LABELLING APPROACH: ESTIMAS NA SELETIVIDADE PENAL
O presente artigo realiza uma análise da Teoria Labelling Approach, buscando esmiuçar o processo de estigmatização sofrido pelo sujeito considerado delinquente, para identificar o caráter seletivo do direito penal. Para tanto, aponta-se, em um primeiro momento, o contexto de surgimento da teoria e as bases sociológicas propulsoras de seu desenvolvimento, quais sejam, o interacionismo simbólico e a etnometodologia, como forma de se romper com a visão tradicional que tinha a Criminologia Clássica, inaugurando a chamada Criminologia Crítica.
A criminologia clássica possuía uma visão estática dos fenômenos socais; enquanto a criminologia crítica, em especial por intermédio da Labelling Approach, passou a observar a realidade como algo complexo e dinâmico, produto da interação entre os indivíduos e da interpretação conferida por estes aos fatos. Assim, a teoria do etiquetamento traz a noção de que o criminoso não deve ser analisado como bom ou mau, focando o seu estudo não sobre quem é o delinquente, mas sim no porquê passa a ser assim considerado, em completa oposição às teorias biológicas e seus fundamentos deterministas.
Nisto, para desenvolvimento da pesquisa, buscou-se centrar na visão de desvio que a mencionada teoria passou a ter, com a conceituação de conduta desviada, imprescindível à melhor compreensão dos processos de criminalização pelos quais passa o sujeito considerado delinquente, para só então tratar propriamente da estigmatização.
A teoria do etiquetamento, ao enxergar que o crime é um produto fabricado socialmente, trabalha com os processos de criminalização primária, secundária e terciária. A primeira consiste, basicamente, na criação de normas pelas classes abastadas que criminalizem condutas específicas, buscando determinar os bens jurídicos relevantes conforme os seus interesses; a secundária consiste na punição e na aplicação das leis (criminalização primária) somente à determinada parcela da população, pelos órgãos oficiais, revelando a intenção de controle social sobre os desprivilegiados; sendo a terciária, por fim, a manutenção do estigma de delinquente àquele já rotulado como tal, pela internalização pelo próprio indivíduo dessa visão de si mesmo, ocorrida principalmente no ambiente carcerário
Neste processo, encontra-se a problemática do rótulo, tratada no terceiro capítulo deste trabalho. Pois o indivíduo, uma vez estigmatizado, ou seja, marcado pelo controle discriminatório, passa a enxergar-se como alguém indesejado, incorporando fielmente o papel de criminoso que lhe foi pregado, comportando-se exatamente segundo àquilo que a sociedade considera desviado.
Traça-se, por fim, uma crítica ao sistema penal vigente que, na maioria das vezes, desatento a esta questão de grande relevância social, faz-se seletivo e preconceituoso, reforçando a exclusão social e a visão deturpada que as classes mais favorecidas economicamente insistem em fazer com que o marginalizado tenha de si mesmo, na condição de rotulado, desacreditado e até mesmo de um problema social, que fomenta o ciclo vicioso da reincidência e da desigualdade social.
Surgimento da teoria
A década de 1960 foi marcada por acontecimentos de grande relevância, em especial nos Estados Unidos, o que propiciou o surgimento do movimento criminológico denominado Labelling Approach, marco da chamada Teoria do Conflito.
Após a 2ª Guerra mundial, os Estados Unidos apresentaram um vertiginoso crescimento econômico, e, com isso, grande parte da população pôde usufruir das cotas de bem-estar materiais, especialmente as classes médias, o que trouxe a sensação de estabilidade e acesso a bens de consumo aos americanos.
Os Estados Unidos se tornaram uma das duas grandes potências mundiais nesse período. Após essa ruptura social, o cenário poderia ser chamado de ideologia do consenso, tendo em vista que a sociedade americana estava integrada e bastante coesa internamente contra a potência externa, qual seja a União Soviética.
Shecaira (2013, p. 237- 238) denomina como o fermento da ruptura os fatos ocorridos na década de 1960, trazendo a lume:
Os anos 60 marcam um sucessivo período de relações críticas que abrem uma fissura no aparente monolitismo cultural e social americano. Sucedeu um período de intensas e extensas áreas de conflito, com repercussão notada em todas as áreas do conhecimento, no plano das ideologias, na esfera da cultura, no alcance das relações humanas. (...) Essa década é marcada por um culto “científico” às drogas, pelo psicodelismo do rock and roll, por uma enfática resistência pacifista à Guerra do Vietnã, por uma campanha abrangente pelos direitos civis, pela luta das minorias negras pelo fim das discriminações sexuais, pelo despertar da consciência estudantil que passa a conhecer seu próprio poder, por transformações existenciais que permitem aos jovens encontrarem seus próprio eu, enfim, por um fermento de ruptura potencializador da sociologia do conflito.
De grande relevância, além dos citados, foi o surgimento do movimento feminista contemporâneo, no qual enfatizavam a denúncia da opressão masculina e a busca da igualdade (Narvaz & Koller, 2006). Tais acontecimentos geraram formas de conflitos políticos e sociais, exigindo da Criminologia ação e interpretação diferenciadas.
Diante deste cenário crítico de diversas desigualdades, a teoria do Labelling Approach começou a se destacar, manifestando-se como um desenvolvimento da Criminologia Clássica, e iniciando a denominada “Criminologia Crítica”. (FACHIN; MAZONI, 2012, p. 07).
Surgiu, assim, como um novo modelo criminológico, e, tendo em vista as mudanças sofridas no direito penal, a teoria do Labelling Approach começou a se desenvolver com base principalmente em duas vertentes da sociologia americana: a primeira, sustentando que a realidade humana não é composta apenas de fatos, mas da interpretação de que as pessoas coletivamente atribuem a esses fatos, referindo-se ao “interacionismo simbólico”, inspirado em George H. Mead; e a segunda vertente, consistente na “etnometodologia”, inspirada em Alfred Schutz, que aduz que a realidade social é feita por valores construídos e atribuídos pelos homens.
Além dos sociólogos citados, outros precursores foram indispensáveis à Teoria Labelling Approach, destacando-se Garfinkel, Goffman, Erikson, Cicourel, Becker, Schur, Sack.
Neste contexto, o sujeito criminoso não é mais visto como bom ou mau, conforme definiam as teorias biológicas; e o estudo do crime em si, com base nas teorias sociológicas do consenso, passa a focar o processo de criminalização e a reação do indivíduo, deixando, portanto, o crime e o criminoso como o centro dos estudos.
Bases propulsoras que influenciaram o Labelling Aproach
A Sociologia do desvio e do controle social foi fortemente influenciada pelo interacionismo e pela etnometodologia, sendo estas a base conceitual que alçou o Labelling Approach, também conhecida como teoria do etiquetamento, teoria interacionista, teoria da reação social, teoria da rotulação.
Alessandro Baratta (2002, p. 86) menciona tais bases interdisciplinares:
Em primeiro lugar, realmente, tal enfoque remonta àquela direção da psicologia social e da sociolinguistica inspirada em George H, Mead, e comumente indicada como “interacionismo simbólico”. Em segundo lugar, a “etnometodologia”, inspirada pela sociologia fenomenológica de Alfred Schutz, concorre para modelar o paradigma epistemológico característico das teorias do Labeling. Segundo o interacionismo simbólico, a sociedade - ou seja, a realidade social - é constituída por uma infinidade de interações concretas entre indivíduos, aos quais um processo de tipificação confere um significado que se afasta das situações concretas e continua a estender-se através da linguagem. Também segundo a etnometodologia, a sociedade não é uma realidade que se possa conhecer sobre o plano objetivo, mas o produto de uma “construção social”, obtida graças a um processo de definição e de tipificação por parte de indivíduos e de grupos diversos. E, por consequência, segundo o interacionismo e a etnometodologia, estudar a realidade social (por exemplo, o desvio) significa, essencialmente, estudar estes processos, partindo dos que são aplicados a simples comportamentos e chegando até as construções mais complexas, como a própria concepção de ordem social.
De maneira sucinta, essas correntes defendiam que as relações entre as instituições e os indivíduos da própria sociedade deveriam ser analisadas a fim de se compreender a realidade social.
O interacionismo simbólico não possui uma conceituação única, tendo em vista que diversos sociólogos discorreram sobre o tema, com abordagens teóricas variadas. A expressão “interação simbólica” foi intitulada no ano de 1937, por Herbert Blumer, e em observação aponta Shecaira (2013, p. 250):
Indica um ramo da sociologia e da psicologia social que se concentra em processos de interação. Tal visão parte da ideia segundo a qual as relações sociais em que as pessoas estão inseridas as condicionam reciprocamente. As relações sociais, então não surgem como determinadas de uma vez por todas, mas como abertas e dependendo de constante aprovação em comum. Esse princípio básico do interacionismo simbólico explica a sua afinidade metodológica com os chamados métodos qualitativos, particularmente a abordagem de dados biográficos e a utilização da observação participante.
Apesar de não utilizar a denominada expressão, George H. Mead foi um dos grandes precursores do interacionismo simbólico, contribuindo para a elaboração de uma Psicologia Social adequada, possibilitando a compreensão da relação existente entre o indivíduo e a sociedade, que posteriormente teve as contribuições de Howard Becker e Erving Goffman.
Segundo os interacionistas, a moralidade de uma determinada sociedade é socialmente construída, tendo em vista o contexto social e o momento histórico em que os sujeitos estejam vivendo e interagindo entre si. A moralidade, então, não nasce sozinha, pois se faz necessária a existência de “edificadores”, e consiste no produto dos interesses individuais, valores e visão de mundo das pessoas (LIMA, 2001, p. 192).
O indivíduo possui a sua identidade pessoal a partir de um processo de interação social, que conjuntamente tipificam uma determinada situação, que acaba por ser repassada por meio da linguagem. O indivíduo torna-se, portanto, membro participante da sociedade quando ingressa em determinado meio de interiorização, carregando normas, definindo o certo e o errado e toda bagagem cultural do convívio social.
Sztompka (2005, p. 329) aduz que os indivíduos em conjunto determinam a mudança social:
(...) reconheceu-se, como era óbvio, que um indivíduo não tem mais que um minúsculo poder de decisão na mudança social, mas, ao mesmo tempo, que a mudança social deve ser tratada como resultado combinado daquilo que fazem todos os indivíduos. Distributivamente, cada indivíduo é portador de uma agência ínfima, praticamente invisível, mas coletivamente os indivíduos são todo-poderosos.
Desta forma, os indivíduos internalizam rótulos que recebem através do convívio em sociedade, o que os levam a agir conforme o rótulo recebido; manifestando-se a linguagem como elemento fundamental para a construção da realidade.
A etnometodologia é subordinada da Sociologia Fenomenológica de Alfred Schutz, e trata-se de uma realidade relativizada, que varia entre cada indivíduo conforme as interações sociais vivenciadas.
Harold Garfienkel, em sua obra Studies of Ethnometodology, do ano de 1967, definiu etnometodologia como sendo a investigação do pensamento racional e outras ações da vida cotidiana particular de cada indivíduo.
Os professores Sylvia Vergara e Miguel Caldas (2005, p. 69) lecionam no mesmo sentido:
A etnometodologia busca descobrir como e o que as pessoas fazem na sua vida diária em sociedade para construir a realidade social, bem como a natureza da realidade construída. Assume que a prática da vida cotidiana é interpretada pelas pessoas individualmente ou em interação com outras. O conhecimento que as pessoas adquirem é o do dia-a-dia, definindo o que é a realidade para elas. Como se baseia no fato relatado, a fala das pessoas assume relevância na etnometodologia. A modificação do ambiente e a busca de teorização não é preocupação desse estudo.
O interacionismo simbólico e a etnometodologia foram as principais linhas de estudo para os teóricos do labelling approach, que buscaram as bases apresentadas acima e relacionaram-nas com o comportamento desviante de cada indivíduo. A realidade social depende da interpretação e da definição dos sujeitos atuantes e não apenas de uma perspectiva exteriorizada.
Desta forma, tem-se que a realidade não é estática e universal, de forma que o indivíduo não se faz um mero protagonista, mas sim autor de sua realidade, fruto das relações sociais com o hodierno.
Conduta desviada e criminalização
Foi a partir dessas duas bases (interacionismo simbólico e a etnometodologia) que nasceu o Labelling Approach como alternativa ao paradigma etiológico em criminologia, provocando uma ruptura na criminologia tradicional que possuía uma visão determinista e estática da sociedade.
O novo paradigma passa a se centrar nas funções e estruturas do próprio sistema. Não questiona quem é o criminoso, mas sim quem é considerado desviado, apresentando-se as instâncias que criam e administram a delinquência dentro do sistema penal como seu verdadeiro objeto de estudo. Assim, a autonomia concedida pelo novo paradigma parte da premissa de que o indivíduo delinquente é uma pessoa comum e não desviada biologicamente ou socialmente, apenas selecionada de forma discriminatória (BERNARDES, 2005, p. 90).
Alessandro Baratta (2002, p. 88), através dos seguintes questionamentos elucida o novo padrão etiológico:
Os criminólogos tradicionais examinam problemas do tipo ‘quem é criminoso?’,‘como se torna desviante?’, ‘em quais condições um condenado se torna reincidente?’, ‘com que meios se pode exercer controle sobre o criminoso?’. Ao contrário, os interacionistas, como em geral os autores que inspiram o labelling approach, se perguntam ‘quem é definido como desviante?’, ‘que efeito decorre desta definição sobre indivíduos?’, ‘em que condições este indivíduo pode se tornar objeto de uma definição?’ e, enfim, ‘quem define quem?
Tendo em vista os novos questionamentos, a teoria do Labelling Approcach, alcança suas respostas conceituando as noções de desvio (desvio primário e secundário), reação social, processos de criminalização, figurando, deste modo, os aspectos sociolinguísticos, psicológicos e sociológicos como as suas premissas basilares.
Howard S. Becker na obra Outsiders, revela um posicionamento contrário à visão tradicional, ao entender o desvio como uma infração à determinada regra. Neste sentido, para o autor, o sujeito considerado desviado, a partir de sua infração, passa a integrar uma classe homogênea de pessoas. Veja-se o seus apontamentos (2008, p. 22):
Os grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um ‘infrator’. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal.
Com este novo conceito, o foco das indagações não recaía mais sobre o desvio, tampouco sobre o comportamento considerado correto, senão em relação ao fato de que os indivíduos, por meio de interação dos grupos sociais, rotulam e se posicionam perante tais comportamentos ditos como desviantes.
O sujeito que não se enquadra na sociedade e não segue a regra estabelecida pelo grupo é considerado “outsider”. Para Becker, a conduta do desviante é originada pelo próprio grupo social, quando este aplica as regras criadas e intitulam determinadas pessoas como estranhas.
Indispensável mencionar a diferenciação entre desvio primário e secundário. O primeiro é constituído com base nas causas sociais, culturais e psicológicas do indivíduo, cuja realização pode ocorrer por qualquer necessidade pessoal, e quando tal ato se torna público gera a punição e a reação social.
Já o desvio secundário, parte do pressuposto de que o indivíduo já passou pela desviação primária, sendo este, portanto, consequência e corolário da rotulação e estigmatização da sociedade para com os indivíduos “outsiders”, ou seja, desviantes. Estes, por sua vez, passam a internalizar cada vez mais esse status, tornando o processo de desestigmatização irremediável.
Shecaira (2013, p. 256) diferencia os desvios:
Aqui já se pode melhor diferenciar a chamada desviação primária da desviação secundária. Aquela pode ser entendida, em contraste com esta, como poligenética advinda de uma grande variedade social, cultural, econômica e racial (ou desses fatores todos combinados). Embora possa ser socialmente reconhecida e mesmo definida como indesejável, a desviação primária somente terá implicações com a marginalização do indivíduo no que concerne às implicações na sua estrutura psíquica. A desviação secundária, por sua vez, refere-se a uma especial classe de pessoas cujos problemas são criadas pela reação social à desviação. O agente do delito que já passou para a fase da desviação secundária é uma pessoa cuja identidade já está estruturada em torno da desviação. É um mecanismo criado, mantido e intensificado pelo estigma.
Deste modo, após o primeiro ato de desvio, e por consequência de rotulação social, desencadeia-se a discriminação por parte da sociedade. A parte daí, a realização de novas condutas consideradas como “erradas” se repete, e faz nascer então a criminalização do indivíduo, que assume a identidade já estruturada pelo desvio através da reincidência.
Diante de todo o rótulo determinado pela reação social aos desviantes, a Teoria Labelling Approach aborda três processos de criminalização, denominando-as de criminalização primária, secundária e terciária.
A criminalização primária trata-se do poder Estatal de criar e editar normas penais, definindo os bens jurídicos que serão protegidos, de maneira seletiva, delimitando quais condutas serão criminalizadas bem como suas penas, e a partir do momento que são impetradas na sociedade tornam-se fato gerador da criminalização.
Deste modo, a criminalização primária está ligada diretamente às atividades do Estado. Segundo Zaffaroni “a criminalização primária é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimine ou permite a punição de certas pessoas” (2003, p. 43). Portanto, tal ato seleciona previamente os indivíduos a serem considerados criminalizáveis. Vera Andrade traz a lume os aspectos da seleção criminalizadora (2003, p. 279):
Quanto aos “conteúdos” do Direito Penal abstrato, esta lógica se revela no direcionamento predominante da criminalização primária para atingir as formas de desvio típicas das classes e grupos socialmente mais débeis e marginalizados. Enquanto é dada a máxima ênfase à criminalização das condutas contrárias às relações de produção (crimes contra o patrimônio individual) e políticas (crime contra o Estado) dominantes e a elas dirigida mais intensamente à ameaça penal; a criminalização de condutas contrárias a bens e valores gerais como a vida, a saúde, a liberdade pessoal e outros tantos não guarda a mesma ênfase e intensidade da ameaça penal dirigida à criminalidade patrimonial e política.
Becker chama de “empresários morais”, os impositores de regras, membros de determinadas classes dominantes, que objetivam determinar os bens jurídicos relevantes conforme seus interesses pessoais. Os grupos ou indivíduos sobre quem recairão as regras são específicos, e assim, a classe dominante define o que é bom ou mau, desenvolvendo opiniões favoráveis aos seus fins. (2008, p. 49). O processo de criminalização primária é, então, discriminatório e seletivo.
Já a criminalização secundária consiste na ação punitiva exercida sobre determinadas pessoas, aplicando as normas criadas (criminalização primária), que se verifica mais facilmente no segmento das áreas policiais, membros do Ministério Público, magistrados e também na persecução penal, através de psicólogos, peritos entre outros.
A seletividade ocorre por intermédio de tratamento desigual, burocrático, diminuindo a capacidade de comunicação e ação do possível delinquente. Zaffaroni (2006, p.46) menciona a problematização da criminalização secundária:
A seleção criminalizante secundária não apenas se orienta pelo poder de outras agências como também se exerce condicionada a suas limitações operativas, inclusive quantitativamente: em alguma medida, toda burocracia acaba por esquecer seus objetivos, substituindo-os pela reiteração ritual, finalizando geralmente por fazer o mais simples. A regra da criminalização secundária se traduz na seleção: a) por fatores burdos ou grosseiros (a obra tosca da criminalidade, suja detecção é mais fácil), e b) de pessoas que causem menos problemas (por sua incapacidade de acesso positivo ao poder político e econômico ou a comunicação massiva).
As agências policiais desempenham explicitamente a seletividade do sistema penal, tendo em vista que as mesmas selecionam os casos que serão noticiados à instância judiciária, que, por sua vez, também exerce a mesma seleção, baseada em critérios discricionários, chamados de esteriótipos criminalizantes, buscando, desse modo, a “clientela” do Direito Penal.
Zaffaroni (1991, p. 133) pontua:
Nossos sistemas penais reproduzem sua clientela por um processo de seleção e condicionamento criminalizante que se orienta por estereótipos proporcionados pelos meios de comunicação em massa. Os órgãos do sistema penal selecionam de acordo com esses estereótipos, atribuindo-lhes esses comportamentos, tratando-os como se comportassem dessa maneira, olhando-os e instigando a todos a olhá-los do mesmo modo, até que se obtém, finalmente, a resposta adequada ao papel assinalado.
Neste ritmo, adentra-se ao processo da criminalização terciária, na qual o indivíduo vê o estigma de marginal que lhe foi anteriormente atribuído sendo reforçado sobre a sua personalidade. Consiste no tratamento hostil oferecido pela sociedade ao sujeito já rotulado, negando-lhe oportunidades, repetindo-lhe os conceitos negativos, propagando e confirmando, assim, através dos inúmeros agentes estigmatizantes, tais como o mercado de trabalho e a mídia, por exemplo, a condição de desacreditado que o sujeito já formou de si próprio.
Tal processo ocorre principalmente no ambiente penitenciário, e no entendimento de Goffman, pode acarretar um processo de exclusão social irreversível no sujeito, pois a cada uma dessas etapas de criminalização o indivíduo que já tem a condição de vulnerável socialmente, passa a se ver ainda mais distante dos padrões eleitos pela elite social, até o estigma fundir-se em sua própria identidade.
Quanto ao processo de criminalização terciária exercida sobre a “clientela” em potencial do direito penal, ZAFFARONI (1991, p. 130) elucida:
Nas prisões encontramos os estereotipados. Na prática, é pela observação das características comuns à população prisional que descrevemos os estereótipos a serem selecionados pelo sistema penal, que sai então a procurá-los. E, como a cada estereótipo deve corresponder um papel, as pessoas assim selecionadas terminam correspondendo e assumindo os papeis que lhes são propostos.
Diante do exposto, tem-se que o processo de criminalização recai sobre a parcela vulnerável da população, que em sua maioria é desprivilegiada financeiramente, de classe social menos abastada e moralmente confrontada pelos empreendedores morais, não porque possuem maior tendência a cometer atos definidos como crimes e sim pelo fato de possuírem maiores chances de serem criminalizados, por meio das instâncias de controle de conduta, de maneira desigual e seletiva.
ANÁLISE DO ESTIGMA NA SELETIVIDADE PENAL FRENTE À TEORIA LABELLING APPROACH
Evidenciado os conceitos e definições indispensáveis concernentes à concepção da Teoria do Labelling Approach, pode-se adentrar no ponto principal do tema em análise, qual seja, o estudo dos estigmas frente ao etiquetamento produzido pelo controle social, que, desencadeia uma série de fatores desiguais entre os sujeitos desviantes, tendo em vista que os indivíduos submetidos a tais controles tornam-se taxados como criminosos.
A etiqueta criminal consiste em um elemento de identificação, situando o sujeito que cometeu um ato desviado como integrante de uma categoria precisa. Tal etiqueta significa que, além da violação da lei, a degradação pública de seu caráter e dignidade tornam-se passo inicial para a estigmatização do indivíduo. A investigação da teoria do Labelling Approach tem como variável dependente ou independente a problematização do processo de estigmatização.
No primeiro momento analisa-se os critérios pelos quais determinadas pessoas são selecionadas pelo sistema penal, tornando-se clientes do sistema e indivíduos estigmatizados; posteriormente o status de delinquente, determinando sua identidade. A teoria utiliza, portanto, o estigma para explicar a reincidência e a reiteração da conduta desviada.
Estigma
Os estigmas foram concebidos como sinais e marcas que possuem uma qualificação depreciativa. Consistem em um modo de identificar um indivíduo sem ao menos consultá-lo. Erving Goffman (2008, p. 11), em sua obra intitulada “Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”, remete historicamente o significado da palavra estigma:
Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os representava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor - uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada; especialmente em lugares públicos. Mais tarde, na Era Cristã, dois níveis de metáfora foram acrescentados ao tenho: o primeiro deles referia-se a sinais corporais de graça divina que tomavam a forma de flores em erupção sobre a pele; o segundo, uma alusão médica a essas alusão religiosa, referia-se a sinais corporais de distúrbio físico. Atualmente, o termo é amplamente usado de maneira um tanto semelhante ao sentido literal original, porém é mais aplicado à própria desgraça do que sua evidência corporal.
Desde os primórdios, os estigmas, através de marcas, diferenciam pessoas que devem ser evitadas, por não estarem em um posto social moralmente admissível. A sociedade estabelece diversos círculos, dividido em grupos e categorias, sendo que estas serão encaixadas a cada indivíduo, categorizando-os.
O autor referido divide em três os tipos de estigma: deformidade físicas, culpa de caráter individual e estigmas impostos pela crença, nação e etnia, podendo ser evidente ou oculto.
O ato de categorizar indivíduos baseado em uma análise frívola e estereotipada é determinada por Goffman como processo de “identidade social”. Diante de tais pré-conceitos a sociedade aguarda tal comportamento de determinada pessoa, que se encaixe na categoria ao que foi colocado.
O processo de identidade social, segundo Goffman, é dividido entre identidade social virtual, que consiste basicamente nas exigências da sociedade perante o indivíduo, sendo, na verdade, o que esperamos que o sujeito seja; e identidade social real, que se amolda na categoria e predicados que determinada pessoa demonstra ter. No entanto, durante essa relação entre as identidades sociais citadas podem ocorrer incongruências. A partir de tal discrepância nasce o estigma.
Em sendo o estigma uma relação entre atributo e estereótipo, que muitas vezes são pejorativos, Goffman (2008, p. 12) aduz:
Enquanto o estranho está a nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torne diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído, sendo até, de uma espécie menos desejável – num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande – algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem – e constitui uma discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social real.
Assim, o processo de construção do sujeito estigmatizado ocorre conforme a identidade social virtual, sendo criada e imputada pela sociedade a alguém, o que o afasta de sua identidade social real, fazendo surgir o indivíduo estigmatizado, se identificado um atributo que não satisfaça a expectativa estabelecida pelo grupo dominante. O estigma do indivíduo está atrelado à relação com os outros, formando uma mácula social.
A sociedade, ao excluir um estigmatizado do meio social, contribui com um ciclo vicioso, tornando cada vez mais difícil a estruturação do indivíduo perante a sociedade, bem como à adequação por ele às regras propostas. Dessa forma, o indivíduo que não corresponde ao comportamento esperado (identidade social virtual) é descriminado. O estigma, quando ostentado pela a sociedade, impossibilita o acolhimento de outro atributo, tornando-o dispensável.
A partir do momento que o indivíduo se sente estigmatizado, por influência da percepção da sociedade sobre ele, passa a buscar sua identidade, o que, segundo Goffman, é chamado de identidade do “eu”. No entanto, de maneira deteriorada, já não pode enxergar além da etiqueta que lhe foi acrescentada.
O estigmatizado possui a condição de desacreditado, pois são elencadas e evidenciadas as suas peculiaridades distintivas perante a coletividade. Já quando não são de conhecimento no trato social, remete-se ao indivíduo a menção de desacreditável. Surge então maneiras de reduzir a percepção de seus estigmas, objetivando mascar sua condição.
Diante do descrédito da sociedade frente ao indivíduo estigmatizado, este acaba confundindo a percepção que tem a seu próprio respeito, e passa a desacreditar na possibilidade de se encaixar no meio social, comportando-se de maneira diferente da que lhe foi imposta. Isto gera uma aceitação do seu papel frente à sociedade, e o torna estigmatizado, conforme o que é almejado pela sociedade.
Nesse diapasão, Goffman (2008, p. 28) traz a lume:
Uma discrepância entre a identidade virtual e a identidade real de um indivíduo. Quando conhecida ou manifesta, essa discrepância estraga a sua identidade social; ela tem como efeito afastar o indivíduo da sociedade e de si mesmo de tal modo que acaba por ser uma pessoa desacreditada frente a um mundo não receptivo.
O estigma diferencia negativamente os indivíduos, que passam a assumir o papel de inaptos à sociedade. Diante deste fato, o estigmatizado inicia o processo de agrupar-se com pessoas que possuem estigmas semelhantes e a ter as mesmas vivências e aprendizados. Esse agrupamento entre indivíduos que possuem o mesmo estigma ocorre ante a possibilidade de maior compreensão e aceitação entre eles.
Tais relações sociais despertam o papel chave na carreira moral do sujeito, consistindo em fator de extrema importância na sua sociabilização.
Goffman, ao analisar o conceito de desviante, aponta que o que deve ser levado em conta é o comum, e não o diferente, tendo em vista que o comportamento comum é que define as questões acerca do que é desvio e de quem é desviante, através das normas gerais.
É possível vislumbrar semelhança com o conceito formulado por Howard Becker, em sua obra “Outsiders”, que se ocupa com a gênese do desvio. Goffman, por seu turno, foca nos meios sociais que se relacionam com pessoas estigmatizadas, confrontando suas expectativas perante a sociedade. Tem-se, então, que ambos realizam questionamentos acerca de quem é considerado desviante, bem como do porquê alguns o são e outros não, fazendo, assim, igualmente menção à Teoria do Labelling Approach.
Um indivíduo desviante torna-se um problema para a sociedade, no entanto um desviante não é necessariamente um desviante social e sim delitivo. É o estudo de Goffman (2008, p. 155):
São essas as pessoas consideradas engajadas numa espécie de negação coletiva da ordem social. Elas são percebidas como incapazes de usar as oportunidades disponíveis para o progresso nos vários caminhos aprovados pela sociedade; [...] os desviantes sociais, conforme definidos, ostentam sua recusa em aceitar o seu lugar e são temporariamente tolerados nessa rebeldia, desde que ela se restrinja às fronteiras ecológicas de sua comunidade.
A identificação do desvio apresenta-se como meio a se classificar pessoas, que justamente pelas características que possuem, contrárias ao que a sociedade define como bom, serão selecionadas para integrarem o sistema penal. Uma vez abarcado por este sistema, o excluído socialmente será também estigmatizado; servindo o estigma como critério de seleção e ao mesmo tempo, como forma de controle de classes.
Seletividade Penal
O sistema penal, apesar do discurso da defesa de bens jurídicos relevantes, escolhe antecipadamente os indivíduos sobre quem aplicará as suas sanções. Para tal seleção, as instâncias de controle utilizam-se dos estigmas; primeiramente, rotulando; e em um segundo momento, reforçando o estereótipo já postulado. O estigma, portanto, é um instrumento indispensável neste processo de exclusão social e de inclusão no sistema penal. Segundo ZAFFARONI (p. 130):