Recentemente, ao aguardar o ônibus para ir ao trabalho, logo que entrei percebique o humor do motorista estava um pouco alterado.
Vários passageiros assim como eu pagavam a passagem com dinheiro, o quefazia o motorista dar troco e liberar a catraca quase que simultaneamente. Na verdadeele não conseguia fazê-lo com a mesma velocidade com que as pessoas se enfileiravamna catraca e quase um a um o solicitava a liberação da entrada no veículo.
Este fato agravou mais seu estado emocional. Em certo momento elerespondeu: “Calma, eu só um só!”.
Não quero aqui de forma alguma denegrir a imagem do motorista de ônibus,pois todos enfrentamos dias em que não estamos bem; poderia também ter ocorridoalgum fato em sua via pessoal que o fez estar naquele estado emocional. Enfim, écompletamente compreensível que haja dias em que estejamos com raiva ou irritadospor algum fato.
Mas o que me chamou a atenção foi o fato dele exclamar: “Eu sou um só!”.Realmente é, e está cumulando funções que a meu ver não trazem benefícios a ninguém.Em minha cidade, Belo Horizonte no Estado de Minas Gerais isso se tornou possívelcom as alterações trazidas pela Lei Municipal nº. 10.526 de 2012, que modificou doisartigos da Lei 8.224 de 2001.
O § 1º do art. 3º da Lei nº 8.224, de 28 de setembro de 2001, passou a vigorarcom a seguinte redação:
"Art. 3º ...§ 1º Cada veículo destinado aos serviços de transporte público coletivo econvencional de passageiros por ônibus do Município de Belo Horizonte seráoperado por um motorista e um agente de bordo, à exceção dos veículos das linhastroncais do sistema de Bus Rapid Transit - BRT, dos veículos em operação emhorário noturno e nos domingos e feriados, e dos veículos dos serviços especiaiscaracterizados como executivos, turísticos ou miniônibus.". (NR) (grifos nossos)
Com a simples leitura do parágrafo primeiro do artigo 3º da Lei 8.224 percebe-se que a regra é que cada veículo destinado ao transporte público coletivo econvencional de passageiros seja operado por um motoristae um agente de bordo(cobrador). A exceção ocorreria nos veículos das linhas troncais do BRT – Bus RapidTransit (no caso de Belo Horizonte, o Move) e veículos e operação no horário noturno enos domingos e feriados e de serviços especiais. Somente nessas situações as empresaspoderiam operar com presença facultativa de cobradores.
A discussão é sobre a interpretação que tem se dado a Lei uma vez que amodificação seria apenas para as especificidades do BRT que tem características demetrô, pois a tarifa é cobrada nos terminais e não dentro dos veículos; o que viabilizariaa ausência dos cobradores.
Contudo, na prática, a retirada dos agentes de bordo ocorreu em todas as linhasdo transporte público e em todos os horários, inclusive, nos horários de maiorconcentração de passageiros e atualmente é uma realidade que parece não ter mais volta.
A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT em seu artigo 468, caput, estatui que:
"Art. 468 - Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração dasrespectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que nãoresultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidadeda cláusula infringente desta garantia". (grifos nossos).
A conclusão lógica é que nenhuma alteração pode ser lesiva ao trabalhador, edepende do seu consentimento, entretanto, a meu ver essa alteração trouxe malefíciospara os motoristas, aos agentes de bordo (aos que não tiveram sua mão de obraaproveitada em outra função e foram demitidos) e a população que utiliza o transporte público.
Nem mesmo após a aplicação de multa diária, pela Justiça, pelodescumprimento da Lei, fez com que as empresas concessionárias retornassem com osagentes de bordo sobrecarregando os motoristas.
Quando um trabalhador exerce, além da sua função, atividades de um cargodiferente, este está acumulando funções e é o caso dos motoristas que estão dirigindo osveículos e cobrando as passagens.
Sabemos que a direção de um veículo é algo que exige muita atenção edisciplina, mas ao contrário do que os defensores dessa modificação dizem, a prática é que às vezes os motoristas cobram as passagens enquanto deveriam estar prestando aatenção somente no trânsito.
Portanto, na prática, os motoristas estão na condução do veículo e preocupadosse cobraram a passagem de todos os passageiros, bem como fazendo o controle daliberação da catraca.
Outro ponto negativo é que do banco do condutor, o motorista precisa (nãosignifica que consegue) ainda ver todo o carro, o que pode ocasionar acidentalmentedele arrancar o veículo antes de todos os passageiros terem desembargado.
As viagens, inevitavelmente ficaram mais longas, quando não se tem oprofissional correto para se realizar a função de cobrar a passagem.
Outro aspecto interessante é que houve acordos para aumento de um percentualna remuneração dos motoristas devido a dupla função. Entretanto, esse “aumento”pecuniário não é capaz de reparar o estresse com que esses profissionais estãotrabalhando atualmente, sem mencionar na outra categoria de trabalhadores que perdeuseu posto: os agentes de bordo.
Mesmo que o aumento pecuniário fosse maior, ainda assim, não compensa o risco em que todos nós estamos sendo expostos.
Na verdade essa discussão só existe pela má aplicação da Lei, pelas empresas concessionárias, pois fizeram da exceção à regra a fim de desonerar sua folha de pagamento.
A realidade se distancia da teoria neste caso. A ideia de se ter um trabalhadormultitarefa dentro do transporte público não me parece ser uma escolha genial, aocontrário, demonstra total falta de respeito ao trabalhador.
Certo é que os motoristas estão “dando conta”, pois precisam trabalhar; é assimque o sistema capitalista funciona; Mas até quando esperaremos para consertar umasituação periclitante como esta? Esperaremos alguma coisa ruim acontecer? Aceitaremos a extinção da profissão dos agentes de bordo?
Evidente que não. Este artigo não tem a pretensão de esgotar um tema tãocomplexo, mas de levá-lo a reflexão que esta situação pode atingir a todos, mesmo quenem seja usuário do transporte público. E provocar a empatia dos usuários para acondição dos motoristas e agentes de bordo afetados por essas mudanças, e fazê-losrefletir na maneira em que podemos ajudar quando da utilização do transporte público.
Não sei se o motorista daquele dia fatídico estava sob o estresse da duplafunção, mas fato é que me despertou para reivindicarmos em prol deles, não só porque seremos prejudicados ou beneficiados, mas porque o avanço da tecnologia tem causadoa coisificação humana, que por infelicidade pode atingir a toda e qualquer categoria de trabalhador.
REFERÊNCIAS
BELO HORIZONTE. Lei Municipal nº 8.224, de 28 de Setembro de 2001. Autorizaimplementar bilhetagem eletrônica nos coletivos, proíbe a substituição das catracas egarante emprego dos operadores na forma que menciona. Belo Horizonte, 2001Disponível em https://leismunicipais.com.br/a/mg/b/belo-horizonte/lei-ordinaria/2001/822/8224/lei-ordinaria-n-8224-2001-autoriza-implantar-bilhetagem-eletronica-nos-coletivos-proibe-a-substituicao-das-catracas-e-garante-emprego-dos-operadores-na-forma-que-menciona. Acesso em 26 fev. 2020.
BELO HORIZONTE. Lei Municipal nº. 10.526, de 03 de Setembro de 2012. Altera aLei Nº. 8224/01 e dá outras providências. Belo Horizonte, 2012. Disponível emhttps://leismunicipais.com.br/a/mg/b/belo-horizonte/lei-ordinaria/2012/1052/10526/lei-ordinaria-n-10526-2012-altera-a-lei-n-8224-01-e-da-outras-providencias. Acesso em 26fev. 2020.BRASIL, Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto-Lei Nº 5.452, de 1º de Maiode1943.Disponívelem:http://http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 27fev.2020.
BRASIL, Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto-Lei Nº 5.452, de 1º de Maiode1943.Disponívelem:http://http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 27fev.2020.