A pandemia do vírus covid-19 é uma realidade inquestionável e já há o consenso pelas autoridades de saúde sobre as providências limitadoras necessárias para evitar, ou minimizar, um colapso do sistema de saúde. Ocorre que, também resta claro que essas providências limitadoras ocasionarão graves consequências negativas na economia, pela simples falta de circulação de riqueza, para ser objetivo, e com reflexos diretos nas relações comerciais.
Ora, uma vez prejudicado ou dificultado o cumprimento das obrigações comerciais, o empresariado passa a se questionar como deve ser o tratamento dado pelo nosso Direito a esta hipótese.
Antes de mais nada, vale destacar que uma pandemia de um vírus que acarrete em instrução oficial de distanciamento, quarentena e, até um isolamento social, possui características de efeitos inevitáveis, além de não ter havido qualquer possibilidade de tal acontecimento ser previsto. Foi algo que apareceu repentinamente, sem qualquer sinal prévio, e seus efeitos não podem ser controlados pelos parceiros contratuais.
E a questão que aparece é: qual seria o tratamento do nosso Direito para esse cenário? Como sabemos, logo no início do Título IV do Novo Código Civil, que trata do inadimplemento das obrigações, o artigo 393 estabelece que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, dois institutos largamente conhecidos.
“Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”
Dando uma rápida pincelada nos conceitos de caso fortuito e força maior, é comum serem tratados como sinônimos, mas sabemos que possuem certas diferenças que, para o nosso estudo, tem necessidade secundária. De qualquer forma, Gaio, jurisconsulto romano do século II, conceituou força maior como vis major est cui humana infirmitas resistire non potest, frase da qual se pode interpretar que força maior é aquela que a fraqueza humana não pode resistir. Trata-se de um fenômeno relacionado a fatos externos, que independem da vontade humana, e que impedem o cumprimento das obrigações.
Na doutrina o entendimento que prevalece é que a força maior deve ser consequência de um fenômeno da natureza, no qual se conhece o motivo ou a causa que lhe deu origem, como um raio ou uma tempestade que geram determinadas consequências a uma relação contratual, por exemplo, um alagamento que impede a entrega de uma mercadoria no prazo convencionado, levando prejuízo a uma das partes. Já no caso fortuito prevalece o entendimento de que sua origem tem causa desconhecida como, por exemplo, a queda repentina de um poste sobre uma rodovia atrapalhando o tráfego de caminhões e impedindo a entrega de uma mercadoria no prazo convencionado, para ilustrar o mesmo exemplo anterior.
Fica claro que, para o nosso caso em análise, pouco importa essa diferenciação, uma vez que possuem, ao final, o mesmo efeito, ficando mais simples e objetiva a linha acadêmica que trata os institutos como sinônimos.
Outro ponto interessante de que vale o esclarecimento é: quem seria exatamente o devedor no contrato? A princípio, a expressão nos leva a uma conclusão precipitada de que o devedor seria a parte responsável pelo pagamento do preço, mais especificamente o cliente. Entretanto, a melhor doutrina ensina que em um contrato o devedor deve ser entendido como qualquer das partes, uma vez que o fornecedor é devedor dos produtos ou serviços e o cliente é o devedor do pagamento do preço. O contrato, via de regra, apresenta obrigações bilaterais. Dessa forma, não importa a posição contratual ocupada, pois ambos são devedores. O devedor não deverá responder pelos prejuízos decorrentes de força maior, dependendo da real consequência do fato ocorrido em direção ao prejuízo alcançado.
Já em relação às características do fato ocorrido, o parágrafo único do artigo 393 é bem claro no sentido de que há obrigatoriedade de ser inevitável e imprevisível. Como já mencionado, pode-se dizer com suficiente conforto que um surto pandêmico de um vírus que demanda distanciamento social e interrupção abrupta da cadeia produtiva é sim um evento inevitável e imprevisível, do qual resultaram sérias consequências econômicas.
Vale aqui abrir um breve parêntesis, no sentido de que não se deve confundir o conceito de força maior, previsto no artigo 393 do Novo Código Civil, com as disposições de seus artigos 317 e 478 e seguintes, que dispõem sobre o desequilíbrio econômico do contrato. A nosso ver, o primeiro tem raízes de causalidade e o segundo de consequência de um fato inevitável e imprevisível. Apesar de não se confundirem, possuem, em regra geral, uma ligação muito frequente, uma vez que o motivo de força maior pode levar a um cenário de onerosidade excessiva do contrato para o devedor da obrigação, gerando um desequilíbrio contratual.
Vale destacar que, inobstante a possibilidade de se aplicar o instituto de força maior nos casos em que se observe um fato inevitável e imprevisível, com a consequente suspensão da responsabilidade do devedor prejudicado, o fato ocorrido por si só não é suficiente. Deve haver uma detalhada demonstração na notificação de força maior, do impedimento econômico real que justifique a impossibilidade momentânea do cumprimento do dever contratual assumido. Não será aceitável um pretexto genérico, mas sim uma argumentação sólida e clara que demonstre seu impedimento e justifique sua aplicação.
É comum observar no mercado empresas que notificam seus parceiros contratuais apenas alegando o fato de força maior e não detalhando os reais prejuízos ocasionados. Para ilustrar, podemos citar o exemplo de um cliente de um contrato de fornecimento de matérias primas que, pelo advento da pandemia do covid-19, notifica o fornecedor informando que não poderá cumprir o contrato com as compras combinadas do produto. Ocorre que, para estabelecer o motivo de força maior, o cliente deveria nessa notificação explicitar suas dificuldades, seus impedimentos, ou seus prejuízos concretos, seja pela paralisação de uma planta industrial por falta demanda de seu produto, seja pela perda de um número determinado de clientes ou outros motivos. Quanto mais detalhadas as alegações mais clara e inquestionável é a determinação do motivo de força maior.
Outra hipótese é a notificação sem o detalhamento do impedimento econômico real, porém condicionando a apresentação desse detalhamento em “momento oportuno”, quando os impedimentos ou prejuízos concretos de fato ficarem mais claros e mensuráveis. No nosso entendimento será apenas nesse “momento oportuno” que o motivo de força maior estará configurado e passará a valer a suspensão de responsabilidade do devedor.
Uma vez devidamente caracterizado o motivo força maior, como tratar a relação comercial prática considerando os princípios do Direito Contratual como a boa-fé objetiva e função social dos contratos? A doutrina e jurisprudência predominante ensinam que se deve dar preferência pela suspensão temporária e não pela rescisão contratual automática. Ora, é inclusive de interesse das partes que o contrato não seja rescindido de pronto. Quando da celebração de um contrato comercial, supõe-se que as partes de fato precisam de seu cumprimento para o exercício de seus negócios. Nessa linha é razoável que a relação seja apenas suspensa temporariamente e não resolvida, e que volte a sua plena vigência assim que o motivo de força maior termine.
Essa linha de raciocínio deve ser aplicada principalmente nos contratos que prevejam um mecanismo que assegura a compra de quantidade mínima de produto, independentemente da sua utilização. É a chamada cláusula de take or pay, onde normalmente uma das partes realizou um investimento específico para a celebração daquele contrato. Seria um prejuízo muito alto para a parte investidora se o contrato fosse rescindido de pleno, pelo advento do motivo de força maior.
É recomendável que esse tipo de contrato preveja expressamente em sua cláusula de força maior, que seu exercício deverá ser suspenso nessa hipótese. Entretanto, entendemos que mesmo sem a previsão, deve ser esse o tratamento dado. Ou seja, observado e devidamente notificado o motivo de força maior, o contrato sofre suspensão temporária dos efeitos da cláusula de volume mínimo até a normalização das atividades da empresa e, com a retomada, devem as partes rever o volume mínimo convencionado até a retomada normal da produção do cliente.
Nessa hipótese, as partes poderão inclusive negociar uma compensação futura ao fornecedor do bem ou do serviço. O “razoável” deve sempre ser o tom da conversa, cumprindo dessa forma com os princípios contratuais anteriormente mencionados.