Transporte aéreo internacional de carga | Dano Contratual | Direito de Transportes, Direito do Seguro e Direito de Danos | Anacronismo de limitação de responsabilidade | Dimensão exata do precedente | Análise econômica do Direito | Razões ônticas distintas entre o transporte de passageiros e o transporte de cargas | Protagonismo da seguradora sub-rogada e a função social do negócio de seguro | O ressarcimento em regresso e o princípio do mutualismo: interesses de todos os segurados e da sociedade em geral | Princípios do sequenciamento e da estabilização dos precedentes | Direitos dos contratante débil e do credor insatisfeito | Dever moral e constitucional de reparação civil integral | Choque entre Súmula 188 e Tema 210 ambos do STF | Não incidência do Tema 210 em litígios de transportes de cargas deflagrados por seguradoras sub-rogadas
“Se os fatos jurídicos não forem rigorosamente os mesmos, não há que se aplicar o precedente judicial (aliás, nem há precedente)”
Ministro Fux
Aula-palestra sobre o Código de Processo Civil, intitulada “O precedente no Direito Brasileiro e a gestão de precedentes no STF.
Foram mais ou menos estas as palavras do Ministro. Entusiasmado, não só com a ideia acima, mas todo o conteúdo da aula-palestra, fiz o seguinte comentário que enderecei aos amigos mais próximos e aos interessados em Direito do Seguro e Direito dos Transportes:
“Com base nas palavras do Ministro, levando em conta princípios fundamentais do Direito e os conceitos de “sequenciamento” e de “estabilização de precedente”, arrisco dizer:
1)não se pode aplicar a decisão de repercussão geral do STF, tema 210, ao transporte internacional de carga (razão ôntica diferente do transporte de passageiros). Além de fatos diferentes, há choque com Súmula 188, também da Corte, quando seguradora sub-rogada for autora da ação indenizatória. Primazia do princípio da reparação civil integral (art. 944, CC).
2)a decisão do órgão especial do STJ que, em caso muito específico, determinou à seguradora seguir arbitragem convencionada entre seu segurado e terceiro, não cabe nos casos de transportes marítimos internacionais de cargas. Não é precedente aquela decisão nestes litígios, porque estes se informam por contratos de adesão, com cláusulas desde sempre consideradas ilegais, inconstitucionais e abusivas pela jurisprudência. Fatos diferentes, respostas diferentes.”.
Mais do que nunca confio no triunfo no cenário jurisprudencial das duas teses acima expostas, porque as vejo amparadas nos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade, da não surpresa, da isonomia, da equidade e da moralidade, entre outros.
Neste brevíssimo ensaio, desejo tratar da primeira afirmação. Falo, pois, do Tema 210 de repercussão geral do STF, da Convenção de Montreal, da limitação de responsabilidade do transportador aéreo de carga.
Sempre defendi que o espírito da própria Convenção de Montreal desautoriza a limitação de responsabilidade do transportador aéreo em casos de faltas e avarias de cargas. A limitação de responsabilidade é cabível em casos de desastres, acidentes de navegação. Parece-me esta a sua finalidade. E só quando não forem causados por culpa grave.
Casos de mero descumprimento contratual de transporte de cargas não se submetem ao critério limitador, independentemente do pagamento do chamado frete ad valorem. Assim interpreto a Convenção de Montreal com base na visão contemporânea do Direito Contratual informada pelo Direito de Danos. O Direito de Danos é muito incisivo em dispor que aquele que maneja atividade de risco, tem de responder de forma objetiva e integral pelos danos que causa.
Isso, aliás, encontra-se disciplinado no parágrafo único do art. 927 do Código Civil.[1]
No plano contratual, todo devedor de obrigação de resultado responde objetivamente pelo inadimplemento de sua obrigação. A reparação civil há de ser sempre ampla e integral.
A reparação civil integral consta do art. 5º da Constituição Federal, com seu rol exemplificativo de direitos e garantias fundamentais, e do art. 944 do Código Civil.[2]
Diante disso tudo, não há como justificar a continuidade da limitação de responsabilidade do transportador aéreo de carga em caso de faltas e avarias, os danos derivados da desídia operacional e da incúria contratual. Embora o conceito de culpa seja estranho ao desenho geral da responsabilidade civil do transportador aéreo de cargas, há de se dizer que ele pode e deve ser levado em consideração na análise de um caso concreto, ainda que subsidiariamente.
A literatura do Direito dos Transportes autoriza-me a dizer que quase sempre ela se fará presente no descumprimento contratual de transportes de cargas. Uma carga só é avariada ou extraviada se o transportador fracassa concretamente em seus deveres objetivos de guardar, conservar e entregar o bem que lhe confiaram. Não é preciso identificar a culpa em um caso de dano contratual. Contudo, ela sempre nele se encontrará enraizada, guardada no subsolo da casa dos fatos.
A limitação de responsabilidade tinha cabimento no passado, quando se elaborou a Convenção de Varsóvia, base inspiradora da Convenção de Montreal. A indústria da navegação aérea dava seus primeiros passos no ar, e os riscos se faziam bem maiores que os atuais. Por isso a proteção ao setor se revelava importantíssima, até para fomentá-lo.
Evidente que o ato de transportar cargas se imanta de riscos, mas riscos próprios do negócio; aqueles que não desqualificam ao transportador a responsabilidade que possuem. Por outro lado, a navegação aérea, hoje crescida, não mais se reveste dos riscos da infância.
Empresas que fabricam ou montam aviões trabalham com o chamado “risco zero”. Boeing, Airbus e Embraer, entre outras, tudo fazem para a garantia absoluta da confiabilidade da navegação aérea. A matemática e as estatísticas balançam a seu favor. Hoje, é realmente difícil um avião cair. E quando cai raramente a culpa, essa coadjuvante com pretensões de protagonista, anela-se à fabricação da aeronave. Quase sempre deriva de falha humana ou de manutenção (que não deixa de ser falha humana).
A ratio mudou. O anel do passado não mais serve ao dedo presente. Claramente anacrônica neste aspecto, a Convenção de Montreal insiste em manter esse instituto provecto, rodeado de teias de aranha, e que nenhum vínculo guarda com a dinâmica atual dos transportes de cargas e, consequentemente, com os deveres recentes que habitam seu corpo jovem e vivaz. A limitação de responsabilidade, antes de um erro jurídico, é um erro histórico.
O dano contratual tem sua dinâmica. Ela é especialmente tratada na chamada análise econômica do Direito, muito afeita à Escola de Chicago, e que, embora muito questionada, parece ser a que vem ganhando mais popularidade nos meios acadêmicos.
A partir dela o pagamento ou a falta do frete ad valorem mostra-se de somenos importância quando o comparamos com a necessidade de exemplarmente punir o transportador desidioso, com o respeito que se deve manter ao princípio da reparação civil integral, justo, moralmente ordenado e revestido de função social.
O transportador sabe o valor do bem que por contrato lhe confiam. Não há como justificar a sua alegada ignorância de valores, ou cobrá-los em número muito superior a pretexto de lhe dedicar uma presteza diferenciada. Isso é abusivo e prejudica o bom fluxo econômico. Valor conhecível é valor declarado. Ainda que a ciência se dê por outros meios idôneos, como pela consulta a faturas comerciais.
Tudo isso prepara a seguinte afirmação: o Tema 210 de Repercussão Geral do STF é maior que um precedente, mas não pode ser aplicado fora daquilo que o gerou: o transporte aéreo internacional de passageiros e os extravios de bagagem.
Basicamente, precedente é uma tese jurídica fixada por um Tribunal Superior e que deve influenciar os demais órgãos jurisdicionais, monocráticos e colegiados. Para lá das acirradas discussões sobre a conveniência de um mecanismo próprio da Common Law em um sistema jurídico historicamente de Civil Law, como é o brasileiro, o fato é que ele existe hoje no país e foi especialmente consagrado pelo Código de Processo Civil em vigor.
Isso não é realidade que não comporta ataques. Depende apenas de adaptações.
O objetivo de sua introdução, na mesma linha da Escola de Chicago, é oferecer segurança jurídica. O sistema processual de um país impacta no vigor de sua economia, e ele é tanto melhor, segundo muitos, quando contempla em seu organismo a técnica dos precedentes. Exatamente por isso, sua aplicação aos casos concretos não pode ser aleatória. Deve levar em conta um enorme cuidado.
Digo mais, desde já rendendo culto ao deus clichê: a aplicação do precedente tem de ser cirúrgica.
Sendo o precedente uma máxima consolidada, a parcimônia e atenção ao seu uso devem preponderar. E o que quer isso dizer? Que somente em casos idênticos, onde todas as razões informadoras foram discutidas quando da sua formação, é que o precedente pode e deve incidir.
A estabilização de um precedente não abre mão do princípio do sequenciamento e, menos ainda, dos já mencionados princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, da não surpresa, da coerência, da isonomia, entre outros.
O precedente não pode gerar insegurança; pelo contrário deve preservar a segurança. Se os fatos jurídicos não forem rigorosamente os mesmos do caso que o gerou, inviabilizada está sua aplicação. O que vale para o precedente vale também e com mais razão aos temas de repercussão geral.
Por isso, reitero: não se pode aplicar a decisão de repercussão geral do STF, tema 210, ao transporte internacional de carga (razão ôntica diferente do transporte de passageiros).
O transporte de passageiros é muito diferente do transporte de cargas. A distinta ontologia, por si só, censura do Tema 210 as ambições excessivas, sua intrometida figura nos domínios alheios.
No transporte de passageiros não há como se identificar o valor de cada coisa no interior da bagagem extraviada; consequentemente, até mesmo em homenagem ao princípio da boa-fé objetiva e ao da preservação da empresa, busca-se a segurança jurídica e o bem comum. A limitação aqui é justificável.
Eventuais causas agravadoras da culpa do transportador aéreo podem ser discutidas e tratadas pela reparação de dano imaterial, dano moral especialmente, que não se submete ao teor da Convenção de Montreal, mas ao sistema legal civil brasileiro. Já as causas envolvendo transportes de cargas envolvem-se por dinâmicas diferenciadas, atraem procedimentos distintos e aspectos econômicos também diversos, e a decisão de repercussão geral do STF sobra de canto, reclusa, menos célebre do que se julgava.
A análise econômica do Direito, aplicada na formação do Tema 210, justifica tais conclusões. Limitar a responsabilidade do transportador aéreo é ferir de morte o direito da vítima, do contratante débil, da parte mais fraca na relação contratual de transporte. É, por assim dizer, punir a vítima pela segunda vez, conferindo prêmios ilustres ao causador do dano. Com substancial redução do seu dever de reparação, beneficia-se o transportador, sorridente por se haver furtado da obrigação de resultado, dos prejuízos por vezes milionários que causou.
Mais do que a invocação do art. 944 do Código Civil e do espírito constitucional brasileiro, que defende a reparação civil ampla e integral, o que se advoga neste momento é uma defesa da moralidade mais básica. Em um tempo em que o Direito avança na busca pela proteção ao contratante débil, à vítima do dano, ao credor insatisfeito, deixam de ser aceitos instrumentos normativos que blindem o causador do dano, o devedor inadimplente.
O Direito se interpreta e se aplica em sistema. Não justifica um uníssono de interpretações e aplicação literais, premiando da norma a visão insensível, monocórdia e pontual do formalismo, seja ela nacional ou internacional, infra ou supraconstitucional.
Rumo ao fim deste modesto ensaio, há ainda que se levar em conta um fenômeno muito importante: a presença da seguradora sub-rogada.
A maior parte dos litígios envolvendo inadimplementos de obrigações contratuais de transportes de cargas tem como principais partes as seguradoras sub-rogadas nas pretensões originais dos donos das cargas. Quase todo dono de carga preocupa-se em obter uma cobertura do seguro de transporte. Diante do dano, a seguradora paga-lhe a indenização, sub-roga-se na pretensão original e, assim, busca o ressarcimento em regresso contra o transportador.
Ao exercer o ressarcimento em regresso, a seguradora não só defende seus legítimos direitos e interesses. Por força da mutualidade, faz o mesmo em relação aos interesses e direitos do colégio dos segurados. Indiretamente, haja vista a inegável função social do negócio de seguro, também defende os da sociedade em geral, já que ressarcimentos exitosos impactam diretamente na precificação dos seguros. Em outras e diretas palavras: prêmios menores, vantagens consumidoras.
Tem-se também a função social no ato de punir o causador do dano, já que ele não pode deixar de responder por seus atos ilícitos civis em razão de seguros nascidos da previdência alheia e aos custos dos outros.
Por isso a importância do ressarcimento em regresso e da imperiosa necessidade de ser sempre reconhecido em sua integralidade. Dentro deste contexto, uma situação especial, e que inicialmente expus, aqui se repete: Além de fatos diferentes, há choque com Súmula 188, também da Corte, quando seguradora sub-rogada for autora da ação indenizatória. Primazia do princípio da reparação civil integral (art. 944, CC).
A aplicação do Tema 210 do STF contra seguradora sub-rogada, autora de ação regressiva de ressarcimento, implicará ofensa ao Enunciado de Súmula nº 188 da própria Corte Maior.[3]
Um imbróglio que não é só jurídico, mas econômico, eis que devastará o negócio de seguro.
O choque entre a Súmula e o tema de repercussão geral afetará não apenas o princípio da não surpresa e o da estabilização dos precedentes, corolário do princípio do sequenciamento. Ferirá de morte a visão econômica do Direito, atirando prejuízos e mais prejuízos aos milhões de segurados brasileiros pela obrigará de novos cálculos atuariais, cujo produto final não é difícil imaginar: aumento de custos para empresas e consumidores.
Como não existe analogia in malam partem não existe também o uso do precedente, da decisão de repercussão geral, em detrimento de todo um segmento vital para a saúde econômica da sociedade.
Inspirado nas palavras do Ministro Fux, um dos idealizadores da cultura dos precedentes no Brasil, afirmo novamente: divergindo os fatos, a natureza das partes que demandam, não há precedente. A complexidade que não poucas vezes envolve a seguradora sub-rogada e os desdobramentos econômicos do seu pleito de ressarcimento em regresso não são minimamente comparáveis aos de um passageiro cuja bagagem foi extraviada com um punhado de roupas e meia dúzia de acessórios.
A aplicação do Tema 210 em um litígio de ressarcimento de seguradora subrogada contra transportador poderá fazer com que este, causador de um dano de 10 milhões de reais, não pague sequer 10% desse valor. Isso é disparate incompatível com o que há de mais antigo e de mais moderno no Direito; é um acinte movido contra a inteligência perene da lei, capaz de fazer dos precedentes um motivo a mais de desconfiança.
Este ensaio não é um manifesto contra os precedentes. Longe disso. Apenas reconhece-lhe os limites, a coerência de sua aplicação direita, justa. Em casos iguais, aplica-se. Em casos diferentes, não se aplica, sendo certo que, havendo a mais mínima dúvida, também afasta sua incidência.
O Tema 210 nasceu para dizer que a Convenção de Montreal se sobrepõe ao Código de Consumidor. Tudo bem, isso é correto. Sua incidência se limita ao transporte aéreo de passageiros, com extravios de bagagens. O que não cabe é aplicá-lo em detrimento do princípio da reparação civil integral, nos casos em que este se faz fundamental para a da arte do justiça, como no transporte de cargas.
Espero que a cultura dos precedentes cresça no Brasil, que a sociedade aprenda sua importância, diminuindo a quantidade desoladora de disputas judiciais em curso; espero que contribua para a cultura da conciliação. O que não espero é o abuso do remédio, que para virar veneno basta um erro na dose.
Santos, 30 de abril de 2020
Annus Horribilis
Todos juntos na luta contra o avanço da pandemia do COVID-19.
“Se você estiver atravessando o inferno, continue caminhando”
Winston Churchill
Notas
[1] Art. 927. Aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
[2] Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
[3] O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro.