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A prisão preventiva à disposição de mentalidades inquisitórias

Agenda 26/03/2020 às 20:13

O artigo cuida da prisão preventiva à disposição de mentalidades inquisitórias.

Coautor: Jeffrey Chiquini. Advogado criminalista. Especialista em direito penal e processual penal. Professor de processo penal da Escola da Magistratura Federal do Paraná.

 

Quando da edição da Lei n. 12.403/2011, a preocupação com sua constitucionalidade e consonância com o sistema acusatório era de todo relevante. Agora, embora ainda não superada tal discussão, pensamos que a problemática maior esteja na finalidade daquela reforma.

              A prisão preventiva é, sem dúvidas, um dos institutos processuais mais importantes do processo penal, diante dos seus reflexos ao direito fundamental à liberdade. E a discussão que o envolve ganha cada dia mais seguidores.

              Como já sabemos, a prisão preventiva é espécie do gênero prisão provisória, que se difere, por sua vez, da prisão pena, aquela decorrente de sentença penal condenatória transitada em julgado.

              Mas esta distinção conceitual nunca esteve tão distante da realidade processual brasileira. Isso porque, a forma como a prisão provisória tem sido tratada e utilizada no Brasil faz com que as espécies de prisão sejam equivalentes de um mesmo objetivo: castigar[1].

              Pois, como bem adverte Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “as medidas cautelares e, em especial, a prisão processual tem sido uma forma eficaz (embora inconstitucional) de antecipação de pena”.

              Na prática a prisão preventiva brasileira é mais gravosa e aflitiva que a própria pena privativa de liberdade, pois nesta última o preso conhece o motivo pelo qual está sendo recolhido à prisão e tem a possibilidade de conhecer o dia de sua liberdade. Já naquela, prende-se o ainda imputado tradando-o como se culpado fosse, o fazendo muitas vezes por critérios discricionários do magistrado por razões críticas e pessoais.

              Nosso propósito neste tópico é a análise do desvio de finalidade da prisão preventiva na atualidade do processo penal brasileiro, que a tem transformado em verdadeira medida de antecipação de pena. E isso se dá por inúmeros fatores que acabam estimulando a utilização da prisão preventiva por motivos diversos do seu verdadeiro objetivo.

              O primeiro estímulo à utilização da prisão preventiva como medida de antecipação de pena se dá pela ausência de previsão legal do seu prazo de duração.

              Um dos grandes erros da Lei n. 12.403/2011 foi sua omissão quanto ao prazo de duração das medidas cautelares restritivas da liberdade. Na ausência de previsão legal do seu prazo de duração, a prisão preventiva persistirá enquanto subsistirem os motivos que ensejaram sua decretação.

              Mas a submissão da prisão preventiva através desse impreciso e vago conceito, tem fomentado sua duração por prazo além do razoável e necessário aos motivos de sua criação, facilitando sua utilização por motivos diversos do seu verdadeiro objetivo.

              O amparo da prisão preventiva na cláusula “rebus sic stantibus” traz ao custodiado a tortuosa sensação de submissão à prisão perpétua, diante da inimaginável data de sua possível liberdade.

              Não bastasse, a doutrina e a jurisprudência encontraram ainda uma forma de legitimar a utilização da prisão preventiva como instrumento de castigo e de antecipação de pena, através da distorção do princípio da proporcionalidade exigindo compatibilidade entre a prisão preventiva e eventual pena privativa de liberdade.

              A criação deste princípio tinha como objetivo a imposição de limitação na duração da prisão preventiva diante da omissão legislativa. A finalidade do princípio da proporcionalidade na duração da prisão preventiva era no sentido de não ser razoável sua utilização e manutenção em crimes que, em havendo sentença condenatória, não seria o apenado recolhido à prisão. Mas na prática teve resultado inverso e, como dito, pacificou a possibilidade de antecipação da pena através da prisão preventiva tornando-a um eficaz instrumento de castigo.

              A interpretação que passou a ser feita sobre o princípio da proporcionalidade é no sentido de que a manutenção da custódia cautelar deve ser compatível com o regime que poderá ser fixado em eventual sentença condenatória. É o mesmo que admitir a utilização da prisão preventiva pelo prazo que a pena privativa de liberdade seria (ou será) cumprida em regime fechado, invalidando o devido processo legal, tornando desnecessário o exercício do contraditório e da ampla defesa.

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              A Lei n. 12.403/2011 criou novos critérios na utilização das medidas cautelares restritivas da liberdade. Impôs, além da observância da necessidade da restrição cautelar da liberdade, a adequação das medidas às circunstâncias do caso concreto, exigindo, ainda, seja a prisão preventiva a última das medidas na restrição cautelar da liberdade.

              Na atualidade do processual penal brasileiro para se prender alguém preventivamente, diante da vasta maleabilidade argumentativa, tem sido suficiente a utilização de argumentos de autoridades e de manifestações de caráter pessoal, através da exaltação da gravidade do crime ou de manifestos contra a impunidade.

              A Constituição da República de 1988 completou 30 (trinta) anos e continuamos desconsiderando a presunção de inocência e a própria dignidade da pessoa humana. Jogando pessoas atrás das grades por prazo indeterminado e desconsiderando a importância do contraditório e ampla defesa.

              A prisão preventiva no Estado Democrático de direito deve ter como características a provisoriedade e instrumentalidade, também deve ser instrumento de proteção da efetividade da atividade jurisdicional desenvolvida através da persecução penal. E a sua utilização justifica-se apenas pela situação emergencial que ensejará sua decretação.

              A prisão preventiva jamais poderia ser utilizada como medida de castigo ou de antecipação de pena. Logo, para que a prisão preventiva seja legítima e esteja amparada nos princípios constitucionais, e com o fim de evitar que seja utilizada como medida de antecipação de penal, uma das principais exigências que se impõe no Estado de direito é que haja na decisão de decretação da custódia cautelar uma clareza preliminar e bem fundamentada sobre a verdadeira função e motivo da segregação cautelar nas circunstâncias do caso concreto, devendo o magistrado justificar a ineficácia das medidas cautelares diversas da prisão na proteção do que se busca com a restrição da liberdade[2].

              A barreira mais segura à decretação da prisão preventiva é considerá-la instrumento importante e necessário (sempre levando em consideração sua excepcionalidade) à proteção da persecução penal, a fim de assegurar o perfeito andamento das investigações e do processo[3], não se admitindo seja utilizada como medida de castigo ou de antecipação de pena.

              Jacinto Nelson de Miranda Coutinho ensina que “deve-se estar bem demonstrado, não somente fundamentado, o motivo pelo qual o Estado precisa antecipadamente do corpo do imputado”[4].

              Em um estado de direito, a prisão preventiva não pode ser destinada a satisfazer os interesses do magistrado (ou de quem quer que seja), pois, neste caso, o sofrimento que inevitavelmente dela advém constituiria sacrifício evidentemente desproporcional em ralação ao fim a qual a justificou.

              O que se quer deixar bem claro é que não se está afirmando ser a prisão preventiva um instrumento exclusivamente característico do sistema inquisitório.

              Este instrumento, obviamente, pode e deve coexistir no sistema acusatório, pois que de extrema importância para o processo penal. Mas. o que o define como abusivo/arbitrário, ou necessário e a serviço da justiça, é o modo e a forma como é utilizado. No sistema inquisitório a prisão (independentemente de processo) é a regra e sua finalidade é a busca da verdade[5].

              E infelizmente temos visto com frequência a utilização da prisão preventiva como instrumento necessário de obtenção da verdade e de busca do arrependimento do réu, visando que por meio dela o acusado confesse eventualmente o crime supostamente praticado.

              Podemos facilmente concluir que estamos vivendo um aparente legado inquisitório do processo penal. E isso é sem dúvidas um grande retrocesso social. Voltamos aos Tribunais do Santo Ofício, mas hoje as ordálias foram atualizadas e a salvação não depende mais de milagres, mas da eficácia da confissão ou da colaboração decorrente da imediata, automática e tortuosa prisão preventiva.

              Segundo Pietro Verri[6], “por tortura não entendo uma pena atribuída a um réu condenado por sentença, mas a pretensa busca da verdade por meio dos tormentos”. 

              Essa sede por prisão preventiva que estamos vivenciando no processual penal atual, tem como matriz, provavelmente, a resistência à democratização do processo penal, quiçá marcada pela ingênua e equivocada ideia de que a criminalidade – qualquer que seja ela – deve ser combatida com um processo penal sem garantias e na fantasiosa e irracional ideia de que o “combate ao crime” deve ser comandado pelo órgão julgador[7].

              E assim como no sistema inquisitório – por isso afirmo estarmos retrocedendo em muito nas conquistas sociais – a lógica que estamos utilizando para prender preventivamente é a mesma que se utilizava para, por meio da tortura, obter a confissão, tida como a rainha das provas. A lógica era baseada na intolerância e no discurso totalitário, tendo como propósito principal a intimidação da sociedade por meio da instalação de um clima de medo, de terror[8].

              O que se buscava era a manutenção do poder através do controle dos corpos, na tentativa de torná-los obedientes e úteis ao sistema, na busca da verdade[9].

              Ao se afirmar que a prisão preventiva brasileira contaminou a distinção que existia (ou deveria existir) entre imputado e culpado. Esta contaminação está influenciando em muito a injustificada utilização da prisão preventiva como medida de antecipação de pena, ou melhor de castigo, posto que como dito no Brasil a prisão é verdadeiro castigo.

              Precisamos entender com urgência que a liberdade é a regra, é primado da própria existência do homem como sujeito de direitos e mandamento constitucional[10]. Não basta querer relativizar este direito, pois este poder emana da lei e a ela está vinculado e merece respeito. A restrição cautelar da liberdade deverá estar estritamente vinculada aos limites legais. Este é um dos legados da conquista do Estado Democrático de direito.

              O direito penal deve sempre caminhar para o ideal do Estado de direito; quando deixa de fazê-lo, o Estado de polícia avança. Trata-se de uma dialética que nunca para, de um movimento constante, com avanços e retrocessos[11]. Mas infelizmente estamos distantes da maturidade necessária para utilizarmos da prisão preventiva de forma a não violar este Estado direito e, principalmente, a dignidade da pessoa humana.

              Em conclusão, com apoio nas lições de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, matem-se acreditando nas instituições públicas, no regime democrático e em uma sociedade livre, justa e solidária; in verbis:

 

[...] a esperança é de democracia; e ela, seja lá em que face se apresente, não é nunca o que se quer e sim sempre o que se conquista. Por isso é preciso muita paciência, tanto quanto resistência para não se desistir nas primeiras ou mesmo nas mais duras dificuldades; e luta porque, no jogo pela democracia, muitos não querem saber de fair play. Trata-se, portanto, de uma receita amarga, de luta dura; mas é a que se pode ter se não se quiser manter tudo como está.

Referências

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Boletim do IBCCrim n. 223, São Paulo, jun. de 2011.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza”, de Francesco Carnelutti. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil. Vol. 3. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria da garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

KHALED JUNIOR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único I, 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

LOPES JUNIOR, Aury. Prisões Cautelares. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

PACELLI, Eugenio. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência, 9ª ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2017. PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal, 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2017.

TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

 


[1] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Boletim do IBCCrim n. 223, São Paulo, jun. de 2011.

[2] BRASIL, STF, 2ª Turma, HC n. 127.186/PR, Rel.: Min. Teori Zavascki. Do decisum, colhe-se a seguinte passagem, “para fins de decretação da prisão preventiva, é indispensável a demonstração de que nenhuma das cautelares diversas da prisão seria apta para, no caso concreto, atender eficazmente aos mesmos fins”.

[3] LOPES JUNIOR, Aury. Prisões Cautelares. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

[4]COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza”, de Francesco Carnelutti. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

[5] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil. Vol. 3. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 110. De acordo com o Autor, “Dentro do quadro traçado, mostrar que o Sistema Processual Penal brasileiro é inquisitório é despiciendo: hoje ninguém mais, em sendo sério, duvida disso! Afinal, todos estão sofrendo na carne os resultados dele! E assim não seria, por infindáveis razões, se o sistema fosse o acusatório, de todo compatível com a CR e encastelado nela, mas negado na prática”.

[6] VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 77.

[7] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil. Vol. 3. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

[8] KHALED JUNIOR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.

[9] KHALED JUNIOR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.

[10] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria da garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[11] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 172.

Sobre o autor
Antonio Evangelista de Souza Netto

Juiz de Direito de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Pós-doutor em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutor em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2014). Mestre em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2008). Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM. Professor da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo - EMES. Professor da Escola da Magistratura do TJ/PR - EMAP.

Informações sobre o texto

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