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Falência e extinção da personalidade jurídica

Agenda 08/04/2020 às 08:19

O texto busca desmitificar a ideia de que a falência é motivo para a dissolução da sociedade empresária. O art. 1044 merece interpretação hermenêutica e as linhas aqui escrita são neste sentido.

                 FALÊNCIA E EXTINÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

 

                          Em linhas gerais, estabelece o art. 1044 do Código Civil que a sociedade empresária se dissolve pela declaração da falência[1]. Crê-se, salvo engano, que o dispositivo há de ser interpretado com redobradas cautelas, e explica-se uma vez mais o porquê de tal asserto, apresentando-se alguns apontamentos bem objetivos.

 

                           A entidade, cuja falência é decretada judicialmente, não perde de imediato a personalidade jurídica e, de igual forma, não se dissolve neste momento processual. Desde logo esclareça-se que o presente texto trata do caso em que não haja a desconstituição[2] da sentença que decretou a abertura da falência. Dito de outra forma, tem como base a sentença que irradia seus efeitos, faz surgir a massa falida, e assim por diante.

 

                        O tema falência é quase ignorado pela doutrina triunfante, porquanto escrever acerca do instituto da recuperação judicial se alinha com a hodierna realidade. Assim, considerando a inópia de textos acerca do tema ora proposto, uma vez mais se toma a liberdade de alinhar alguns pensamentos, ensartando as razões para demonstrar a incorreção, por assim dizer, do artigo legal. O senso comum teórico é no sentido de que a abertura judicial da falência se traduz em causa para encerramento da pessoa jurídica falida. O senso comum teórico está equivocado, com os respeitos devidos.  

 

                           O art. 1044 do Código Civil há de ser interpretado pelo exegeta sob os métodos teleológico e sistemático[3], a fim de se buscar o real sentido e alcance do dispositivo, mas inexoravelmente observando o ordenamento jurídico como um todo[4]

 

                            A dissolução não significa necessariamente a extinção da pessoa jurídica. Apenas e tão somente inicia o procedimento liquidatório societário para somente depois, se for o caso, extingui-la.  Mas a extinção, enfatize-se, ocorre após encerrada a fase de liquidação. O art. 51 do Código Civil estabelece que a pessoa jurídica subsiste para fins de liquidação (apenas) até a conclusão desta. Encerrada esta, aí sim cancela-se a inscrição da jurídica no lugar próprio[5].

 

                          No caso da falência de pessoa jurídica, a regra é exatamente a mesma, ou seja, a sentença de abertura da falência dá ensejo à liquidação de ativos arrecadados. Superada esta fase, encerra-se o processo falimentar, por sentença, e, concomitantemente extinta estará a entidade jurídica. Nessa linha, a dissolução societária não ocorre de forma concomitante à sentença proferida na falência. É suspensa a personalidade jurídica da entidade até que ocorra a completa liquidação (venda judicial, sempre) dos ativos arrecadados (realização do ativo[6]) e encerrado, por sentença, o processo falimentar (art. 156, Lei 11.101/05). A extinção da sociedade empresária, por consequência, ocorrerá quando do encerramento do feito falimentar. Quer-se crer que, ingressando a falência na fase liquidatória[7] já haverá sérios indícios de que a pessoa jurídica, efetivamente, será encerrada.

           

                           De fato, a abertura judicial da falência é motivo ensejador à dissolução societária, mas esta poderá ser interrompida com o que se denomina comumente de levantamento da falência. A fase liquidatória, por exemplo, pode não ser instaurada (não liquidação de ativos arrecadados), considerando o pagamento integral do passivo do falido e da massa falida, por exemplo. É pertinente transcrever o pensamento de Rubens Requião:

 

  1. A sociedade comercial nem sempre se dissolve com a declaração de sua falência. A falência, como de resto a dissolução social, não extingue a personalidade jurídica da sociedade; mas enquanto a liquidação, que sobrevém à dissolução, mantém a sociedade em posição estática, vivendo apenas para a liquidação do ativo e pagamento do passivo, não se envolvendo em operações novas, durante o processo de falência, a sociedade continua viva, pois pode inclusive prosseguir no comércio se assim requerer e o juiz consentir. Aqui perde ela, como todos sabem, apenas a administração de seu patrimônio; mas poderá retomar à plena capacidade de disposição de seus bens, se obtiver a concordata suspensiva da falência, que lhe restituirá toda a plenitude de seus direitos e obrigações. Se não ocorrer tal hipótese, só então a falência resulta na completa extinção da sociedade[8]

 

                            Faz-se questão de apresentar o formidável entendimento esposado pelo jurista Jair Gevaerd:

 

Não se pode mais permitir que o ensino de gradação ou pós-graduação simplesmente despreze o DNA, a origem e a função dos institutos e categorias ensinados (para o que é fundamental o recurso a saberes afins ao Direito, como a história, economia, antropologia, sociologia etc.), e se faça pela comodíssima recitação de textos de lei e de doutrina apartados de seu real contexto, os quais, como cadáveres repetidamente dissecados, acabam pro reencarnar ‘ad seculum seculorium’ em petições, decisões e livros que resistem, empedernidos, às ainda escassas sessões de descarrego e exorcismo promovidas pelos poucos que ousam destoar da catequese autoproclamada clássica (que de clássica, na acepção nobre do termo, nada tem)[9]

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                      Portanto, a abertura judicial da falência da entidade (i) determinada a imediata suspensão da personalidade jurídica; (ii)  com a sentença de falência não há imediata dissolução societária; (iii) a sentença de encerramento do processo de falência acarreta a extinção da pessoa jurídica.

 


[1] O art. 206, inc. II, letra “c”, da Lei 6.404/76 segue na mesma linha.

[2] Termo utilizado por Pontes de Miranda. Cf. Tomo XXVIII de seu Tratado de direito privado, a seguir mencionado.

[3] Explica Luís R. Barroso que a visão estrutural, a perspectiva de todo o sistema, é vital. Interpretação e aplicação da Constituição. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 134.  E prossegue: as normas devem ser aplicadas atendendo, fundamentalmente, ao seu espírito e à sua finalidade. Op. cit., p. 137. Vem a calhar o pensamento de Celso Ribeiro Bastos: fica difícil interpretar sem se levar em conta as realidades políticas pelas quais passa o país. Vem a calhar o pensamento de Celso Ribeiro Bastos: fica difícil interpretar sem se levar em conta as realidades políticas pelas quais passa o País. As discussões mobilizam o espírito de todos os setores da sociedade, que são altamente ideológicos, e fazem-se sentir na interpretação do Direito, em função do que se fala, então, de uma atualização das regras jurídicas por meio do processo interpretativo. Hermenêutica e interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, pp. 164-165. Por fim, ensina Pontes de Miranda que uma das mais altas e prestantes funções dos juristas é a de definir o conteúdo dos termos empregados pela lei, para que flua, sem contradições, o sistema jurídico, que é sistema lógicoTratado de direito privado. Parte Especial. Tomo XXVIII. 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984, p. 157.

 

[5] O presente texto, por falta de espaço, não tratará da dissolução de fato, mas é de se notar que os credores podem requerer a abertura judicial da entidade em tal circunstância.

[6][6] Pontes de Miranda se refere à extração do valor dos bens. Tratado de direito privado. Parte Especial. Tomo XXIX. 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984, p. 290.

[7] O encerramento da pessoa jurídica pode ocorrer muito antes desta fase, com efeito. A inexistência de ativos arrecadáveis (fase do art. 108) acarretará, grosso modo, a apresentação de relatório por parte do administrador judicial e extinção do processo falimentar. A atual lei silenciou acerca do procedimento peculiar (inventário negativo, nas palavras de Pontes de Miranda [op. cit., p. 67]), que antes era previsto no art. 75 do Dec.-Lei 7.661/45. Uma vez mais quedou inerte.

[8] Curso de direito comercial. 2º volume. São Paulo: Saraiva, 1985, pp. 274-275. O texto legal de 2005 não mais prevê o instituto da concordata preventiva (Dec.-Lei 7.661/45, art. 177).

 

[9] Arte Jurídica - Vol. I. CANEZIN, Claudete C. (coord.). Curitiba: Juruá Editora, 2004, p. 192. Grifos no original.

Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Informações sobre o texto

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