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A pessoa jurídica no direito internacional

Algumas considerações

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Agenda 29/03/2020 às 16:00

O objetivo do autor é analisar aspectos doutrinários, convencionais e jurisprudenciais acerca da personalidade jurídica.

Introdução

 

O tema da pessoa jurídica no direito internacional privado torna-se progressivamente mais importante por causa da atuação transnacional de empresas e do fluxo de transfronteiriço de capitais, que impactam, de forma desigual, as economias das diversas sociedades. Embora haja registros bastante antigos da atuação desterritorializada de estruturas empresariais dedicadas à atividade mercantil, o tema da pessoa jurídica no direito internacional tem seu sentido e suas implicações transformadas após o processo de consolidação dos Estados nacionais e depois do aumento dos fluxos internacionais de investimento, especialmente após a disseminação da Revolução Industrial pela Europa Ocidental e pela América do Norte. Com a finalidade de garantir a proteção desses estoques de capital aportados em jurisdições estrangeiras, especialmente no âmbito de Estados nacionais dotados de arcabouço institucional mais precário, começa-se a se construir um conjunto desconectado de normas internacionais, direcionadas ao tema dos direitos da pessoa jurídica, a qual passa a gozar, ainda que de forma precária, de uma nacionalidade similar àquela atribuída às pessoas naturais. Essa construção ocorre de forma descentralizada, primeiramente por meio de normas consuetudinárias e, depois, mediante tratados bilaterais. O foco dessas normas é principalmente a proteção do patrimônio empresarial alocado em território estrangeiro, geralmente sob a forma de investimento. Ainda que se vislumbrem situações nas quais as pessoas jurídicas de atuação internacional não tenham natureza empresarial, torna-se difícil desvincular a origem desse tema da atuação expansiva das empresas transnacionais pelo mundo. Dessa forma, o tema da pessoa jurídica no direito internacional torna-se intrinsecamente conectado ao tema do tratamento jurídico dos investimentos no âmbito internacional.

            Neste artigo, o objetivo do autor é examinar, de maneira sucinta, a atribuição da nacionalidade às pessoas jurídicas. Primeiramente serão elaboradas algumas considerações teórica e históricas sobre o assunto, com base na distinção entre a nacionalidade da pessoa natural e a da pessoa jurídica. Em seguida, serão analisados documentos internacionais vinculantes que disciplinam o tema. As decisões judiciais nacionais e internacionais contam da terceira parte do artigo.

 

1. A nacionalidade da pessoa jurídica

 

A análise da pessoa jurídica, especialmente de sociedades comerciais, no plano internacional, ilustra bem a convergência entre a esfera pública e o domínio privado. Um dos principais tópicos concernentes ao tema diz respeito a nacionalidade das pessoas jurídicas. Considerado tópico de direito internacional privado, pois refere-se às regras nacionais aplicáveis à determinação da nacionalidade de entidade criada pelo direito, o tema, na atualidade, tangencia aspectos relacionados ao direito internacional público, uma vez que é objeto de iniciativas concebidas no âmbito de organizações internacionais e de tratados multilaterais. Similarmente, é difícil desconectar a problemática da nacionalidade das pessoas jurídicas dos interesses políticos e econômico dos Estados e de seus agentes empresariais. Mesmo que se formulem regras formalmente semelhantes às aplicáveis ao direito civil, verifica-se forte componente político e econômico como impulsionador das iniciativas internacionais que buscam harmonizar o tratamento dessas pessoas jurídicas de atuação transnacional.

Ao longo do tempo, os doutrinadores debateram sobre a possibilidade de atribuição de nacionalidade à pessoa jurídica. A ausência duradoura de consenso doutrinário decorre da percepção de que a nacionalidade, em sua origem social e histórica, seria atribuível apenas ao ser humano e determinada exclusivamente pelo direito nacional (ASTORGA, 2007, p. 432-433; cf. SCHLEMMER, 2008; MAGALHÃES, 1973). Mesmo a repetida definição da nacionalidade como o vínculo jurídico-político de direito interno, que considera o conjunto de indivíduos um dos elementos componentes da dimensão pessoal do Estado, remete às origens históricas e sociais da ideia de nacionalidade, a qual, por sua vez, esteve diretamente relacionada às transformações revolucionárias do Estado e da sociedade no fim do século 18.

Especificamente na doutrina brasileira de direito internacional privado, deve-se mencionar, com especial ênfase, a posição de Jacob Dolinger acerca do tema da nacionalidade da pessoa jurídica. Dolinger destaca a clara diferença entre o instituto da nacionalidade nas pessoas naturais e nas pessoas jurídicas. No entendimento do doutrinador, a nacionalidade atribuída às pessoas físicas implica vínculo de dupla natureza - jurídico e político – entre o indivíduo e o Estado. A dimensão política, que resulta de processo histórico e social de reposicionamento do indivíduo perante o Estado, é inerente à nacionalidade de pessoas físicas e dela decorre a noção de participação política, na forma da cidadania ativa e passiva. A dimensão política, por sua vez, a despeito do componente político motivador de sua emergência, está oculto na atribuição de nacionalidade às pessoas jurídicas. O vínculo da pessoa ao Estado parece ter natureza estritamente jurídica e decorre de procedimento técnico-jurídico de aferição dos pressupostos expressos nos três critérios mencionados acima (DOLINGER, 2012, p 482-483). Na realidade, entretanto, a despeito da douta opinião do jurista, o elemento político no processo de atribuição de nacionalidade às pessoas políticas é a causa determinante de sua emergência como instituto jurídico de alcance internacional.

Esse controverso uso da ideia de nacionalidade para pessoas jurídicas foi discutido pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) em alguns casos importantes. A Corte confirmou a possibilidade de extensão do conceito, originalmente concebido para as pessoas naturais, às pessoas jurídicas. Esse entendimento, entretanto, não está imune às críticas de parte importante da doutrina.

Mediante apropriação jurídica do produto do processo histórico e social, os legisladores estendem o conceito de nacionalidade às pessoas jurídicas, geralmente com a finalidade precípua de proteção patrimonial direta ou indireta, por meio de garantias jurisdicionais e processuais no âmbito do Estado estrangeiro. Nesse processo de apropriação, doutrina e prática legislativa foram delimitando os critérios para atribuição da nacionalidade à pessoa jurídica, visando sobretudo garantir segurança institucional ao processo de expansão transfronteiriça das empresas. Esses critérios podem ser expressos na forma de teorias, conceitos, fatos e atos jurídicos que, em conjunto ou isoladamente, determinariam a nacionalidade da pessoa jurídica. Eles podem ser enumerados na seguinte listagem: autonomia da vontade, teoria da autorização, lugar da constituição, nacionalidade dos sócios e acionistas, sede ou domicílio social e centro da exploração. Em outros termos sintéticos, eles podem ser agrupados em três grandes critérios: a) incorporação, b) sede social e c) controle (ASTORGA, 2007). Por meio de análise comparada da jurisprudência, verifica-se que esses critérios muito raramente são utilizados de forma isolada, mas, sim, combinados das mais diversas formas nas legislações nacionais e em documentos internacionais dotados de graus variáveis de obrigatoriedade (DOLINGER, 2012, p 483-488).

Conforme o critério da incorporação, a nacionalidade da pessoa jurídica é decorrente do país em que ela se constitui juridicamente. Esse critério predomina no direito anglo-saxônico e nos ordenamentos influenciados por esse ramo do direito ocidental. Como a pessoa jurídica, em oposição à pessoa natural, é essencialmente uma criação do direito, é razoável que as regras de sua constituição determinem a sua nacionalidade.

O critério da sede é utilizado na maioria dos países de tradição jurídica romano-germânica. Conforme esse critério, não seria apenas a sede estatutária, mas, sim, a sede social que determinaria a nacionalidade da empresa. A sede social concentra a tomada de decisões empresariais e não se localizaria, necessariamente, no pais de constituição da pessoa jurídica. Segundo esse critério, portanto, o elemento factual seria determinante para identificar a sede da pessoa jurídica.

A nacionalidade da pessoa jurídica, no entendimento dos adeptos do critério do controle, estaria relacionada aos interesses de seus sócios. Dessa forma, esse critério se caracteriza principalmente pela nacionalidade dos detentores do capital da sociedade, podendo a nacionalidade da pessoa jurídica ser alterada conforme mudança no controle acionário da empresa. Por meio desse critério, privilegia-se o direito de propriedade da empresa, bem como se assegura os privilégios da nacionalidade aos sócios da companhia.

Alguns autores acrescentam também o critério do local efetivo das atividades empresariais principais (SCHLEMMER, 2008; MAGALHÃES, 1973), o qual se pode confundir com o critério da sede, pois ambos atribuem relevância à dimensão factual. No entanto, o critério da sede ressalta o locus decisório da pessoa jurídica, ao passo que o critério do local efetivo se baseia no local de prestação da atividade-fim da empresa.

 

2. A pessoa jurídica no direito internacional convencional

 

Em tentativas de uniformização de regras sobre temas potencialmente transfronteiriços, os Estados celebraram tratados sobre diversos aspectos do direito internacional privado. Muitos desses documentos, ainda que indiretamente, tratam do tema da pessoa jurídica, de seu reconhecimento fora da jurisdição de sua constituição e, por consequência, de sua nacionalidade.

 

2.1. Código de Bustamante[1]

 

              O Código Bustamante (conhecido como Código de Direito Internacional Privado) consiste em tratado multilateral que estabelece regras comuns para o Direito Internacional Privado nas Américas. Baseando-se na ideia de unificação do direito privado, predominante durante muito tempo, o texto do código foi desenvolvido por Antonio Sánchez de Bustamante e Sirven e consolidado durante o 6º Congresso Pan-Americano, realizado em Cuba em 1928. Sua origem está relacionada à extrapolação da ideologia do pan-americanismo para esfera do direito privado.

            Segundo as disposições do Código, explicadas por Dolinger (2012), as corporações, fundações e associações terão a nacionalidade de origem determinada pela lei do Estado que as autorize ou aprove, adotando, portanto, o critério da incorporação, como inferido dos art. 16 e 17:

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Artigo 16 A nacionalidade de origem das empresas e das fundações é determinada pela lei do Estado que as autoriza ou aprova.

Artigo 17 A nacionalidade de origem das associações será o país em que se constituíram, e em que devem se  registrar ou inscrever se assim exigir a legislação local.[2]

 

            O diploma internacional também dispõe, no seu art. 18, que as sociedades civis, mercantis ou industriais terão a nacionalidade estipulada no contrato social (critério da autonomia da vontade) e, em sua falta, onde tenham habitualmente a sua gerência ou direção principal (critério da sede social).

 

Art. 18 As empresas civis, comerciais ou industriais que não sejam anônimas terão a nacionalidade estabelecida pelo contrato social e, quando apropriado, o pelo local de residência de sua administração ou direção principal[3]

 

            Em dispositivo específico para as sociedades anônimas (art. 19), o Código determina que a nacionalidade desse tipo de empresa será determinada pelo contrato social (autonomia da vontade) e, em casos excepcionais, pela lei do lugar em que normalmente se reúna a assembleia geral de acionistas. Como critério subsidiário, a nacionalidade poderá ser baseada no lugar onde funcione o seu principal conselho ou assembleia (art. 20). Ambos os dispositivos têm a seguinte redação:

 

Artigo 19. Para as empresas, a nacionalidade será determinada pelo contrato social e, se aplicável, pela lei do local onde a assembleia geral se reúne normalmente e, na sua falta, pelo local da realização da assembleia principal ou diretiva ou do conselho administrativo.

Artigo 20. A mudança de nacionalidade das corporações, fundações, associações e sociedades, exceto nos casos de variação da soberania territorial, estará sujeita às condições exigidas por suas leis antigas e novas.[4]

 

As regras do Código de Bustamante, portanto, referem-se, explicitamente à nacionalidade das empresas e estabelece critérios para sua determinação. A identificação da nacionalidade das pessoas jurídicas, portanto, é adstrita aos sujeitos com fins comerciais ou similares, evidenciando os interesses econômicos subjacentes ao instituto.

 

2.2. Convenções no âmbito da Organização dos Estados Americanos (CIDIP II e III)

 

Ainda no âmbito regional das Américas, destacam-se a 2ª e a 3ª Conferências Especializadas Interamericanas sobre Direito Internacional Privado (Montevidéu, 1979; e La Paz, 1984), que aprovaram duas importantes convenções concernentes ao tema da pessoa jurídica: Convenção sobre Conflitos de Leis Relativas a Companhias Comerciais (1979) e a Convenção sobre Personalidade e Capacidade das Pessoas Jurídicas no Direito Internacional Privado (1984).

            Com ensina Dolinger (2012), no artigo 2º da Convenção de 1979 há a seguinte disposição:

 

Artigo 2. A existência, capacidade, operação e dissolução de sociedades comerciais regem-se pela lei do local de sua constituição.

 Por "lei do local de sua constituição" entende-se a do Estado em que os requisitos de forma e substância exigidos para a criação das referidas empresas são cumpridos.[5]

 

O artigo 3º dispõe sobre o reconhecimento recíproco de empresas constituídas nos Estados signatários. Essa reciprocidade não exclui o requerimento de prova de constituição da empresa, que pode implicar o fornecimento de cópia de contrato social e estatuto, bem como registro em órgão competente. Importante destacar que o art. 3 determina que os Estados signatários da Convenção devem reconhecer a capacidade das empresas estrangeiras na mesma extensão que reconhecem a das empresas nacionais. Esse reconhecimento de capacidade, entretanto, não implica tratamento similar, inclusive no que concerne ao acesso à programas de fomento públicos, isenções e imunidades tributárias e direito à participação de licitações para contratações públicas.

 

Artigo 3. As empresas comerciais devidamente constituídas em um Estado serão reconhecidas por lei nos outros Estados.

O reconhecimento pleno não exclui o poder do Estado de exigir prova da existência da empresa de acordo com a lei do local de sua constituição.

Em nenhum caso, a capacidade reconhecida para empresas constituídas em um Estado pode ser superior à capacidade que a lei do Estado de origem.

 

A Convenção de 1984 tem disposições semelhantes. Os três primeiros artigos sintetizam as linhas gerais do documento no que concerne às pessoas jurídicas:

 

Artigo 1. Esta Convenção aplicar-se-á às pessoas jurídicas constituídas em qualquer dos Estados-Partes, entendendo-se por pessoa jurídica toda entidade que tenha existência e responsabilidade próprias, distintas das dos seus membros ou fundadores e que seja qualificada como pessoa jurídica segundo a lei do lugar de sua constituição.

 

Esta Convenção será aplicada sem prejuízo de convenções específicas que tenham por objetivo categorias especiais de pessoas jurídicas.[6]

 

 

Diferentemente da Convenção de 1979, o documento de 1984, em seu primeiro artigo, refere-se, explícitamente, às pessoas jurídicas. A Convenção, portanto, não limita suas disposições às entidades econômicas. Essa diferença é corroborada pelos dois artigos seguintes, que fazem uso também da categoría genérica, pessoa jurídica (em vez de usar empresa, corporação ou termo similar referente à espécie)

 

 

Artigo 2 A existência, a capacidade de ser titular de direitos e obrigações, o funcionamento, a dissolução e a fusão das pessoas jurídicas de caráter privado serão regidos pela lei do lugar de sua constituição.

 

Entender-se-á por "lei do lugar de sua constituição" a do Estado-Parte em que forem cumpridos os requisitos de forma e fundo necessários à criação das referidas pessoas.

 

Artigo 3 As pessoas jurídicas privadas devidamente constituídas num Estado-Parte serão reconhecidas de pleno direito nos demais Estados-Partes. O reconhecimento de pleno direito não exclui a faculdade do Estado-Parte de exigir comprovação de que a pessoa jurídica existe conforme a lei do lugar de sua constituição.

 

Em caso algum a capacidade reconhecida às pessoas jurídicas privadas constituídas num Estado-Parte poderá ser maior do que a capacidade que a lei do Estado-Parte que as reconheça outorgue às pessoas jurídicas constituídas neste último.[7]

 

Dos artigos extraídos da Convenção de 1984, destaca-se o art. 3, que determina o reconhecimento recíproco de pessoas jurídicas constituídas em conformidade com as leis dos Estados partes. Novamente, o termo utilizado é o gênero (pessoa jurídica) em vez da espécie (empresa ou corporação). Importante destacar, igualmente, que os três dispositivos mencionados não fazem referência direta à nacionalidade da pessoa jrídica, embora esta possa ser inferida da ideia de reconhecimento da constituiçao da entidade.

 

2.3. A pessoa jurídica no Tratado de Roma (1957)[8]

 

No âmbito regional europeu também podem ser encontrados importantes documentos que fazem referência indireta à nacionalidade da pessoa jurídica. Como lembra Dolinger (2012), o Tratado de Roma (1957), que instituiu a Comunidade Econômica Europeia, dispõe, em seu art. 52, que os países membros da Comunidade Europeia eliminarão, progressivamente, as restrições à liberdade de estabelecimento de nacionais de um Estado membro no território outro Estado membro. O art. 58 dispõe o que se segue:

 

[A]s companhias ou firmas constituídas de conformidade com a legislação de um Estado membro, e tendo sua sede estatutária, sua administração central ou seu principal estabelecimento dentro da Comunidade, são equiparadas, para aplicação das disposições do presente capítulo, às pessoas físicas nacionais dos Estados-membros.

 

Considerando a proposta de aprofundar a integração, dotada, inclusive, da livre circulação de fatores, buscou-se, mediante mecanismo de equivalência, garantir a livre iniciativa dos empreendedores europeus no território abarcado pelo mercado único. Dessa forma, as empresas constituídas em um Estado membro devem ser reconhecidas no território de outros Estados membros, ainda que se admita forma específica de comprovação de conformidade à lei do Estado de origem da pessoa jurídica.

            Como outros documentos mencionados supra, o Tratado de Roma tem finalidade precipuamente econômica. Em razão disso, faz uso do termo companhia (ou firma), sem mencionar outros tipos de pessoa jurídica. O termo nacionalidade também não é diretamente mencionado, ainda que seja inferido da ideia de constituição em conformidade com a lei.

 

2.4. A pessoa jurídica na Convenção de Bruxelas (1968)

 

Celebrada em fevereiro de 1968, a Convenção determina, em seu art. 1º, o reconhecimento recíproco da personalidade jurídica das pessoas coletivas (civis ou comerciais) constituídas conforme a lei do Estado parte. A redação do art. 1 é a seguinte:

 

Artigo 1º. Empresas de direito civil ou comercial, inclusive sociedades cooperativas, estabelecidas de acordo com a lei de um Estado Contratante que lhes conceda a capacidade de pessoas com direitos e deveres e com sede social nos territórios em que o presente Convenção é aplicável, será reconhecido como de direito.[9]

 

Essas regras seriam aplicáveis a todas as partes da Convenção, como estabelecido no texto supra.

O art. 2, por sua vez, refere-se a pessoas jurídicas distintas das sociedades comerciais, das organizações civis e das cooperativas. Na verdade, o dispositivo tem o objetivo de abarcar outros tipos de pessoas coletivas que, eventualmente, venham ser concebidas.

O artigo 3º prescreve a seguinte ressalva com base na efetividade do vínculo corporativo:

 

Artigo 3. Não obstante o disposto acima, qualquer Estado Contratante poderá declarar que não aplicará a presente Convenção a quaisquer empresas ou órgãos corporativos especificados nos Artigos 1 e 2 que tenham sua sede social real fora dos territórios aos quais a presente Convenção se aplica, se tal empresas ou órgãos corporativos não têm vínculo genuíno com a economia de um desses territórios.[10]

 

Dessa forma, o Estado pode se opor a aplicar os dispositivos da Convenção, se não houver vínculo efetivo entre as atividades desta com a economia dos territórios do Estado.

 

2.5. A pessoa jurídica na Convenção da Haia[11]

 

Assinada em 1º de junho de 1956, a Convenção da Haia sobre o reconhecimento da personalidade jurídica das sociedades, associações e fundações estrangeiras, dispõe, em seu artigo 1º, que

 

A personalidade jurídica adquirida por uma sociedade, uma associação ou uma fundação em virtude da lei de um Estado contratante, cujas formalidades de registro ou de publicidade tenham sido atendidas e no qual se encontre a sede estatutária, será reconhecida de pleno direito nos outros Estados contratantes.

 

Assim como outros documentos internacionais, como leciona Dolinger (2012), o disposto prevê o reconhecimento jurídico da capacidade de pessoas jurídicas constituídas sob a jurisdição das contrapartes. Novamente, opta-se por não utilizar o termo nacionalidade. O dispositivo refere-se à pessoa jurídica no sentido, amplo, incluindo, portanto, entidades civis sem fins comerciais.

 

Artigo 2. De qualquer modo, a personalidade, adquirida conforme as disposições do artigo primeiro poderá não ser reconhecida em outro Estado contratante cuja lei leve em consideração a sede real, se esta sede lá for considerada como se encontrando em seu Estado. A sociedade, associação ou fundação é considerada como possuindo sua sede no local onde está estabelecida sua administração central. As disposições das alíneas 1 e 2 não são aplicáveis se a sociedade, associação ou fundação transferir, em um prazo razoável, sua sede real a um Estado que reconhece a personalidade jurídica sem levar sua sede em consideração.

 

O art. 2 determina a primazia da realidade para determinação da sede empresarial. Nesse sentido, a localização da administração central da empresa seria determinante para identificação da sede real da pessoa jurídica e, por conseguinte, sua nacionalidade.

 

2.6. A pessoa jurídica na Convenção de Estrasburgo

 

Realizada em 1966, patrocinada pelo Conselho da Europa, a Convenção de Estrasburgo reconhece as pessoas jurídicas constituídas no território de uma das partes contratantes, de conformidade com sua legislação e que tenham sua sede estatutária em seu território. Em termos práticos, o cumprimento dos requisitos de concepção de pessoa jurídica em um determinado país, garante o reconhecimento nos demais países que são parte na Convenção.

            As convenções europeias caracterizam a nacionalidade de uma sociedade pelo critério do local de sua constituição somado à sede estatutária ou à sede real.

 

3. O tratamento do tema da pessoa jurídica na jurisprudência

3.1. A jurisprudência estrangeira

 

Tribunais de diversos países trataram, em variadas decisões, do tema da pessoa jurídica. Seguindo lição doutrinária de Dollinger (2012), alguns casos podem ser destacados como exemplo do tratamento judicial estrangeiro do tema: Caso do Banco Ottomano (julgado pela Corte de Apelação de Paris, em 1984); Caso das Sociedades de Navegação Marítima (julgado pelo Tribunal Civil de Pireus, em 1969 e pelo Tribunal Civil de Atenas, em 1973; e caso Sumitomo Shoji America inc. contra Lisa M. Avangliano e outras (julgado pela Suprema Corte Norte-Americana).

No caso Banco Ottomano, a Corte de Apelação de Paris, em 1984, investigou a lei aplicável ao banco de origem estrangeira. Segundo as normas do direito francês, dever-se-ia aplicar ao banco a lei do país de sua sede real (critério baseado na primazia da realidade). Segundo a norma de conflito francesa, a lei aplicável era a inglesa, pois o centro administrativo do Banco Otomano se localizava na Inglaterra, a despeito de sua origem formal na Turquia. Como, no entanto, o direito britânico determina a aplicação da lei do país em que a pessoa jurídica foi constituída, a lei turca, no caso, e como a lei turca também dispõe neste sentido, a Corte Francesa aceitou a aplicação da lei da Turquia. Nesse caso, portanto, ocorre a solução de segundo grau, na qual a lei de conflito é aplicada, mas não resulta em solução imediata. A lei a qual se remete propõe solução diversa daquela alcançada, em um primeiro momento, pela lei de conflito. O desenlace baseia-se na concordância entre a lei inglesa e a lei turca no que concerne à lei aplicável.

O Caso das Sociedades de Navegação Marítima (julgado pelo Tribunal Civil de Pireus, em 1969 e pelo Tribunal Civil de Atenas, em 1973) consiste no segundo exemplo emblemático de tratamento da nacionalidade da pessoa jurídica por tribunal estrangeiro. O objeto principal desses dois julgados era a nacionalidade das sociedades anônimas constituídas no Panamá. A sede estatutária de ambas era o Panamá, mas as sedes administrativas efetivas se situavam na Grécia. Com o fundamento no artigo 10 do Código Civil grego (“A capacidade da pessoa jurídica é regida pela lei de sua sede”), os dois acórdãos dos Tribunais gregos determinaram que a validade da constituição e a capacidade de uma sociedade anônima são regidas pela lei do país de sua sede. A sede, por sua vez, foi definida como o local em que a administração efetiva e a direção da sociedade são exercidas e onde são tomadas as decisões sobre o andamento dos negócios da empresa (Corte de Pireus) ou no local onde são decididas questões fundamentais e onde formulam as diretivas principais concernentes ao funcionamento da sociedade (Corte de Atenas). Como se constatou, em ambos os casos, que as sociedades eram dirigidas nas suas sedes situadas na Grécia, os tribunais decidiram pela aplicação do direito grego.

O terceiro caso exemplar trata da Sumitomo Shoji America Inc. é uma empresa nova-iorquina, subsidiária integral da Sumitomo Shoji Kabushiki Kaisha trading company. Lisa M. Avagliano e suas companheiras, cidadãs norte-americanas, tinham trabalhado como secretárias da Sumitomo, e processaram sua empregadora, acusando-a de prática de política empregatícia discriminatória. Segundo a acusação, a empresa, supostamente, contratava apenas japoneses do sexo masculino para as posições executivas, de gerências e de vendas do ramo nova-iorquino. Essa prática afrontaria a legislação norte-americana, que proíbe discriminação baseada na nacionalidade ou no sexo.

A Sumitomo defendeu-se com base no Tratado de Amizade, Comércio e Navegação, celebrado entre o Japão e os Estados Unidos, que isenta as companhias japonesas sediadas nos Estados Unidos das regras da legislação norte-americana relativas a não-discriminação com base em nacionalidade e sexo. O tratado disporia, em seu artigo 8º, que “companhias de qualquer uma das partes poderão contratar, no território da outra parte, contadores e outros profissionais, pessoal executivo, advogados, representantes e outros especialistas de sua escolha”

A Suprema Corte norte-americana  referiu-se, em sua decisão, ao artigo 22 do Tratado, que define que “as companhias constituídas de acordo com as leis e os regulamentos aplicáveis dentro dos territórios de uma  das partes; serão consideradas suas companhias e terão seu status jurídicos reconhecido nos territórios da contraparte”, do que se deduz que somente às filiais norte-americanas de uma companhia constituída no Japão é que não se aplicam as normas americanas proibitivas de discriminação na contratação de pessoal. A Sumitomo Shoji America Inc., ainda que formada com capital da matriz japonesa, foi constituída nos Estados Unidos, devendo ser considerada uma empresa de nacionalidade norte-americana (não uma companhia japonesa). Em razão disso, não seria aplicável a liberdade de contratar os profissionais com base na nacionalidade, em inobservância da legislação trabalhista norte-americana.

            Esses três casos são emblemáticos da forma como assunto da nacionalidade das pessoas jurídicas é tratada pelas cortes nacionais. A legislação nacional de conflito, nesses casos é fundamental, pois, ao determinar a legislação aplicável, acaba por definir a nacionalidade da pessoa jurídica. No último exemplo, destaca-se a existência de tratado bilateral entre os dois Estados envolvidos no caso. A existência desses acordos internacionais tende a facilitar a solução de problemas quanto à nacionalidade das pessoas jurídicas.

 

3.2. A jurisprudência internacional

 

Os casos tratados nos tribunais estrangeiros, entretanto, parecem ser menos reveladores do que as situações decididas no âmbito de cortes internacionais. Nesta seção, serão analisados dois casos apreciados pela Corte Internacional de Justiça e destacados pela doutrina de Dolinger (2012). Nesses casos, foram tratados aspectos referentes à nacionalidade efetiva e aos critérios de atribuição de nacionalidade a entes frequentemente caracterizados pela desterritorialização e pela atuação transnacional.

O Caso Nottebohm (Liechtenstein contra Guatemala) se refere a uma decisão da Corte Internacional de Justiça de Haia, proferida em 6 de abril de 1955, que determinou os critérios pelos quais a Guatemala poderia, validamente, rejeitar a nacionalidade de Liechtenstein, invocada por Friedrich Nottebohm, um nativo da Alemanha, estabelecido na Guatemala entre 1905 e 1943. Essa decisão foi relevante no direito internacional no que diz respeito aos critérios que regem o reconhecimento da nacionalidade efetiva de uma pessoa.

A Corte Internacional de Justiça defendeu que a nacionalidade é "um vínculo legal baseado em um fato social", e também uma "conexão genuína de existência, interesses e sentimentos, juntamente com a existência de direitos e deveres recíprocos". A CIJ, portanto, reconhece que a nacionalidade deve ser dotada de base fática, não se constituindo por conexão meramente formal. Ainda que tenha sido prolatada em caso referente à nacionalidade de pessoa natural, os argumentos da decisão podem ser estendidos ao conceito geral de nacionalidade. (ver ASTORGA, 2006, p. 437)

No caso Barcelona Traction, Light and Power Company Limited (Bélgica contra Espanha), decidido em 1970, essa sociedade empresarial, constituída em Toronto, no Canadá, onde fixou sua sede estatutária e estabeleceu sua sede social, tinha como escopo o fornecimento de serviços de eletricidade da Catalunha, na Espanha. Em razão da política restritiva aplicada às suas atividades, pelo governo espanhol, a empresa foi à falência, na década de 40.     O capital social havia passado para o controle dos acionistas belgas. O governo da Bélgica, após fracassadas iniciativas judiciais e diplomáticas, ajuizou ação em face da Espanha na CIJ, com a pretensão de obrigar o governo espanhol indenizar os acionistas belgas pelos prejuízos sofridos com a empresa. A CIJ decidiu, por maioria, que a demanda não preenchia as condições de ação, uma vez que a Bélgica não teria legitimidade ad causam na contenda. A sociedade empresarial, no entendimento da CIJ, tinha nacionalidade canadense, ainda que o controle acionário se concentrasse nas mãos de acionistas belgas. A CIJ, portanto, consagra o critério da nacionalidade da pessoa jurídica pelo país de sua constituição, a despeito de as relações efetivas indicarem outra solução jurídica. O voto vencido foi o do Juiz Gros, para quem deveria prevalecer o critério econômico sobre o jurídico na determinação da nacionalidade da empresa.

 

4. Considerações finais

O tema da nacionalidade da pessoa jurídica apresenta natureza internacional congênita. Inicialmente concebido para caracterizar o vínculo de pessoa natural ao Estado nacional, a ideia de nacionalidade foi estendida às pessoas jurídicas por razões eminentemente econômicas, diretamente atreladas ao processo de internacionalização do capital. Atribuir nacionalidade às pessoas jurídicas facilita a proteção das empresas que decidem investir parte de seu capital em territórios sob jurisdição de Estados distintos de seu Estado de constituição. Os documentos internacionais, por isso, na maior parte das vezes referem-se às pessoas jurídicas mercantis e não às pessoas jurídicas como um todo (ainda que haja importantes exceções). Ainda que não usem sempre o termo nacionalidade, ideia de perquirir o local de constituição, de administração e de atuação da empresa, assim como a localização de seus sócios, está relacionada ao intento de atribuir origem nacional válida para essas entidades. A depender do critério adotado, as entidades gozam de conjunto distinto de direitos e prerrogativas. As decisões jurisprudenciais sobre tema têm admitido a atribuição de nacionalidade às pessoas jurídicas, ainda que não haja consenso sobre o os critérios a serem adotados nessa atribuição. Verifica-se que, a despeito de o critério formal de formação da pessoa jurídica ou de disposição contratual em seu documento fundacional permanecerem aplicáveis, tem avançado e se fortalecido o critério de base factual, no qual a realidade de atuação e controle da empresa determinam sua nacionalidade efetiva.

 

Referências bibliográficas

RODAS, João Grandino. Sociedade Comercial e Estado, São Paulo, Saraiva, 1995.

ASTORGA, Ricardo Letelier “The nationality of juridical persons in the ICSID Convention in light of its Jurisprudence, 2006.

DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. Rio de Janeiro, Forense, 2012.

MAGALHÃES, José Carlos. Nacionalidade da Pessoa Jurídica e a Empresa Multinacional. Revista Forense, 1980.

PAULS, Manfred. A nacionalidade e a lei aplicável à pessoa jurídica de direito privado/2005. 149 f.; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba, 2005.

RÉGNIER, Leonardo Medeiros. Nacionalidade das Sociedades Comerciais. Curitiba: Juruá, 2002.

SANTOS, Antonio Marques dos. Algumas reflexões sobre a Nacionalidade das Sociedades em Direito Internacional Privado e em Direito Internacional Público. Coimbra: sem editora, 1985.

SCHLEMMER, Engela C. “Investment, investor, nationality and shareholders”, in Peter Muchlinski, Federico Ortino and Christoph Schreuer (eds.), The Oxford Handbook of International Investment Law (Oxford: Oxford University Press), 2008, pp. 49–88.

 

Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

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