não apenas determinando liberação de recursos públicos ou reordenando suas políticas, mas, a fim de proteger determinados segmentos de mercado, avança sua ingerência sobre relações tipicamente privadas. Condutas assim são indispensáveis, pois, nos momentos de crise, podem nascer cíclicos descompassos, capazes de engendrar um efeito rebote em novos segmentos, aprofundando o quadro calamitoso.

Interessante exemplo de reordenação de relações jurídicas privadas, embora não derivado de crise tão aguda como a vivenciada, foi a publicação Lei do Zebu (Lei 08/46), que suspendeu, até 30 de julho de 1947, o vencimento de quaisquer obrigações civis, comerciais e fiscais, a que estivessem sujeitos os pecuaristas[2]. Essa norma foi complementada pela Lei 209/48, que dispôs sobre a forma de pagamento dos débitos civis e comerciais de criadores e recriadores de gado bovino, ao longo de alguns meses que se seguiram à sua edição.

 Mais recentemente tivemos o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional - PROER foi um programa econômico brasileiro implementado a partir de  novembro de 1995, cuja finalidade foi a recuperação das instituições financeiras que estavam com graves problemas de caixa. A medida objetivava, segundo autoridades financeiras da época, poderia gerar uma crise econômica sistêmica. Manifestações da época dão a dimensão do problema[3]:

 

Desafio ao Real
O fantasma de uma crise bancária no Brasil é hoje a principal preocupação da equipe econômica, constituindo verdadeiro desafio ao governo. É de tal ordem importante o esforço desenvolvido para o fortalecimento do sistema financeiro que, pode-se afirmar, seu sucesso é a garantia de sucesso do Plano Real. Os bancos, afinal, são fundamentais num processo de crescimento sustentado da economia — a principal meta do real. Na entrevista do dia 17 de novembro em São Paulo, citada anteriormente, o presidente Gustavo Loyola foi enfático: “desafio os críticos do programa de estímulo às fusões a darem um exemplo de país que tenha crescido com estabilidade, de forma sustentada, sem um sistema financeiro forte”. Loyola argumentou também que toda a economia do país gira em torno de bancos. Em vários países que passaram por crise inflacionárias, a poupança fugiu para ativos reais, mas não no Brasil.

 

Mais recentemente, já como fruto da pandameia do coronavírus, o setor aéreo, especialmente afetado pela redução de deslocamentos e fechamento de fronteiras e aeroporteos foi contemplado pela edição da Medida Provisória 925/2020, que dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da covid-19. As relações entre passageiros e companhias aéreas foram especialmente abordadas no artigo 3o da norma, assim redigido:

 

Art. 3º  O prazo para o reembolso do valor relativo à compra de passagens aéreas será de doze meses, observadas as regras do serviço contratado e mantida a assistência material, nos termos da regulamentação vigente.
§ 1º  Os consumidores ficarão isentos das penalidades contratuais, por meio da aceitação de crédito para utilização no prazo de doze meses, contado da data do voo contratado.
§ 2º  O disposto neste artigo aplica-se aos contratos de transporte aéreo firmados até 31 de dezembro de 2020.

 

O texto é merecedor de elogios, na medida em que busca equilibrar os interesses das duas partes, diante das adversidades impostas pela pandemia. As empresas aéreas, de um lado, não serão obrigadas a desembolsar imediatamente grandes quantidades de dinheiro, afetando ainda mais o seu fluxo de caixa. Os passageiros, por outro lado, poderão utilizar os créditos, sem sanções outras, pelo prazo de doze meses.

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As três soluções acima expostas, no entanto, foram fruto de regulação legislativa para específicos setores de nossa economia. Nem sempre o legislador poderá regular cada descompasso, mormente experimentado nas quotidianas contratações, em virtude de grandes calamidades ou de aprofundadas crises econômicas. Avulta aqui o espírito conciliador das partes, que devem se manter firmes no propósito de conservarem seus negócios, e, quando este não for o caso, do Poder Judiciário, a encontrar, para cada caso concreto, as saídas mais razoáveis.

Muito se tem falado na possibilidade de rompimento de contratos, lastreada na teoria da resolução por onerosidade excessiva. Pretendemos aqui destacar que essa medida é extrema e só se pode aplicar, caso não haja mecanismos outros de preservação dos pactos. Frise-se que o parâmetro para o desfazimento ou não, deixaria de ser o querer das partes, mas a possibilidade ou não de manutenção do pacto, desde que adequados os seus termos à nova realidade vivenciada.

Do princípio da conservação do negócio jurídico e da função social do contrato a justificar a suspensão da exigibilidade do contrato ou sua adequação. Um negócio jurídico é fruto de uma livre e consciente manifestação de vontade. Essa é a raiz de sua força obrigatória, regada pelo postulado da tutela da confiança, subprincípio da boa-fé, e também pelo princípio da conservação dos negócios jurídicos, a indicar que todo negócio jurídico, ao ser aplicado, deve ter preservado, ao máximo, o seu significado útil[4]: é o que se entende pelo postulado do favor negotii. Além disso, a máxima preservação dos efeitos do negócio jurídico, como regra a ser prestigiada pelos operadores do direito, também se reflete em institutos como a confirmação, a conversão, a redução do negócio jurídico[5] e o reequilíbrio contratual.

Não se pense, porém, que tais institutos acima se desenharam apenas em razão do interesse individual dos contratantes. Elas são fruto igualmente da aplicação do princípio da função social dos direitos. Necessário lembrar que a doutrina tem divisado dois tipos de eficácia para a função social. A mais comum é sua eficácia externa, a impor-nos o respeito aos interesses alheios no momento do exercício do próprio direito. Não menos importante é a eficácia interna do princípio.

Ora, os negócios jurídicos são instrumentos de circulação de riqueza. Há a necessidade de preservação de sua própria higidez e, não raro, de proteger-se um dos contratantes do excesso de poder do outro celebrante. Ganha relevo o que a doutrina tem chamado de eficácia interna da função social do contrato, que foi prestigiada com a produção do Enunciado 360, da Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal: O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes.”

Vale dizer que não é qualquer dificuldade que nos levará ao fim dos contratos, pois os pactos são importantes instrumentos de circulação de riquezas e a sua ruína, elevada a uma escala exponencial, poderá significar a ruína de toda a comunidade. Não se está aqui a proteger a posição particularizada de qualquer um dos celebrantes do negócio. A ruptura, ainda que de pequenos contratos, pode levar a uma reação em cadeia nefasta, adoecendo a economia com a mesma voracidade que o covid-19 o faz entre nós, humanos.

Assim, os operadores do Direito devem manter os seus olhos abertos a fitarem o futuro. Devem vislumbrar além dos interesses imediatos de uma das partes, premida pela necessidade de se livrar do vínculo contratual, sabendo que o desfazimento de uma pequena avença abala o cumprimento de outras tantas, dela dependentes. A solução preferencial, portanto, haverá de ser a readequação das obrigações contratuais, por incidência do artigo 317 do Código Civil, já que vivemos uma situação de intensa anormalidade, com profundo desaquecimento econômico. As alterações contratuais, porém, demandam a análise de alguns requisitos. Vejamos quais seriam.

Dos requisitos para adequação dos contratos ao momento de restrição imposto pela pandemia do covid-19. Como é de sabença geral, a pandemia de coronavírus implicou severa retração econômica para inúmeros setores, embora tenha proporcionado, para poucos, algumas benesses (como se pode imaginar para determinados ramos de comércio focado na entrega de produtos aos que não podem se ausentar de suas residências, apenas para citar um exemplo).

A óbvia constatação se faz para que o primeiro requisito da adequação contratual se estabeleça: setores beneficiados pela crise derivada da pandemia não a poderão invocar, a fim de alterar os seus contratos. Aliás, essa conclusão deriva da própria leitura do artigo 317:

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

A imensa maioria das pessoas, todavia, não se enquadra entre os que foram beneficiados pelas consequências da pandemia. Dificuldades ingentes haverão de surgir no cumprimento dos pactos. Tais contratempos, todavia, não podem, de forma simplista, apontar para a imdiata solução de desfazimento de contratos, devendo a sua readequação, centrada na ocorrência do caso fortuito ou força maior, ser o caminho preferencial.

Novamente, a sua invocação não se dará de forma aleatória. Alguns requisitos deverão ser sopesados e dizem respeito à essência do próprio conceito de caso fortuito ou força maior, a saber[6]: a) inevitabilidade do evento e b) a ausência de culpa por parte daquele que o invoca..

Tem-se, portanto, que a readequação dos termos do contrato haverá de exigir a demonstração dos seguintes requisitos:

  1. Que o novo quadro mercadológico se mostrou demasiadamente prejudicial ao contratante, ao ponto de levá-lo a demandar por ajustes na avença, sob pena de, não o fazendo, ser instalado um quadro de inafastável descumprimento contratual.
  2. Inevitabilidade do evento, que, no presente caso, decorre das inafastáveis e nefastas consequencias da retração econômica engendrada pela epidemia de coronavírus;
  3. Ausência de culpa por parte de quem invoca a incidência do caso fortuito ou da força maior, demonstrando que  o contratante foi diligente e que o insucesso contratual não lhe pode ser imputado.

A análise da efetiva presença dos três requisitos, para cada avença firmada, demandará a percuciente atuação de profissionais do direito a conduzirem, amigavelmente, na maior parte dos casos, a readequação dos contratos para que estes, alteradas algumas cláusulas, possam sobreviver ao momento de crise.

No entanto, como se viu, em decorrência da incidência do princípio da função social dos direitos, em sua eficácia interna, ainda que uma das partes recalcitre e não almeje a readequação contratual, esta pode ser determinada pela pronta atuação do magistrado. Em qualquer uma das hipóteses acima, alguns caminhos se apresentam razoáveis para a manutenção do contrato, a saber: a) a dilação do prazo para cumprimento das obrigações de parte a parte, b) a proporcional redução das recíprocas prestações, e c) a ausência de incidência de cláusulas penais ou de determinações de incidência de juros de mora ou de outras sanções contratuais.

 Conclusões. A crise econômica engendrada pela pandemia de coronavírus haverá de implicar inúmeras consequências às relações contratuais firmadas antes dela. A opção, no entanto, pelo desfazimento das avenças deve ser medida extrema, a ser adotada apenas se a readequação contratual se mostrar impossível. Contemplados os requisitos para a manutenção do contrato, que vão desde a inexistência de intenso desequilíbrio entre as recíprocas prestações, até a demonstração, caso a caso, de que, para a respectiva avença, configura-se uma hipótese de caso fortuito ou força maior, o pacto haverá de ser readequado amigável ou judicialmente.

 


[1] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O Coronavírus, a quebra antecipada não culposa de contratos e a revisão contratual: o teste da vontade presumível. Disponível em: http://www.flaviotartuce.adv.br/artigos_convidados. Acesso em 18 de março  2020.

[2] Breve notícia sobre a medida se encontra em reportagem do Jornal do Brasil, de 11 de maio de 1988, disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/107206/1988_11%20a%2015%20de%20Maio_%20028.pdf?sequence=1. Acesso em 20 de março  2020.

[3] Trecho com manifestações de economistas na época da implantação do Proer, disponível em https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/legado?url=https:%2F%2Fwww.bcb.gov.br%2Fhtms%2Fproer.asp.

[4] LABARIEGA VILLANUEVA, Pedro Alfonso. Los Principios del Derecho Europeo de los Contratos y el Favor Contractus. Disponível em https://archivos.juridicas.unam.mx/www/bjv/libros/5/2348/21.pdf. Acesso em 04/06/2017. Lembra o autor que: “Por un lado, se habla de un principio de conservación del contrato (favor contractus), del negocio jurídico (favor negotii), o más ampliamente del acto jurídico (favor acti); mas por otra parte, se habla de un principio de conservación de la sentencia (favor sententiae) y de otros atos procesales y, en fin, de un principio de conservación de la norma jurídica; en otras palabras, se trata de aspectos particulares del más amplio principio de conservación del acto jurídico, que en una formulación concisa podríra enunciarse así: <todo acto jurídico de sifnificado ambiguo debe, en la duda, entenderse en su máximo significado útil>.”

[5] GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Frederico Eduardo Zenedin. Favor contractus: alguns apontamentos sobre o Princípio da Conservação do Contrato no direito positivo brasileiro e no direito comparado. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Lisboa, n. 1, p. 490-499, 2013.

[6] GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 4.ed. Rio de Janeiro, Forense, 1974, p. 280/281.

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