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DA REVOLTA DA VACINA AOS TEMPOS ATUAIS DA COVID-19

Agenda 13/04/2020 às 12:53

O ARTIGO TRAZ ASPECTOS HISTÓRICOS COM RELAÇÃO A REVOLTA DA VACINA E DISCUTE SOBRE A COMPETÊNCIA DA UNIÃO LEGISLAR SOBRE A MATÉRIA DIANTE DOS DEMAIS ENTES FEDERATIVOS.

DA REVOLTA DA VACINA AOS TEMPOS ATUAIS DA COVID-19

Rogério Tadeu Romano

I – A REVOLTA DA VACINA

Entre os dias 10 e 18 de novembro de 1904, a cidade do Rio de Janeiro viveu o que a imprensa chamou de a mais terrível das revoltas populares da República.

O cenário era desolador: bondes tombados, trilhos arrancados, calçamentos destruídos, tudo feito por uma massa de 3 mil revoltosos. A causa foi a lei que tornava obrigatória a vacina contra a varíola.

Na época, a cidade era assolada por varíola, peste bubônica, febre amarela.

Diante do quadro assustador, o governo aprovou uma lei que determinava que a população fosse, compulsoriamente, vacinada contra a varíola

Rui Barbosa estimulou a rebelião de alguns militares e a maior revolta popular do Rio de Janeiro. Tudo em nome dos princípios do liberalismo político.

Rui Barbosa era um liberal que professava as lições de economia política sobre o mercado.

Aliás, é mister lembrar a Lei nº 1.152, de 5 de janeiro de 1904, que, no artigo 1º, § 20, dispôs:

"Não podem a justiça sanitária, nem as autoridades judiciárias, quer federais, quer locais, conceder interditos possessórios contra atos da autoridade sanitária, exercidos rationie imperii, nem modificar ou revogar os atos administrativos, medidas de higiene e salubridade por ela determinadas a nesta mesma qualidade. FIca salvo à pessoa lesada as perdas e danos que lhe couberem, perante a justiça federal, de autoridade sanitária, tiver sido ilegal e promover a punição, se houver sido criminosa. Em caso de desapropriação, esta se fará segundo a Constituição e as leis respectivas".

Por certo, o ministro Pedro Lessa fez crítica com relação a esse dispositivo legal, pois "permite que um funcionário administrativo, um agente do Poder Executivo, sem recurso para autoridade judiciária alguma, prive injustificável, absurda, caprichosa ou criminosa que seja a ordem da autoridade sanitária, esta, segundo a lei, deve ser cumprida, para depois se processar criminalmente a autoridade arbitrária e criminosa e pedirem-se perdas e danos(Rev. de Dir., volume 17, pág. 114).

No mesmo voto, sustentava o insigne juiz a inconstitucionalidade do dispositivo, em face das garantias outorgadas à propriedade pelo art. 72, 17 §, da Constituição de 1891.

Antes, em 1902, a Lei nº 939, em seu artigo 16 estatuiu:

"Não podem as autoridades judiciárias, quer federais quer locais, modificar ou revogar as medidas e atos administrativos, nem conceder interditos possessórios contra atos do governo municipal, exercidos ratione imperii".

Com o Código Civil, cujos artigos 499, 501 e 506 não fazem restrição alguma à proteção possessória, cessou essa lei de ser vigente.

Em menos de uma semana a oposição ao presidente Rodrigues Alves lançaria a Liga contra a Vacina Obrigatória. Organizava-se a revolta popular que contaria com o apoio dos positivistas, misto de filosofia e religião secular muito influente na época, sobretudo entre militares. Rui Barbosa discursava contra a vacina.

II – A COMPETÊNCIA DA UNIÃO DIANTE DOS ESTADOS NAS QUESTÕES DA SAÚDE

Passados mais de cem anos, volto o Brasil a se deparar com o triste impacto da covid-19. Diante disso, o chefe do executivo federal, em nome de ideias liberais está em confronto com o seu ministro da saúde, que prega o isolamento. Ora, sabe-se que o ministro de Estado exerce função que é de livre exoneração do presidente. Aliás, lembre-se que o presidente da República governa o país auxiliado por seus ministros.

O procurador-geral da República, segundo reportagem do Estadão em sua edição de 13 de abril do corrente ano. Ali se diz:

“O presidente Jair Bolsonaro tem o direito de decidir sobre o “momento oportuno” para maior ou menor distanciamento social no enfrentamento do novo coronavírus. A opinião é do procurador-geral da República, Augusto Aras. Em parecer ao qual o Estado teve acesso, Aras afirma que, como o mundo passa por uma “crise sem precedentes”, repleta de “incertezas”, não é possível avaliar hoje, com precisão, se a estratégia de limitar a circulação de pessoas tem eficácia para impedir o avanço da covid-19.

Alegando preocupação com os efeitos da quarentena sobre o PIB e o emprego, Bolsonaro tem travado um cabo de guerra com governadores de todo o País, desde março. Na semana passada, em reunião com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ele chegou a dizer que a economia vai para o “beleléu”, neste ano, por causa da pandemia.

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“As incertezas que cercam o enfrentamento, por todos os países, da epidemia de covid-19 não permitem um juízo seguro quanto ao acerto ou desacerto de maior ou menor medida de isolamento social, certo que dependem de diversos cenários não só faticamente instáveis, mas geograficamente distintos, tendo em conta a dimensão continental do Brasil”, escreveu Aras.

Para o procurador-geral da República, cabe ao Executivo definir qual o grau mais adequado de isolamento social, levando em conta tanto o sistema de saúde quanto a economia.”

Lembro a questão das normas gerais sobre a saúde.

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

.......

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

Nessa linha de pensamento trago a elucidativa lição de Dalmo Dallari(Normas gerais sobre saúde: cabimento e limitações):

“No caso da Constituição brasileira de 1988 pode-se dizer que, em linhas gerais, mesmo sem atribuir superioridade à União sobre as unidades federadas, foram estabelecidos critérios que dão ao Legislativo federal a competência para legislar quando se considera conveniente uma disciplina legislativa uniforme para toda a Federação, o que implica certa centralização. Entretanto, não foi esquecida a hipótese de competência concorrente, ou seja, competência que não é exclusiva da União, além de se ter reconhecido que em determinados casos a competência pode ser exclusiva dos Estados ou dos Municípios. Para conhecimento do assunto, convém começar examinando a competência legislativa da União.

No artigo 22 são enumeradas as matérias sobre as quais a União tem competência para legislar com exclusividade, ficando, portanto, eliminada a hipótese de legislação estadual ou municipal sobre tais matérias. Abre-se apenas uma possibilidade de exceção, através do parágrafo único acrescentado a esse artigo, dispondo que através de lei complementar a União poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas nesse artigo. O artigo 24 faz a enumeração de matérias sobre as quais a União, os Estados e o Distrito Federal poderão legislar concorrentemente, tendo-se acrescentado alguns parágrafos a esse artigo fixando regras visando prevenir o risco de conflitos que poderiam decorrer da hipótese de haver lei federal e outra dispondo sobre o mesmo assunto. É muito importante o conhecimento dessas regras, sobretudo pelo fato de que a Constituição contém, no artigo 23, uma longa enumeração de matérias que são de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Como é óbvio, aquele que é competente para cuidar de certa matéria será, forçosamente, obrigado a legislar sobre ela, pois toda participação do poder público deve ocorrer nos quadros da lei.

De acordo com o disposto no §1º, quando se tratar de matéria em que a competência legislativa é concorrente a União somente poderá estabelecer normas gerais, deixando aos demais a legislação sobre pontos específicos. Evidentemente, nesse caso a legislação que tratar de aspectos especiais não poderá contrariar as normas gerais estabelecidas pela União. O § 2o. confere aos Estados uma competência suplementar para legislar sobre as matérias que tiverem sido objeto de norma geral federal e o § 3o. dá aos Estados competência legislativa plena para legislar sobre as matérias que não tiverem sido objeto de norma geral federal. Neste caso, entretanto, dispõe o §4º que sobrevindo uma norma geral federal a lei estadual já existente que lhe for contrária terá suspensa sua eficácia, passando-se a aplicar a regra do §1º.”

Como ficariam as normas gerais editadas pela União Federal?

Raul Machado Horta, um dos teóricos brasileiros que mais têm dedicado atenção ao tema do federalismo, considera que o constituinte de 1988 "enriqueceu a autonomia formal, dispondo que a competência da União consistirá no estabelecimento de normas gerais, isto é, normas não exaustivas, e a competência dos Estados se exercerá no domínio da legislação suplementar". Complementando essa observação, oferece em seguida uma noção muito precisa: "A lei de normas gerais deve ser uma lei quadro, uma moldura legislativa. A lei estadual suplementar introduzirá a lei de normas gerais no ordenamento do Estado, mediante o preenchimento dos claros deixados pela lei de normas gerais, de forma a afeiçoá-la às peculiaridades locais" (Estudos de Direito Constitucional, Del Rey, Belo Horizonte, 1995, págs. 419/420).

Para José Afonso da Silva, que integrou a Comissão Afonso Arinos, encarregada de elaborar o anteprojeto de Constituição que serviu de ponto de partida para os constituintes de 1988, pode-se falar com propriedade numa legislação principiológica, na qual se enquadrariam a fixação de normas gerais e a legislação sobre diretrizes e bases (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Ed.Revista dos Tribunais, 1989, pág.434). Para ele, portanto, legislar sobre normas gerais significa estabelecer princípios sobre determinada matéria, deixando para a legislação suplementar o estabelecimento de regras relativas a situações particulares.

Raul Machado Horta, um dos teóricos brasileiros que mais têm dedicado atenção ao tema do federalismo, considera que o constituinte de 1988 "enriqueceu a autonomia formal, dispondo que a competência da União consistirá no estabelecimento de normas gerais, isto é, normas não exaustivas, e a competência dos Estados se exercerá no domínio da legislação suplementar". Complementando essa observação, oferece em seguida uma noção muito precisa: "A lei de normas gerais deve ser uma lei quadro, uma moldura legislativa. A lei estadual suplementar introduzirá a lei de normas gerais no ordenamento do Estado, mediante o preenchimento dos claros deixados pela lei de normas gerais, de forma a afeiçoá-la às peculiaridades locais" (Estudos de Direito Constitucional, Del Rey, Belo Horizonte, 1995, págs. 419/420).

Para José Afonso da Silva, que integrou a Comissão Afonso Arinos, encarregada de elaborar o anteprojeto de Constituição que serviu de ponto de partida para os constituintes de 1988, pode-se falar com propriedade numa legislação principiológica, na qual se enquadrariam a fixação de normas gerais e a legislação sobre diretrizes e bases (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Ed.Revista dos Tribunais, 1989, pág.434). Para ele, portanto, legislar sobre normas gerais significa estabelecer princípios sobre determinada matéria, deixando para a legislação suplementar o estabelecimento de regras relativas a situações particulares.

 Fernanda Dias Menezes de Almeida, professora de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo, em seu livro Competências na Constituição de 1988 (São Paulo, Atlas, 1991) alertou que foi positivo o alargamento da competência legislativa concorrente, uma vez que favorece a descentralização federativa, não se devendo esquecer, entretanto, que resta um núcleo de centralização normativa, através da competência conferida à União para editar normas gerais. A par disso, ressalta que haverá dificuldades para a identificação das normas que devam ser reconhecidas como gerais, fazendo as seguintes ponderações:

É mister lembrar o ensinamento de Pontes de Miranda, para quem as normas gerais se caracterizam como sendo normas fundamentais, restritas a estabelecer diretrizes, sem possibilidade de codificação exaustiva.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto,(Competência concorrente limitada. O Problema da conceituação das normas gerais, publicado na Revista de Informação Legislativa, número 100, de outubro/dezembro de 1988) cabe à União editar, no uso de sua competência concorrente limitada, restrita ao estabelecimento de diretrizes nacionais sobre certos assuntos, que deverão ser respeitadas pelos Estados-Membros na feitura das suas legislações, através de normas específicas e particularizantes que as detalharão, de modo que possam ser aplicadas, direta e imediatamente, às relações e situações concretas a que se destinam, em seus respectivos âmbitos políticos". Embora não exista aí uma conceituação sintética, há uma indicação de características e parâmetros que será de grande utilidade para a orientação dos legisladores e o esclarecimento de dúvidas em casos concretos.

Concluiu Delmo de Abreu Dallari, naquele artigo citado:

“Em vista de tudo o que foi exposto, e tendo em conta, de modo especial, as questões relativas à saúde, pode-se concluir que a União tem duas espécies de competência legislativa. Uma delas é a competência para legislar sobre o que se pode dominar "sistema federal de saúde", cuja existência decorre do disposto no artigo 23 da Constituição, segundo o qual "é da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: II. Cuidar da saúde e assistência pública...". A par disso, a União pode legislar fixando normas gerais, tanto para todo o conjunto do sistema nacional de saúde, denominado sistema único. Com efeito, de acordo com o que foi estabelecido no artigo 24 da Constituição, "compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: XII. Previdência social, proteção e defesa da saúde;" No tocante ao exercício dessa competência pela União, o § 1o. do artigo 24 dispõe que "no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais".

Da combinação desses dispositivos pode-se concluir que é possível a existência de leis federais tratando de aspectos particulares do sistema federal de saúde, mas essas leis não têm qualquer interferência na legislação dos Estados e dos Municípios sobre os respectivos sistemas de saúde. A par disso, a União pode legislar sobre normas gerais de saúde, fixando princípios e diretrizes genéricas que serão de observância obrigatória pelos legisladores estaduais e municipais.”

O que dizer de recentes medidas legislativas, editadas por medidas provisórias, no necessário regime de urgência e relevância para o caso da coronavírus?

Estamos diante de normas gerais que são as editadas pelos poderes federais, vigorando em todo o território nacional. As normas particulares são emitidas pelos poderes estaduais e municipais tendo eficácia apenas em seus territórios e dizem respeito a seus especiais interesses locais.

Estamos diante da norma e sua extensão.

Extensão de norma jurídica é o seu campo de incidência que varia com a destinação da norma.

Extensão territorial é o fato de a norma incidir em todo ou em parte do território nacional. É fenômeno peculiar ao Estado federal, onde coexistem três atividades legiferantes – a federal, a estadual e a municipal –e, em consequência, três tipos de atos normativos: as normas federais, as estaduais e as municipais, como se lê de W.B. Munro, The government of the United States, 1932, páginas 332, 557 e 684). Estas normas são rigidamente hierarquizadas, de tal modo que a norma municipal não deve colidir com a estadual, nem esta com a norma federal. A colisão, porventura, ocorrente entre a norma federal e a estadual ou municipal, resolver-se-á pela prevalência da norma federal, como a manifestada entre a norma estadual e a municipal, pela subsistência da norma estadual. É a aplicação do velo postulado alemão Bundesrecht brich Landesrecht(o direito federal corta o direito local), assecuratório do primado da legislação federal sobre a estadual ou municipal, como se lê de T. Maunz, Deutsches Staatsrecht, 1957, § 162, n. VI).

Mas, ao final, fica a pergunta de como reagirá o Supremo Tribunal Federal, como guardião maior da Constituição, diante de um decreto editado pelo atual presidente da República que afronta regras e recomendações internacionais sobre o comportamento social a adotar diante do gravíssimo problema de saúde que afeta o Brasil e o mundo, que é o combate a covid-19, que é o principal inimigo da sociedade.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

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