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Força maior e fato do príncipe no direito do trabalho

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Agenda 10/04/2020 às 11:00

Os efeitos econômicos decorrentes da pandemia da covid-19 podem ser considerados como um caso de força maior para efeitos de aplicação da legislação trabalhista que regula situações excepcionais.

Sumário: 1 Introdução. 2 A força maior no Direito do Trabalho. 3 O fato do príncipe no Direito do Trabalho. 4 Questões processuais relevantes. 5 Conclusões. Referências bibliográficas.


1 Introdução

Os dramáticos impactos econômicos provocados pela pandemia da covid-19 têm direcionado a atenção da comunidade jurídica à análise da viabilidade de manejo de instrumentos e medidas pouco convencionais ou, mesmo, impensáveis em tempos de normalidade.

Na seara juslaboralista, as discussões, estimuladas, inclusive, por iniciativas legislativas, desenvolvem-se em torno de temáticas extremamente polêmicas, a exemplo da redução salarial independentemente de negociação coletiva, da suspensão de contratos de trabalho e da antecipação de férias relativas a futuros períodos aquisitivos.

Interessa-nos, neste espaço, o exame de duas das figuras inseridas no contexto daquilo que se tem denominado de Direito do Trabalho de crise: a força maior e o factum principis.


2 A força maior no Direito do Trabalho

Sob o pálio do caso fortuito e da força maior reúnem-se as “causas alheias à vontade do devedor e suficientes para tornar impossíveis as prestações”, pouco importando se decorrentes de “um ato de terceiro ou de uma força da natureza ou, ainda, de uma providência qualquer a que não poderia resistir o devedor, uma providência governamental etc”[1], consoante leciona San Tiago Dantas.

Conquanto parcela relevante da doutrina associe o caso fortuito à característica da imprevisibilidade e a força maior à qualidade da inevitabilidade, a identidade de tratamento jurídico conferido pelo ordenamento pátrio aos aludidos institutos torna pouco proveitosa, em termos práticos, a tentativa de demonstração de sua distinção estrutural. Daí advertir Orlando Gomes que “todo o esforço da doutrina para bifurcar o acaso resultou numa confusão, que hoje se procura evitar, ou mesmo contornar, eliminando-a pura e simplesmente, atenta à circunstância de que é igual o efeito atribuído pela lei”[2].

Excepcionando a diretriz de acordo com a qual o legislador deve abster-se de conceituar, estabelece a CLT, em seu art. 501, caput, que a força maior consiste em “todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente”.

O critério da imprevisibilidade não deixou de ser contemplado no diploma celetista, seja pela alusão à necessidade de ausência de concurso do empregador para a ocorrência do acontecimento gravoso, seja pela exclusão, no § 1º do mesmo artigo, da imprevidência patronal como causa configuradora da força maior.

A ocorrência de motivo de força maior no curso do expediente autoriza o empregador a exigir a prorrogação do trabalho, inclusive ultrapassando o limite legal ou convencionado, conforme dispõe o art. 61, caput, da CLT. No caso do aprendiz, é possível a prorrogação da jornada até o máximo de doze horas, desde que seu trabalho seja imprescindível ao funcionamento do estabelecimento (art. 413, inciso II). Tendo ocorrido, ademais, a impossibilidade de prestação de serviços por razões de força maior, faculta-se à empresa a prorrogação da jornada para recuperação do tempo perdido, observando-se o limite de duas horas diárias, durante o número de dias indispensável para a recuperação do tempo perdido, o qual não poderá ser superior a 45 dias, sendo necessária a obtenção de autorização administrativa (art. 61, § 3º).

Em circunstâncias de extrema gravidade, quando o motivo de força maior afetar substancialmente a situação econômica e financeira da empresa a ponto de ensejar sua extinção ou de um dos seus estabelecimentos, descortina-se para o empregador uma nova possibilidade: a despedida do trabalhador com o pagamento de metade da indenização que seria devida em caso de dispensa sem justa causa, de acordo com o art. 502 da CLT, adiante transcrito:

Art. 502 - Ocorrendo motivo de força maior que determine a extinção da empresa, ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado, é assegurada a este, quando despedido, uma indenização na forma seguinte:

I - sendo estável, nos termos dos arts. 477 e 478;

II - não tendo direito à estabilidade, metade da que seria devida em caso de rescisão sem justa causa;

III - havendo contrato por prazo determinado, aquela a que se refere o art. 479 desta Lei, reduzida igualmente à metade.

Sublinhe-se que o art. 502 celetista foi concebido no contexto do sistema da estabilidade decenal, consagrada inicialmente apenas em favor dos ferroviários (Decreto Legislativo n.º 4.682/1923, art. 42), vindo a ser posteriormente ampliada para alcançar os trabalhadores da indústria e do comércio (Lei n.º 62/1935, art. 10), generalizando-se, enfim, para todos os trabalhadores urbanos com o advento da CLT (excetuados aqueles referidos no art. 7º do diploma legal).

Nessa ordem de ideias, o art. 492 [3] consolidado vedava a despedida do empregado que contava com mais de dez anos na empresa, ressalvados apenas os casos de falta grave ou motivo de força maior.  O art. 497 [4], a seu turno, explicitava algo evidente: que a extinção da empresa, ainda que ausente causa de força, necessariamente também importaria na cessação do vínculo empregatício do estável. Idêntico raciocínio foi consagrado em relação ao fechamento de estabelecimento, filial ou agência ou supressão necessária da atividade, nos termos do art. 498 [5] consolidado. O art. 502, acima transcrito, disciplinava a situação de cessação do vínculo do estável em decorrência da extinção da empresa ou do estabelecimento por motivo de força maior.

Para aqueles contratados há menos de dez anos, a despedida imotivada ensejava a percepção de uma indenização correspondente a um mês de remuneração por ano de efetivo serviço ou por ano e fração igual ou superior a seis meses, nos termos fixados na redação original dos arts. 477 e 478, ambos da CLT. A exceção recaía sobre aqueles que contavam menos de um ano completo de contrato, sendo tal interregno considerado como período de experiência (figura distinta do contrato de experiência, destaque-se), não sendo devida a referida indenização na hipótese de sua despedida sem justa causa (art. 478, § 1º).

Embora seja frequente a qualificação da estabilidade decenal como absoluta, a assertiva deve ser compreendida como o reconhecimento de um óbice extremamente severo à cessação contratual, mas não intransponível, seja em razão da possibilidade de extinção do vínculo diante da ocorrência de falta grave (observado para tanto o necessário ajuizamento de ação constitutivo-negativa específica, prevista no art. 494 da CLT) ou de “pedido”[6] de demissão (cuja validade depende da assistência assegurada no art. 500 da CLT), seja pela possibilidade de fracasso, total ou parcial, do empreendimento empresarial, por motivos de força maior ou não.

Inexistindo motivo de força maior, em caso de cessação do contrato do trabalhador estável em razão de extinção da empresa, do estabelecimento ou de supressão necessária da atividade, o empregado fazia jus à indenização prevista nos arts. 477 e 478, paga em dobro, em consonância com o disposto nos arts. 497 e 498, todos da CLT.

Por sua vez, o término do vínculo empregatício do estável decenal decorrente de motivo de força maior que redundasse em extinção da empresa ou do estabelecimento em que laborava encontrava sua disciplina no art. 502, inciso I, da CLT, que impunha o pagamento da indenização consagrada nos arts. 477 e 478 de forma simples. Isto é, caberia ao empregador pagar o correspondente à metade da indenização que seria devida a esse trabalhador em caso de cessação contratual não decorrente de força maior.

Eis aí a lógica que inspirou o art. 502 celetista: tratando-se de acontecimento inevitável, irresistível, não seria justo impor ao empregador as mesmas consequências incidentes numa situação de encerramento total ou parcial de atividades por razões estratégicas, arbitrárias ou, mesmo, por gestão desastrada do negócio.

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O mesmo raciocínio é aplicado aos incisos II e III do citado artigo.

O inciso II do art. 502 dirigia-se ao trabalhador contratado por tempo indeterminado que contava mais de um e menos de dez anos na empresa. Sua despedida provocada por causa de força maior garantia-lhe o recebimento do valor correspondente à metade da indenização prevista nos arts. 477 e 478 da CLT.

A seu turno, o inciso III encontra no término do contrato de trabalho por tempo determinado por motivo de força maior a sua hipótese de incidência, impondo-se o pagamento do equivalente à metade da indenização assegurada, como regra geral, pelo art. 479 [7] para tal modalidade contratual (excetuado o caso de pactuação de cláusula assecuratória do direito recíproco de rescisão). Em circunstâncias convencionais, o trabalhador teria direito ao recebimento de metade da remuneração devida até a data inicialmente estipulada para a cessação contratual. No caso de extinção por força maior, faz jus apenas a metade disso (25% da remuneração que seria devida até o final do contrato, portanto).

Nos casos previstos nos três incisos do art. 502, repise-se, o abatimento de metade do valor da indenização apenas terá lugar se a razão de força maior for substancialmente grave a ponto de determinar a extinção da empresa ou do estabelecimento em que se ativa o trabalhador.

O leitor atento terá observado que utilizamos o tempo pretérito para expor as situações arroladas nos incisos I e II do art. 502 da CLT. Isso porque o sistema ao qual aludem situa-se, hoje, muito mais no campo da História do Direito do que no cotidiano das relações de trabalho.

Com o advento da Lei n.º 5.107/66, institui-se no ordenamento pátrio a opção entre o regime da estabilidade decenal e o do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, ao arrepio, a propósito, do disposto no art. 157, inciso XII, da Constituição de 1946, que garantia a estabilidade no emprego como um direito dos trabalhadores.

O inusitado ajuste constitucional à legislação ordinária veio a ocorrer com a Carta de 1967, que passou a prever como direito social “estabilidade, com indenização ao trabalhador despedido, ou fundo de garantia equivalente” (art. 158, XIII).

A Constituição de 1988 tornou obrigatório o regime do FGTS, ressalvado o direito adquirido daqueles que já haviam completado dez anos de tempo de serviço sob o sistema da estabilidade (não optantes, pois). Assim, após pouco mais de duas décadas de consagração formal de um direito de opção cujo efetivo exercício era cada vez mais rarefeito no seio social, houve por bem o constituinte decretar sua extinção, o que levou José Augusto Rodrigues Pinto, com a agudeza de espírito que lhe é característica, a declarar: “chegamos a considerar piedosa a eliminação dessa estabilidade decenal na Constituição de 1988. Poupou-lhe o prolongamento de uma agonia lenta e desmoralizante” [8].

Com a substituição do regime de estabilidade decenal pelo do FGTS, o art. 502 passou a exigir uma atualização interpretativa, compatibilizando-o ao novo cenário jurídico.

Nessa linha de intelecção, atualmente (e ressalvados os raríssimos casos de estáveis decenais remanescentes em atividade), os incisos I e II referem-se, em verdade, a uma única situação: contratos de trabalho por tempo indeterminado, independentemente do seu tempo de subsistência (menos ou mais de um ano, menos ou mais de dez anos). Em qualquer dos casos, a antiga indenização prevista nos arts. 477 e 478 da CLT cedeu espaço à indenização (popularmente denominada de “multa”) de 40% do FGTS, em conformidade com o art. 10, inciso I [9], do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Estabelecem-se, então, duas importantes conclusões:

a) A menção ao termo indenização nas disposições celetistas a respeito da cessação do contrato de emprego por tempo indeterminado sempre se refere àquela assegurada nos arts. 477 e 478, engendrados à época da existência do regime de estabilidade decenal;

b) Tendo o sistema de estabilidade decenal sido substituído pelo do FGTS, o termo indenização deve ser compreendido como referente à figura criada como equivalente no novo regime, a indenização de 40% do FGTS, prevista no art. 10, inciso I, do ADCT e no art. 18, § 1º [10], da Lei n.º 8.036/90.

Convém, a esta altura, tecer dois esclarecimentos relevantes.

Existe candente controvérsia doutrinária acerca do cabimento do aviso prévio em caso de extinção do contrato por motivo de força.

Para alguns, não faz jus o trabalhador ao recebimento da referida parcela [11]. Para outros, a verba em comento deve ser paga ao obreiro, por inexistir explícita ressalva legal[12]. Para uma terceira corrente, deve-se aplicar a mesma lógica referente à indenização de 40% do FGTS, com a redução do valor do aviso prévio pela metade [13].

Parece-nos que assiste razão à primeira proposta interpretativa.

Nos termos do art. 487, caput, consolidado, o aviso prévio deve ser concedido pela “parte que, sem justo motivo, quiser rescindir o contrato”. O emprego do verbo “querer” no texto legal não se dá por motivo gracioso.

Sob a ótica da teoria dos contratos, o aviso prévio nada mais é do que uma espécie de denúncia, compreendida, no magistério de Pontes de Miranda, como “manifestação unilateral de vontade”, consistente no exercício do “direito de extinguir a relação jurídica de origem negocial, a partir do momento da denúncia, ou de outro momento, no futuro” [14].

Consoante lecionam Orlando Gomes e Elson Gottschalk, a “força maior rompe a relação de trabalho, de forma que dispensa a denúncia de uma das partes”[15], razão pela qual pontificam a impossibilidade de sua concessão “nos casos de força maior que incidem sobre a empresa” [16].

Alcançado o empregador pela causa de força maior de que cogita o art. 502 da CLT, a extinção do vínculo empregatício não será decorrência de sua vontade, mas de fato irresistível que ensejou a extinção da empresa ou do estabelecimento, circunstância incompatível com a exigência de denúncia do contrato.

A mesma conclusão é extraída da jurisprudência consolidada no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, se analisada com profundidade.

Deveras, a conhecida Súmula n.º 44 da Corte trata-se de didático exemplo da relevância do estudo dos precedentes para a adequada interpretação e aplicação dos verbetes sumulares, providência reiteradamente proclamada pela doutrina processual contemporânea, especialmente a partir do advento do Código de Processo Civil de 2015.

Com efeito, consoante adverte Hermes Zaneti Jr.,

no modelo adotado no Brasil, não há/haverá dispensa da análise dos precedentes em razão das súmulas, ou seja, as súmulas somente podem ser adequadamente compreendidas à luz da leitura dos precedentes e decisões que lhes deram origem e dos fundamentos determinantes adotados pela maioria dos julgadores, incluídas as circunstâncias de fato (art. 926, § 2º). Constitui vício na motivação judicial, patente de anulação da decisão, a falta de menção aos fundamentos determinantes da decisão e a demonstração de que os fundamentos determinantes do caso-precedente se ajustam ao caso-atual (art. 489, caput, § 1º, V; art. 1.022, § 1º, II)[17].

Eis o teor da Súmula n.º 44 do TST: “A cessação da atividade da empresa, com o pagamento da indenização, simples ou em dobro, não exclui, por si só, o direito do empregado ao aviso prévio”.

A exclusiva leitura do enunciado conduzirá o intérprete à conclusão de que, cessada a atividade da empresa, sempre será devido ao trabalhador o pagamento do aviso prévio, independentemente dos fatores que importaram no malogro do empreendimento.

Não é essa, todavia, a interpretação extraída da análise do texto do verbete à luz dos precedentes que ensejaram sua edição.

Os acórdãos indicados pela Alta Corte Trabalhista como precedentes para a criação da Súmula n.º 44 foram proferidos nos seguintes processos: ERR 425/1971, RR 07/1971, RR 4345/1970 e RR 4354/1970.

Por ocasião do julgamento do RR 4354/1970, sob a relatoria do Ministro Arnaldo Süssekind, assentou-se o seguinte:

O aviso prévio será sempre devido se a rescisão do contrato de trabalho resultar de ato volitivo de uma das partes. Por isto, se ambas as partes preveem a extinção da relação de emprego (contrato a prazo) ou ajustam sua dissolução (distrato), o preaviso não será devido. Por igual, se os dois contratantes não desejam pôr fim à relação e emprego, mas ela cessou em razão de fato ou ato que não lhes é imputável (extinção da empresa, do estabelecimento ou do setor por motivo de força maior ou factum principis), o aviso prévio também será indevido. (grifos no original)

Verifica-se, assim, que a Súmula n.º 44, adequadamente compreendida a partir dos seus precedentes, não admite sua invocação para afirmação do direito ao avio prévio na extinção do contrato por força maior, mas, ao revés, precisamente para o reconhecimento do não cabimento da parcela em tal espécie de cessação contratual.

Compreendida a questão, conclui-se que a ausência de ressalva legal expressa à concessão do aviso prévio nos casos de encerramento do contrato por força maior não significa o reconhecimento do direito ao trabalhador, mas decorre simplesmente do fato de ser desnecessária tal ressalva, diante do pressuposto erigido pelo art. 487 da CLT ao cabimento da verba.

Indevido, portanto, o aviso prévio no término do vínculo empregatício por motivo de força maior (CLT, art. 502).

Outra questão objeto de controvérsia refere-se à possibilidade ou não de habilitação perante o programa do seguro-desemprego pelo trabalhador cujo contrato extinguiu-se nos termos do art. 502 celetista.

Aqueles que militam na área juslaboralista certamente já tiveram notícia da recusa pela Caixa Econômica Federal em relação ao acesso ao benefício por parte de trabalhadores nessa condição.

A negativa funda-se na literalidade do art. 3º, caput, da Lei n.º 7.998/90, de acordo com o qual o seguro-desemprego apenas é devido ao obreiro despedido sem justa causa, e do art. 3º, caput, da Resolução n.º 467/2005 do CODEFAT, que esclarece seu cabimento também na hipótese de despedida indireta, dada sua equiparação à dispensa imotivada.

Considerando o princípio da legalidade estrita, que limita o agente administrativo a realizar apenas aquilo que a lei autoriza, é compreensível o procedimento adotado. Afinal, constará do campo “Causa do afastamento” no TRCT do obreiro uma hipótese não prevista na Lei n.º 7.998/90 e na Resolução n.º 467/2005 do CODEFAT para habilitação para percepção do benefício.

Compreensível, sim, mas não acertada, concessa venia.

Isso porque o art. 7º, inciso II, da Constituição Federal de 1988 é inequívoco ao assegurar, como direito dos trabalhadores, o “seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário”.

Evidentemente, em caso de extinção contratual por motivo de força maior, o empregado não deu causa à cessação do vínculo, encontrando-se em situação de desemprego involuntário.

Por isso, afirmamos que o trabalhador terá direito à habilitação perante o seguro-desemprego, propugnando pela alteração da normatização de regência, compatibilizando-a com a determinação constitucional. Enquanto não concretizada modificação, ao obreiro restará a formulação de requerimento administrativo ou o recurso à via judicial.

Quanto aos contratos por tempo determinado, o inciso III do art. 502 permanece regularmente aplicável, por aludir ao art. 479 da CLT, ainda presente no ordenamento nacional.

Estabelecidas tais premissas, é possível delinear o seguinte quadro:

a) a ocorrência de força maior, compreendida como acontecimento inevitável, para o qual não concorreu o empregador por meio de ações diretas ou imprevidência na condução do negócio, que gera consequências gravosas à atividade, autoriza o recurso às hipóteses de prorrogação de jornada previstas nos arts. 61, caput e § 3º, e 413, inciso II, da CLT. Poderá o empregador, também, obviamente, socorrer-se de outras medidas de gestão da força de trabalho em períodos de crise, como ajustes no sistema do banco de horas, concessão de férias coletivas, suspensão de contratos para qualificação profissional, adesão ao procedimento previsto na Lei n.º 13.189/15 (Programa Seguro-Emprego), além de outras eventualmente aprovadas em contextos específicos, mas a legislação não exige, para adoção de tais providências, a configuração de causa de força maior;

b) a ocorrência de força maior cuja gravidade redunde na extinção da empresa ou do estabelecimento ao qual está vinculado o trabalhador autoriza a despedida do empregado nos termos do art. 502 da CLT, sendo que:

b.1) na hipótese de contrato por tempo indeterminado, o obreiro fará jus ao saldo de salário, ao décimo terceiro proporcional e às férias vencidas (se for o caso) e proporcionais com 1/3, observando-se, porém, que a indenização do FGTS será calculada não no percentual de 40%, mas no de 20%, o que, inclusive, veio a ser consagrado no art. 18, § 2º [18], da Lei n.º 8.036/90;

b.2) na hipótese de contrato por tempo determinado, o obreiro fará jus às verbas rescisórias típicas da extinção antecipada por iniciativa do empregador, observando-se, entretanto, que a indenização não corresponderá a 50% da remuneração devida até a data originalmente fixada para a cessação contratual (art. 479), mas a 25% de tal remuneração (art. 502, inciso III);

c) Não havendo extinção da empresa ou do estabelecimento em que se ative o empregado, simplesmente não será possível a redução da indenização pela metade, vindo a incidir as regras gerais de extinção do vínculo aplicáveis a cada modalidade contratual;

d) Acaso venha a ser constatada a falsidade da alegação de força maior, os trabalhadores farão jus à complementação da indenização recebida (art. 504).

Ressalte-se que a redução salarial promovida unilateralmente pelo empregador, prevista no art. 503 consolidado, revela-se flagrantemente incompatível com o art. 7º, inciso VI, da Constituição Federal de 1988, que assegura a “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”. Em verdade, a subsistência do aludido dispositivo da CLT no ordenamento pátrio é severamente questionável mesmo desde décadas antes do advento da Carta Cidadã, sustentando parcela expressiva da doutrina sua revogação tácita pelo art. 2º da Lei n.º 4.923/65.

Importa esclarecer, aqui, que, em razão dos limites propostos no presente estudo, não serão objeto de exame as medidas de redução salarial previstas na Medida Provisória n.º 936/2020.

Considerando que a regra geral adotada no Direito do Trabalho é que os riscos da atividade recaem sobre o empregador (CLT, art. 2º) e tendo em vista que a imprevidência deste afasta a configuração da força maior (CLT, art. 501, § 1º), não são frequentes os casos de reconhecimento da ocorrência do instituto na seara juslaboralista.

Nessa ordem de ideias, leciona a doutrina que não configuram força maior, por exemplo: “dificuldades financeiras por má gestão ou em razão e crise econômica no País”, “a greve e a falência, como a recuperação judicial ou mesmo a liquidação extrajudicial” [19]; “problemas financeiros, decorrentes de políticas econômicas ou dificuldades diversas verificadas no mercado” [20]; a “extinção do contrato de prestação de serviços ou de cessão real de uso” [21].

Na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho é possível identificar como casos que não ensejam o reconhecimento da força maior, exemplificativamente, a cessação de contrato de prestação de serviços mantido com ente público[22], o insucesso em procedimento licitatório[23], dificuldades financeiras enfrentadas pela empresa[24], assim como a sua falência [25].

É possível citar, por outro lado, como situações que podem ser visualizadas como motivos de força maior “desastres naturais e catástrofes, como terremotos e tempestades, causando destruição e prejuízos que não se tinha como evitar” [26].

É necessário, entretanto, mesmo em tais casos, ter cautela, não sendo aconselhável o automático enquadramento como situações de força maior, uma vez que, como adverte Homero Batista Mateus da Silva, em certas hipóteses os riscos “eram previsíveis: empresas instaladas em locais sujeitos ao transbordamento de rios e águas pluviais, postos de gasolina desprovidos de equipamentos eficazes de combate ao fogo e assim por diante”[27].

Cabe-nos, agora, indagar: os efeitos econômicos decorrentes da pandemia da covid-19 podem ser considerados como um caso de força maior?

Sem sombra de dúvidas, a resposta é positiva.

É certo que risco da atividade recai sobre o empregador (CLT, art. 2º), responsável, no exercício da livre iniciativa, pela organização do empreendimento e beneficiário primeiro dos seus resultados positivos. Crises econômicas são inevitáveis no sistema de produção capitalista, dotadas de caráter cíclico, não havendo quem seriamente possa alegar surpresa quando da sua chegada.

Não estamos diante, entretanto, de simples crise de caráter estrutural, mas de uma emergência sanitária global, de proporções ainda desconhecidas pela humanidade, a ponto de exigir um conjunto de esforços de dezenas de países para realização de investimentos em dimensão inédita, em muitos casos representativos de frações significativas do Produto Interno Bruto das respectivas nações, com o propósito de evitar o completo estrangulamento das suas economias e de assegurar a subsistência dos indivíduos durante o período de isolamento social necessário à mitigação do inevitável colapso dos sistemas de saúde.

Nesse diapasão, em prestígio à segurança jurídica, a Medida Provisória n.º 927/2020, em seu art. 1º, parágrafo único, explicitou que o estado de calamidade reconhecido pelo Decreto Legislativo n.º 6/2020 constitui, para fins trabalhistas, “hipótese de força maior, nos termos do disposto no art. 501 da Consolidação das Leis do Trabalho”.

Assim, durante o período de duração do estado de calamidade pública, encontra-se o empregador autorizado, a priori, a valer-se das hipóteses de prorrogação de jornada previstas nos arts. 61, caput e § 3º, e 413, inciso II, da CLT.

Deverá, no entanto, proceder com bom senso, considerando a natureza do empreendimento e a atividade desenvolvida pelo trabalhador.

O estado de calamidade decorrente da pandemia da covid-19 não possui as mesmas características de um evento pontual, ocorrido em apenas um dia ou em curto período de dias, quando se evidencia necessária a concentração de esforços de número expressivo de trabalhadores para a realização de certas tarefas, como normalmente se verifica nos casos de força maior observados em âmbito trabalhista. Trata-se, o revés, de situação de longa duração, que provoca repercussões distintas de acordo com a atividade econômica desenvolvida pelo empregador.

Assim, a exigência patronal de prorrogação da jornada dos empregados pode não fazer sentido em relação a uma farmácia que prosseguiu com seu funcionamento regular, mas revelar-se indispensável, durante determinado período, quanto a uma empresa fabricante de equipamentos de proteção individual que recebeu uma encomenda para fornecimento em caráter de urgência de máscaras cirúrgicas a um hospital.

Cabe, por fim, indagar: ante o disposto no art. 1º, parágrafo único, da MP n.º 927/2020, encontra-se a empresa automaticamente autorizada a extinguir contratos de emprego beneficiando-se da redução do percentual da indenização do FGTS para 20%?

A resposta é negativa. Conforme examinado anteriormente, a redução da indenização do FGTS apenas é admissível no caso de força maior cuja elevada gravidade importe na extinção da empresa ou do estabelecimento em que se ativava o trabalhador. A desoneração legal não é, pois, cabível para toda e qualquer cessação contratual.

Cumpre-nos, agora, avançar ao exame de uma modalidade especial de força maior: o fato do príncipe.

Sobre o autor
Leandro Fernandez Teixeira

Juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Sexta Região. Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Professor. Diretor de Prerrogativas da Amatra VI (gestão 2018/2020). Membro da Comissão Nacional de Prerrogativas da Anamatra (gestão 2019/2021). Coordenador Adjunto da Revista de Direito Civil e Processual. Membro do Instituto Baiano de Direito do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Leandro Fernandez. Força maior e fato do príncipe no direito do trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6127, 10 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80979. Acesso em: 22 dez. 2024.

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