Aspectos introdutórios.
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 10 de março de 2020, julgou o Recurso Especial 1.679.501/GO, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, cujo pano de fundo foi a discussão sobre a venda de ascendente para descendente e o prazo decadencial para o reconhecimento de eventual anulabilidade do negócio.
No caso em apreço[1], pretendiam os autores “desconstituir a venda de 65,49 hectares de terras feita pela primeira recorrente (...) a um de seus filhos – e ora segundo recorrente – (...), por meio de interposta pessoa, (...) em suposto prejuízo dos demais filhos e em clara inobservância ao art. 496 do CC/02”.
A sentença houve por bem desconstituir os negócios, decisão confirmada pelo Tribunal de Justiça de Goiás, que, aliás, afastou a incidência de decadência ao afirmar que, em realidade, ocorreu simulação, sendo, portanto, nulos os negócios jurídicos praticados e insuscetíveis, assim, de convalescimento por decurso de tempo.
O Superior Tribunal de Justiça, ao seu turno, compreendeu que a hipótese, em realidade, foi de venda de ascendente para descendente, cuja desconstituição, no caso concreto, seria impossível, porquanto fulminada pela decadência, a teor do 179 do Código Civil.
Concordamos com tal conclusão, embora vislumbremos, no caso concreto, a ocorrência de simulação das vendas entre a ascendente e o terceiro, bem como deste para o filho da primeira, dissimulando-se, assim, o real negócio, qual seja, a alienação da venda de ascendente para descendente. Analisemos, com mais vagar, a questão.
Do negócio simulado e do negócio dissimulado – A simulação ocorre, nas palavras de Betti[2], “quando as partes de um negócio bilateral, combinadas entre si – ou o autor de uma declaração com destinatário determinado, de combinação com este –, estabelecem um regulamento de interesse diverso daquele que pretendem observar nas suas relações (...).”
Não raro, pratica-se um negócio aparente (simulado) com o fito de se encobrir o ato que fora verdadeira e camufladamente produzido pelas partes (chamado de negócio dissimulado). Em tais hipóteses, da chamada simulação relativa, pode-se dizer que o “negócio falso, aparente, mentiroso” é simulado, ao passo que aquele que, na verdade, fora alcançado por meio da mentira é o negócio dissimulado.
Nas hipóteses de simulação relativa, o operador do direito terá uma tarefa dupla, consistente em considerar nulo o negócio simulado, mas também em avaliar se o dissimulado poderá ser considerado válido na substância e na forma (art. 167 do Código Civil). A conclusão lógica, portanto, é que existem três possibilidades, quando houver simulação relativa: a primeira, em que o negócio dissimulado será nulo; a segunda, em que ele será anulável; e a terceira, em que será válido.
Em nosso Direito Civil Brasileiro[3] exemplificamos as três hipóteses. Vejamos:
“Suponhamos que Jorge tenha um único apartamento em seu nome, cujo aluguel garante-lhe os recursos necessários para sobreviver. A doação de tal bem, sem a reserva de usufruto, seria obstada pelo artigo 548 da Lei Civil, porquanto é nula a doação de todos os bens de determinada pessoa, sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador. Imbuído da vontade de realizar o gesto altruísta, proibido por lei, simula vender o bem para seu irmão, Pedro, embora, de fato, tenha doado o apartamento. Nessa hipótese, nossa primeira tarefa é identificar e considerar nulo o negócio simulado, consistente na forjada venda do imóvel. Desfeita a venda, resta apreciar o que ela encobria, ou seja, o negócio dissimulado. Seria ele válido, nulo ou anulável? A resposta é: nulo. Ora, embora a forma solene exigida por lei, usada na alienação, a lavratura de escritura pública, tenha sido correta, a substância do negócio dissimulado, uma doação universal, impõe-lhe igualmente a adoção de uma série de formalidades específicas, que, por óbvio, não foram levadas a cabo, a acarretar, portanto, inelutavelmente, a sua nulidade.
Há casos, porém, em que o negócio dissimulado é anulável. Consideremos que João quer vender um imóvel para Otávio, seu filho, mas Vanessa, sua outra filha, se recusa a anuir com a alienação. Não se dando por vencido, João convence seu amigo, Horácio, a simular uma compra e venda do imóvel, fingindo vendê-lo, ato contínuo, para Otávio. Há dois negócios simulados: a suposta venda de João para Horácio, e a deste para Otávio. Como negócios forjados, mentirosos que são, consideram-se nulos. Ocorre que há um negócio dissimulado – a real venda feita entre João e seu filho Otávio, que não contou com a anuência de Vanessa. Nesse caso, a venda real que ocorreu é anulável, pois não se pode permitir que um pai venda um imóvel ao filho sem anuência da outra filha (artigo 496). Temos, em resumo, as duas transações de compra e venda formalmente realizadas como negócios simulados nulos e a transação de doação efetivamente realizada como negócio dissimulado anulável.
Pode, por fim, ser válido o negócio dissimulado. Recorramos novamente ao exemplo, já dado, em que João deseja doar um apartamento para sua prima, Maria, mas, para fugir do alto valor da tributação, simula vender a ela o bem. Nessa hipótese, lavrada a escritura pública de compra e venda, a transferência do imóvel teria ocorrido de forma válida. Na substância, nada impediria que João fizesse a almejada doação para sua prima. Logo, o negócio dissimulado se mostra válido não só na substância, mas também na forma. Assim, o Fisco, poderá desconsiderar o negócio simulado, a compra e venda, porquanto nulo, com o recolhimento do valor correto da tributação pela doação do bem e não por sua venda, já que o negócio dissimulado, a doação, é válido.”
Assim, a venda de ascendente para descendente, por interposta pessoa, envolve negócios simulados e, portanto, nulos (venda da ascendente para o terceiro e, deste, para o descendente), feitos para encobrir um negócio real, dissimulado e... anulável (a venda do ascendente para o descendente).
Da análise do julgado.
Assim colocada a questão, as conclusões do julgado comentado devem ser prestigiadas. De fato, haveria negócios nulos sobre os quais jamais se haveria de falar em decadência? Sim, existiram e foram os negócios simulados. Não há prazo para se reconhecer sua nulidade.
Acontece que o julgado, com acerto, desconsiderando os negócios nulos (cujos supostos efeitos têm que ser ignorados), focou sua atenção no negócio dissimulado (a venda da ascendente para o descendente), este sim, anulável. Logo incidente, à espécie, o artigo 179 do Código Civil, que fixa o prazo decadencial de dois anos para a desconstituição do negócio, na hipótese, dissimulado.
Alguns poderiam indagar se a teoria da actio nata poderia, no caso posto, incidir, protraindo o prazo inicial da contagem decadencial. Entendemos que não e explicamos.
A teoria da actio nata, é aquela “[...] segundo a qual a pretensão nasce quando o titular do direito subjetivo violado obtém plena ciência da lesão e de toda a sua extensão, bem como do responsável pelo ilícito, inexistindo, ainda, qualquer condição que o impeça de exercer o correlato direito de ação.”[4]
A teoria foi pensada e tem uso corrente para hipóteses de prescrição. Ainda assim, admitamos que seus fundamentos sejam transplantados para a decadência. Cuidemos, no entanto, para que sua banalização não permita uma artificial alteração dos prazos prescricionais/decadenciais, sob a escusa, muitas vezes falsa, de que o titular só havia tomado ciência da violação ao seu direito (subjetivo ou potestativo) em data diversa da efetiva agressão à sua esfera jurídica. Assim, continuam atuais as observações de Câmara Leal[5] a respeito do tema:
(...) Todavia, a ignorância não se presume, pelo que ao titular incumbe provar o momento em que teve ciência da violação, para que possa beneficiar-se por essa circunstância, a fim de ser o prazo prescricional contado do momento da ciência, e não da violação.
Na presente hipótese, os negócios simulados foram objeto de registro no Cartório Registro de Imóveis, sendo que o negócio dissimulado se aperfeiçoou no mesmo momento em que a segunda transação aconteceu. Essa circunstância atrai para si a incidência do princípio da publicidade (art. 16 e 172 da Lei de Registros Públicos e art. 1º da Lei 8.935/94) dos negócios registrados, presumindo-se, assim, que os supostos prejudicados teriam tido o conhecimento dos negócios supostamente inválidos.
Mas não seria permitido imaginar que os prejudicados houvessem tomado conhecimento da simulação tempos depois? Sim, em tese eles poderiam alegar tal circunstância. Ocorre que o ônus da prova, de que o pronto conhecimento dos negócios praticados era impossível, caberia aos autores da ação, acaso pretendessem invocar a teoria da actio nata, pois, repita-se, a presunção de conhecimento dos negócios registrados contra eles milita. Não se desincumbindo desse ônus, correta a fixação do termo a quo do prazo decadencial como o dia da celebração do segundo negócio.
Conclusão.
Merecedora de aplausos a conclusão constante do RESP 1.679.501/GO, segundo a qual a venda de ascendente para descendente, ainda que por interposta pessoa, decai no prazo de dois anos, a contar da celebração do negócio.
Notas
[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RESP 1.679.501/GO, Rel. Ministra Nancy Andrighi, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/03/2020, publicado no DJE 13/03/2020.
[2] BETTI, Emilio. Teoria Geral do Negócio Jurídico – T. II. Campinas: LZN, 2003, p. 281.
[3] ARAUJO, Rogério Andrade Cavalcanti. Direito Civil Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: Foco, 2020, p. 455/456.
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. STJ - REsp 1460474/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/08/2018, DJe 03/09/2018.
[5] CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da Prescrição e da Decadência. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 36.