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Calamidade pública decorrente da covid-19 e a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Agenda 24/04/2020 às 08:30

Analisa-se a possibilidade e o modo de afastamento temporário de alguns artigos da LRF aos entes federados que tenham declarado estado de calamidade pública decorrente da pandemia de covid-19.

I - INTRODUÇÃO

O presente artigo busca esclarecer sobre quais consequências a decretação de calamidade pública pode acarretar no âmbito dos entes federados nacionais.

Tais apontamentos decorrem da necessidade de análise da recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), via Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº6357/DF, em que foi concedida Medida Cautelar em favor da União Federal para fins de:

“[...] CONCEDER INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO FEDERAL, aos artigos 14, 16, 17 e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal e 114, caput, in fine e § 14, da Lei de Diretrizes Orçamentárias/2020 [União Federal], para, durante a emergência em Saúde Pública de importância nacional e o estado de calamidade pública decorrente de COVID-19, afastar a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento do contexto de calamidade gerado pela disseminação de COVID-19.”

Tendo o referido Tribunal disposto ainda que a referida “interpretação conforme” aplica-se aos demais entes, nos seguintes termos:

“[...] a presente MEDIDA CAUTELAR se aplica a todos os entes federativos que, nos termos constitucionais e legais, tenham decretado estado de calamidade pública decorrente da pandemia de COVID-19.”

Após breve contextualização, passa-se à análise.


II - CALAMIDADE PÚBLICA DECORRENTE DE COVID-19

1. O Decreto de Calamidade Pública na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)

Inicialmente é importante esclarecer que Calamidade Pública é um acontecimento que tem ou pode ter como consequência graves danos à sociedade, seja ele humano ou material. Trata-se, assim, de uma catástrofe, destruição ou desastre que atinge uma grande área ou um grande número de pessoas.

Ademais, o Decreto Federal nº7257/2010 define estado de calamidade pública como “situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido” (art. 2º, IV).

O ordenamento jurídico, entendendo que tais danos possuem repercussão na normalidade da sociedade e das instituições, criou mecanismos legais a fim de enfrentar os desafios para superação da crise.

A Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar Nacional nº101/2000, dispõe no artigo 65 que, na ocorrência de Calamidade Pública, o Poder Legislativo pode reconhecer tal fato e, diante disso, fica o ente federado autorizado a descumprir algumas medidas da LRF que visam o equilíbrio na gestão fiscal:

Art. 65. Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembléias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação:

Ressalte-se que a LRF atribui ao Poder Legislativo Estadual, ou seja, às Assembléias Legislativas, o reconhecimento da calamidade pública que possibilita a supressão de algumas medidas da LRF pelos Estados-membros e Municípios.

Qualquer decretação de calamidade pública que não seja reconhecido pelo Legislativo indicado no artigo 65 da LRF não tem o poder de autorizar o ente federado a descumprir parcialmente a LRF. Pelo contrário, mantém-se íntegro o cumprimento de todas as medidas de equilíbrio fiscal exigidas na referida lei complementar.

Há, assim, um procedimento formal necessário e inescapável, ou seja, o reconhecimento formal pelo Legislativo Federal ou Estadual, da calamidade pública.

Os dois incisos do artigo 65 indicam quais são as medidas que os entes estão autorizados a descumprir no caso de calamidade reconhecida. São eles:

I - serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos arts. 23 , 31 e 70;

II - serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no art. 9o.

O primeiro inciso autoriza a suspensão da contagem dos prazos e disposições relacionadas à despesas com pessoal e à recondução da dívida pública aos limites legais.

No caso das despesas com pessoal, o ente não fica sujeito às vedações e às medidas impostas caso ultrapasse o limite de gastos com pessoal indicadas no artigo 20, 22 e 23 da LRF, nem as dos §§3º e 4º do artigo 169 da Constituição Federal:

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Art. 23. Se a despesa total com pessoal, do Poder ou órgão referido no art. 20, ultrapassar os limites definidos no mesmo artigo, sem prejuízo das medidas previstas no art. 22, o percentual excedente terá de ser eliminado nos dois quadrimestres seguintes, sendo pelo menos um terço no primeiro, adotando-se, entre outras, as providências previstas nos §§ 3º e 4o do art. 169 da Constituição.

Do que se conclui, existir autorização temporária, pelo tempo que perdurar a calamidade, para o ente descumprir o teto de gastos com pessoal sem a incidência das consequências legais de recondução.

Tal razão encontra-se na necessidade, muitas vezes, de contratação de recursos humanos temporários a fim de poder restaurar a normalidade abalada pelo desastre e que exige soluções imediatas, podendo, os limites da gestão fiscal equilibrada comprometer as rápidas medidas necessárias para sanar os danos já existentes, minorar os que estão na iminência de ocorrer ou os que provavelmente irão ocorrer caso não sejam adotadas medidas preventivas imediatas.

Quanto à recondução da dívida pública aos limites, o artigo 31 da LRF prevê a atuação do ente com fins de reconduzir o acréscimo da dívida pública a níveis sustentáveis:

Art. 31. Se a dívida consolidada de um ente da Federação ultrapassar o respectivo limite ao final de um quadrimestre, deverá ser a ele reconduzida até o término dos três subseqüentes, reduzindo o excedente em pelo menos 25% (vinte e cinco por cento) no primeiro.

Ora, diante de calamidades, há grande probabilidade de que os gastos públicos aumentem, pois a atuação do estado deverá ser concentrada em esforços para evitar, sanar ou prevenir danos à sociedade.

Exigir limitação de gastos públicos na proteção social, que muitas vezes tem consequências desastrosas para uma região ou um povo, pode colocar em risco a vida e a saude das pessoas, logo o legislador, no conflito entre gestão fiscal responsável e os direitos fundamentais, deu prevalência ao direitos fundamentais.

Ademais, sabe-se que tais medidas emergenciais são temporárias e que no futuro breve, com a normalidade retomada, a gestão fiscal responsável e equilibrada será novamente exigida dos gestores.

No segundo inciso há a dispensa do cumprimento das metas fiscais indicada nas respectivas Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da limitação de empenho, durante a execução orçamentária:

Art. 9o Se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subseqüentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.

O que se buscou foi novamente dispensar o ente federado das obrigações de equilíbrio fiscal, em especial da limitação de empenho decorrente de queda de arrecadação, que em momentos de catástrofe há quase que inevitável ruptura do sistema econômico, mesmo que local, podendo impedir que medidas corretivas para sanar as instabilidades sejam tomadas.

Portanto, para que o ente federado fique dispensado do cumprimento dos limites de despesas com pessoal, com a obrigação de recondução da dívida pública aos limites legais, do atingimento das Metas Fiscais e da limitação de empenho, é necessário obedecer os requisitos formais que determinam o reconhecimento da calamidade pública pelo Poder Legislativo competente, Congresso Nacional para União ou Assembléias Legislativas respectivas para os Estados e Municípios.


2. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº6357/DF

O Presidente da República do Brasil, através da Advocacia Geral da União (AGU), ajuizou, em 27/03/2020, ADI com pedido Medida Cautelar, com o objetivo de: 

“[...] conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 14, 16, 17 e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), e ao art. 114, caput, in fine, e § 14, da Lei de Diretrizes Orçamentárias do ano de 2020 (LDO/2020).”

Argumentou que o afastamento temporário do rigor de algumas normas da LRF se faz necessário ante a pandemia de Covid-19 que atingiu o país e que a inteira aplicação das normas de equilíbrio fiscal à situação de excepcionalidade vivida no Brasil impediria o governo de tomar medidas necessárias para combater de modo eficaz a disseminação da doença.

Junto com a Ação foram anexados a Lei de Diretrizes Orçamentárias da União (2020), a LRF e o Decreto-Legislativo nº06/2020 do Congresso Nacional.

Ressalta-se que o Decreto-Legislativo nº06/2020 do Congresso Nacional reconheceu a calamidade pública por Covid-19, no país, e autorizou a União Federal a descumprir a Meta Fiscal da LDO 2020 e a limitação de empenho:

Art. 1º Fica reconhecida, exclusivamente para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, notadamente para as dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898, de 11 de novembro de 2019, e da limitação de empenho de que trata o art. 9º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até 31 de dezembro de 2020, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.

Portanto, o Congresso Nacional não autorizou o descumprimento de todas as regras da LRF, mas apenas as referidas no inciso II do artigo 65, ou seja, o atingimento dos resultados fiscais da LDO 2020 e da limitação de empenho bimestral decorrente da potencial queda na receita.

Quanto a Medida Cautelar na ADI, o Ministro Relator concedeu interpretação conforme à Constituição, em 29/03/2020, para afastar a “exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento do contexto de calamidade gerado pela disseminação de COVID-19.”

Com isso a União, no âmbito dos programas públicos relacionados ao combate do Covid-19, não precisa, para criação ou expansão de despesa pública, amparar suas decisões (1) em impacto orçamentário-financeiro no ano em que deva entrar em vigor e nos dois subsequentes, (2) na declaração do ordenador de despesa de que o aumento de gasto tem sustentação na Lei Orçamentária Anual, na LDO e na Lei do Plano Plurianual, também, não será considerada renúncia de receita a ausência de (3) impacto na estimativa da LOA e da afetação das Metas Fiscais da LDO e, por fim, (4) das medidas de compensação financeira, como, “elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição” (art. 14, II, LRF).

Ressalte-se, por fim, que tais afastamentos são temporários, ou seja, enquanto durar o estado de calamidade pública decorrente do Covid-19, e que, para as demais despesas públicas não relacionadas ao enfrentamento da pandemia, a aplicação dos referidos dispositivos legais mantêm-se íntegros.


3. A aplicação da ADI nº6357/DF aos Estados e Municípios

Na parte dispositiva da concessão da medida cautelar. o Ministro ampliou a aplicação da decisão aos Estados, Distrito Federal e Municípios “que, nos termos constitucionais e legais, tenham decretado estado de calamidade pública decorrente da pandemia de COVID-19”.

Na fundamentação da decisão cautelar, há menção expressa ao Decreto-Legislativo do Congresso Nacional que reconhece o estado de Calamidade Pública em virtude da Covid-19:

Na presente hipótese, o Congresso Nacional reconheceu, por meio do Decreto Legislativo no 6, de 20 de março de 2020, a ocorrência de estado de calamidade pública em decorrência da pandemia de COVID-19 declarada pela Organização Mundial de Saúde, atendendo à solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem no 93, de 18 de março de 2020.

Como demonstrado acima o reconhecimento pelo Legislativo tem finalidade de autorizar a aplicação do artigo 65 da LRF.

Contudo, a decisão cautelar do STF não faz menção à essa formalidade para sua aplicação, tão somente afirma que deve ser obedecido os “termos constitucionais e legais”.

Como se sabe o estado de Calamidade Pública regulamentado atualmente pela Lei Nacional nº12.340/2010 e o Decreto Federal nº7257/2020 teve como pressupostos os desastres naturais decorrentes dos deslizamentos em locais de risco.

No referido Decreto há, no artigo 7º, a formalidade para o reconhecimento da calamidade pública, nos seguintes termos:

Art. 7o  O reconhecimento da situação de emergência ou do estado de calamidade pública pelo Poder Executivo federal se dará mediante requerimento do Poder Executivo do Estado, do Distrito Federal ou do Município afetado pelo desastre.

Tais pressupostos não foram mencionados na decisão da Medida Cautelar do STF, razão pela qual acredita-se que o procedimento, a que se refere o dispositivo da decisão, não seja o indicado no artigo 7º referido Decreto.

No que tange às legislações locais, a maioria dos entes são omissas no tema o que, também, não soluciona a dúvida ora posta.

O artigo 489 da Lei 13.105/2015 (NCPC) trata dos elementos da sentença e, no parágrafo terceiro, dispõe sobre a interpretação da decisão judicial:

Art. 489. São elementos essenciais da sentença: I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem. § 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé. 

Logo, o  NCPC determina a interpretação integrada dos três elementos da sentença, ou seja, do relatório, da fundamentação e do dispositivo.

Em análise conjunta da fundamentação e do dispositivo da decisão Cautelar do STF, a presença do Decreto-Legislativo do Congresso Nacional que reconhece o estado de calamidade pública indica ser esse o processo formal e legal através do qual se legitima a aplicação da referida Medida Cautelar aos demais entes federados.

Ressalte-se, por fim, que o Poder Legislativo competente para reconhecimento da calamidade é o indicado no artigo 65 da LRF, ou seja, as Assembléias Legislativas respectivas.


III - CONCLUSÃO

Portanto, caso o ente federado queira se valer da aplicabilidade da Medida Cautelar concedida na ADI nº 6.357/DFhá necessidade de autorização das respectivas Assembleias Legislativas para reconhecimento da calamidade pública decorrente da pandemia de Covid-19 no território do ente solicitante.

Sobre o autor
Luiz Mário Araújo Camacho Carpanez

PROCURADOR (Ocupante de Cargo de Provimento Efetivo); Competências atuais: Tributário, Execução, Precatórios e Dívida Ativa. Mestrando em Direito - área de concentração "Direitos Fundamentais e Novos Direitos" (UNESA); Pós-graduado em Direito Tributário (PUC-Minas); Pós-graduado em Direito Administrativo (PUC-Minas); Pós-graduado em Direito Processual Civil (Universidade Cândido Mendes); Graduado em Direito (Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARPANEZ, Luiz Mário Araújo Camacho. Calamidade pública decorrente da covid-19 e a Lei de Responsabilidade Fiscal.: Uma análise da aplicação da ADI 6.357/DF a Estados e Municípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6141, 24 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80771. Acesso em: 2 nov. 2024.

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