Os debates em matéria trabalhista têm se centrado nas últimas medidas provisórias vindas do poder executivo, a saber 927, 928, 936, 944 e 945. Sem adentrar no mérito de se estas medidas são boas ou más, e acredito que tenham vários aspectos defensáveis, quero aprofundar aqui outra questão que para mim é juridicamente mais importante, pois é um tema estrutural e central dentro do sistema jurídico-constitucional nacional.
É sabido que a medida provisória 936/2020 autoriza a redução de salários e de jornada de trabalho, bastando acerto entre empregado e empregador, com dispensa do que está estampado no artigo 7º, VI, da CF/88, acordo coletivo ou convenção coletiva.
Será, contudo, que, dado o momento especial pelo qual passa a coletividade, pode-se abrir uma “exceção” e permitir esta forma de acerto, à revelia do que consta da Constituição brasileira?
A meu ver isso não é possível. Há evidente inconstitucionalidade da MPV 936/2020 neste ponto, pois que autoriza redução salarial e de jornada por simples acordo entre empregado e empregador. O que se poderia argumentar em sentido contrário à inconstitucionalidade e que justificaria esta excepcionalidade é que em momentos extremos cabe cada um dar sua cota de sacrifício e que questões de constitucionalidade ficariam suspensas em situações como a presente, em proveito da coletividade, direitos de personalidade à saúde e à vida.
Sobre isso é bom destacar que não se está ponderando redução de salários e jornada de trabalho por acordo individual e direito à saúde e à vida. Basta que se faça e isso é possível pelas ferramentas tecnológicas que se tem hoje, o debate entre sindicatos ou entre empresa e sindicato para que se chegue ao consenso. Não se está defendendo a impossibilidade das reduções neste momento e sim a forma como devem ocorrer.
De outra face, não se pode perder de vista que momentos de crise são inerentes ao modo de produção capitalista. Claro que crises epidêmicas são raras, mas possíveis, conforme mostra a história (ver 1918 e a Gripe Espanhola). Ou seja, o capitalismo é ele e suas crises (1918, 1929, 1977, 1989, 1999, 2008 por exemplo), e não apenas ele. Sem as crises não há capitalismo, e se as crises são inerentes ao capitalismo, é evidente que a Constituição em um Estado capitalista é pensada considerando estes momentos extremos e difíceis, devendo, ainda que eles cheguem, ser preservada e respeitada como balizador das relações sociais e econômicas, já que, como dito, pensada também para crises. Do contrário, haveria (e há limitadores) estes não aplicáveis à situação aqui em debate. A Constituição é, portanto, o limite mínimo, o balizamento mínimo.
E como balizamento mínimo, negociar com elementos centrais dentro da estrutura constitucional é colocar em risco todo o sistema jurídico de um país. Isso porque qual ou quais serão os limites? A que crise ou crises se aplicariam a “flexibilização” da Constituição e de seus preceitos? Justificar-se-ia por exemplo a tomada das máquinas pelos trabalhadores em situação de miséria extrema?
Como não há respostas para estas perguntas, é certo que ainda em momentos como o presente deve-se preservar a estrutura constitucional, a fim de evitar a ruptura do sistema jurídico, pois que não haverá limites para eventual redução e/ou desconexão constitucional.
Chamo a atenção para o risco que o sistema constitucional brasileiro vive neste momento, e ponho destaque na questão trabalhista, em razão de se estar “flexibilizando” a exigência de acertos coletivos para redução de salário e jornada de trabalho, havendo forma de se fazer estas reduções com a participação dos sindicatos.
O que se deve fazer é centrar na estrutura constitucional presente e, a partir dela (e não o contrário), tomar-se providências frente as crises. Em não sendo assim, em tese, qualquer fato um pouco mais grave poderia, pelo poder executivo, ser classificado como crise, pandemia ou de certa gravidade a fim de que se deixe de observar os parâmetros constitucionais mínimos.