A LEI
O direito é um legado da modernidade, sendo considerado como necessário para a implantação das ideias revolucionárias surgidas com o novo paradigma, isto é, a Codificação Napoleônica e a tentativa de engessamento da mente do hermeneuta. Ao direito foi atribuída a hercúlea tarefa de assegurar a ordem advinda com o capitalismo; seu escopo é manter a paz social e a segurança jurídica[1], em poucas palavras. Para que tal projeto fosse implementado, o direito teve de se submeter à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência moderna e em consequência também ele se tornou, por assim dizer, uma “ciência”. O eminente Eros Grau bem esclarece: o intérprete autêntico, ao ‘produzir’ normas, pratica a ‘juris prudentia’ e não uma ‘juris scientia’[2]. O jurista vai além: como o direito reclama ‘interpretação’ - na medida em que apenas desde que ‘interpretado’ ele se realiza como ‘jurisprudência prática’ (pois ele é ‘a jurisprudência prática’) - e a ‘interpretação’ é uma ‘prudência’, devo necessariamente concluir que o direito é uma ‘prudência’[3].
O direito não fica [nem poderia ficar] adstrito à fechada codificação posta pelo Estado; não se resume à lei escrita pelo legislador; o direito é bem mais que isso, porquanto não fica enclausurado, não permanece em pedestal. Aliás, nesta esteira assevera Norberto Bobbio que hoje estamos acostumados a pensar no direito em termos de codificação, como se ele devesse necessariamente estar encerrado num código. Isto é uma atitude mental particularmente enraizada no homem comum e da qual os jovens que iniciam os estudos jurídicos deve procurar se livrar[4]. No caso do Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988, foram colocadas à disposição do direito as ferramentas necessárias para que se trate de forma igual os seres humanos, conforme pugnado pela modernidade (Preâmbulo da Carta Federal).
No que se refere ao jurista atual, dito moderno [ou pós-moderno, expressão que tudo e nada diz], mesmo que de forma breve, algumas palavras se fazem necessárias. Sabe-se que a linguagem do homem está inequivocamente adstrita ao seu nível de conhecimento e, quanto ao jurista, a regra não é diferente, na medida em que o direito é eminentemente discurso, linguagem viva, retórica[5], é, em resumo, persuasão do ouvinte, diria Aristóteles.
Caso permaneça engessado à filosofia da consciência, desconhecendo a hermenêutica filosófica colocada ao alcance da mão, o jurista possuirá lentes inadequadas e que, não raro, deformarão sua ideia geral acerca do direito e da sua amplitude, olvidando que há várias e importantes ferramentas jurídicas suficientes para desmistificar [ou desmitificar] a lei posta pelo Estado. Nessa esteira, bem esclarece Lenio L. Streck que
- Afinal, para o jurista tradicional, inserido no paradigma epistemológico da filosofia da consciência, é a sua subjetividade que funda os objetos no mundo. Sempre acreditou (e continua acreditando) que é a sua descrição, é dizer, a sua atividade subjetiva, que faz com que o mundo ou as coisas sejam como elas são[6]
O fato de ainda persistir para alguns, como norte, a filosofia da consciência (isto é, o sujeito fora do sistema analisando de muito longe o objeto cognoscível, poder-se-ia dizer: a lei); a leitura corriqueira e desbragada de códigos e leis esparsas em sala de aula, impondo ao aluno o imperativo da lei, sem a mínima e indispensável interpretação hermenêutica, olvidando-se por completo das interpretações sistemática e teleológica; não se conferir ao acadêmico de direito uma iniciação efetivamente científica e, principalmente, a ausência de contato deste com a realidade mais palpitante, só fazem com que impere o dogmatismo, o positivismo jurídico, e a consequente objetividade da lei[7]. O texto legal inequivocamente há de ser interpretado em estrita conformidade com o ordenamento positivo.
Não há espaço para discorrer a respeito do verdadeiro aguilhoamento que se faz da tão sofrido Língua Portuguesa. O momento é penoso, delicado, sombrio; perdeu-se o prazer em escrever (com objetividade e clareza), porquanto o tempo urge e aqui não há espaço para reflexão. Com efeito, não é no curso de direito que se aprende a redigir uma singela petição; não é em banco de faculdade de direito que se aprende a Língua Pátria. Mas, o que se vê, não raro, são manifestações sem a mínima linha de coerência e estruturação razoavelmente adequada, lidas cum grano salis, diria Plínio, o Velho.
Além disso, a massificação do ensino superior (como de há muito se vem observando) torna o acadêmico de direito, em boa parte, apenas e tão somente mais um consumidor, mas não consumidor do conhecimento - alguém disposto a enfrentar os desafios e buscar o indispensável conhecimento científico, o saber [que não se restringe à simples leitura da fria lei posta pelo Estado e manuais] -, mas sim consumidor da discutível qualidade de ensino jurídico no país.
Por fim, há aqueles professores que, em relação aos alunos que estão no início do curso de Direito, partem do pressuposto que estes conhecem termos jurídicos (algumas até com conceitos mais complexos) e passam a divagar acerca de questões mais profundas, o que, sem dúvida, se traduz em equívoco e até pode desmotivar os que se estão iniciando na longa jornada jurídica. Triste e plúmbea realidade.
[1] Sobre o tema: GRAU. Eros R. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). 7ª edição. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 15. Em tempos cinzentos, a segurança jurídica está ficando escassa.
[2] O direito posto e o direito pressuposto. 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 33. Grifos no original.
[3] Op. cit., p. 32. Grifos no texto original.
[4] O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone Editora, 1999, p. 63.
[5] Aristóteles distinguia entre o raciocínio dialético, que versa sobre o verossímil e serve para embasar decisões, e o analítico, que trata do necessário e sustenta demonstrações. Chaim Perelman, lógico e filósofo do direito belga, recupera essa formulação fundamental do pensamento aristotélico para situar o raciocínio jurídico no primeiro grupo, resultando na sua natureza argumentativa. COELHO, Fábio U. Roteiro de lógica jurídica. São Paulo: Saraiva, 4ª. Edição, 2001, p. 88.
[6] Hermenêutica jurídica e(m) crise. Uma exploração hermenêutica da construção do direito. 3ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001, p. 172.
[7] Vem à memória a célebre frase in claris cessat interpretatio. Como bem relembra Carlos Maximiliano, Ulpiano ensinou que embora claríssimo o edito do pretor, contudo não se deve descurar da interpretação respectiva. Hermenêutica e aplicação do direito. 18ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 33.