Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

COVID-19, validade dos decretos dos governos locais e as fake news

Agenda 14/04/2020 às 00:08

Este artigo visa realizar uma breve reflexão sobre a validade dos decretos de governos locais que visam combater a pandemia COVID-19 ante a enorme gama de notícias falsas ou intencionalmente deturpadas em prejuízo da saúde pública.

Um dos maiores inimigos ao combate da COVID-19 é a desinformação ou, pior que isso, a geração de informação falsa ou tendenciosa, que de forma irresponsável conduz à piora do cenário, induz a demora para o retorno à normalidade possível e leva à morte, como ocorreu com a médica Lúcia Dantas Abrantes, do Ceará. Consta do noticiário que ela ignorou as orientações dos gestores da saúde pública, preferindo seguir o "auê" do presidente Bolsonaro e seus apoiadores mais radicais, vindo a óbito dias após participar de carreata contra o isolamento social e a quarentena, como relatado pelo “Metrópoles”, edição de 11/04/2020.

Muitos têm falado sobre, inclusive com ofensas notoriamente ideológicas contra governadores, prefeitos, especialistas em epidemias e todos aqueles que apenas seguem critérios científicos para tentar amenizar ao máximo esse mal que aflige a todos e afastá-lo o quanto antes.

Cônscio de controvérsias, longe de querer esgotar o assunto, e sem perder de vista a grande possibilidade de críticas acaloradas, arrisco dizer, como singela contribuição ao debate saudável, que a Constituição Federal de 1988 assegura a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (CF/88, art. 1º, inc. III), estabelecendo em seus artigos 196 e 197, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, devendo ser garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos, reconhecendo ser de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público sua regulamentação, fiscalização e controle, dentre outras medidas.

Ainda de acordo com a Constituição Federal, lei disciplinará o assunto, competindo ao Poder Executivo expedir decretos e regulamentos para dar a ela – a lei - fiel execução.

Dando vida a esse comando e em relação à COVID19, a Portaria MS nº 188, de 03 de fevereiro de 2020, do Ministro de Estado da Saúde, declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo Novo Coronavírus.

Seguindo o comando Constitucional, foi publicada a Lei Federal nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, dispondo sobre medidas para o enfrentamento da citada emergência, tendo incluído, dentre outras medidas, o isolamento social e a quarentena (art. 3º, incisos I e II).

Por isolamento social a Lei 13.979/2020, definiu a “separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus.”.

Já por quarentena, a Lei considerou a “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.”

É o artigo 3º, parágrafo 7º, inciso II, dessa Lei Federal que define que o gestor local de saúde, autorizado pelo Ministério da Saúde, pode adotar a medida da quarentena ou o isolamento social.

Referida autorização veio por meio do artigo 4º, parágrafos 1º e 2º, da Portaria MS nº 356, de 11 de março de 2020, autorizando que o Secretário de Saúde do Estado ou seu superior (no caso, o governador) determine a quarentena, pelo prazo de 40 (quarenta) dias, podendo ser prorrogado na forma ali definida.

Vale destacar que o Congresso Nacional reconheceu, em 20 de março de 2020, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020, tudo configurando quadro que exige medidas excepcionais e especiais para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional, tanto pela União, pelos Estados, Municípios e Distrito Federal.

De se ver, portanto, que os decretos publicados pelos governadores dos Estados e do Distrito Federal, estão em plena conformidade com as disposições constitucionais e da própria Lei Federal que rege o assunto, publicada pelo presidente Bolsonaro, haja vista que a Constituição Federal, em seu artigo 23, inciso II, atribuiu competência comum à União, Estados, Municípios e ao Distrito Federal, para cuidar de assuntos de saúde pública.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Logo, é fácil concluir que todas essas medidas só existem porque a Lei sancionada pelo presidente Bolsonaro assim autorizou, não obstante ele tente capitalizar apoio populista e votos em campanha fora de hora, com declarações e ações contrárias ao seu próprio Governo.

Relembre-se que decreto deve regulamentar lei. A Lei Federal nº 13.979/2020, conferiu aos gestores da saúde local o estabelecimento de medidas necessárias ao enfrentamento de uma emergência que é de saúde pública de âmbito internacional com base nas diretrizes traçadas pelo Ministério da Saúde e este, por meio das Portarias alhures referidas, ratificou a autorização para adoção de medidas como a quarentena e o isolamento social decretada por governadores e prefeitos, em absoluta consonância com outros países que vêm passando pela mesma mazela que o povo brasileiro.

Sob o aspecto jurídico, portanto, referidos decretos dos governos locais são constitucionais, estando dentro da legalidade e de seu poder-dever de atuação no cuidado da saúde pública.

Ainda que se cogite o fim de tais medidas prudenciais adotadas pelos governos locais por meio de um decreto federal, como tem ameaçado o presidente Bolsonaro, ele estaria flertando com provável inconstitucionalidade, se entendido for como tentativa de impedir os demais entes da Federação de exercerem suas funções constitucionais e isso poderia ensejar, também, crime de responsabilidade do chefe do Poder Executivo federal.

No ensejo, aos que defendem o Estado de Defesa ou o Estado de Sítio, acredito que na absurda e improvável hipótese de decretação, eles somente reforçariam exatamente as medidas já adotadas pelos governadores; logo, além de não haver enquadramento constitucional para tanto, teria o efeito reverso daqueles que defendem essas situações extremas.

Rapidamente, sobre a suposta invasão de privacidade pela utilização de monitoramento de celulares no Estado de São Paulo como ferramenta de avaliação da efetividade do isolamento social, é certo que dificilmente terá êxito quem lança memes afirmando que isso é ilegal e passível de indenização por parte do Estado.

E a razão é muito simples: o uso dessa tecnologia mede dados agrupados a partir do sinal dos celulares, sem identificar qualquer dado pessoal do usuário e sem quebrar o sigilo de sua comunicação. Indica apenas quantitativamente o número de aparelhos em determinado local, nada mais. Logo, o bem jurídico protegido por lei e pela Constituição – a intimidade, privacidade, o sigilo das comunicações - não é violado. Aliás, o Google, Facebook, Instagram, Amazon e tantas outras usam essas informações e muitas mais, mas bem mais mesmo, há muito tempo para fins comerciais e nem por isso são processados diariamente.

Assim, inócua aquela postagem que diz: “não autorizo o uso de meus dados de celular para controle social etc”. Se servir para alguma coisa, é só para demonstrar quem prefere o embate ideológico em um momento crucial para a humanidade, no lugar da solidariedade, da razão, da ciência e da tecnologia contra o real inimigo comum que às vezes parece ser ofuscado pela paixão política: o coronavírus.

Sobre a questão de utilização de medidas mais duras para quem, podendo, insiste em descumprir a ordem das autoridades para evitar a propagação da epidemia, a despeito de também se dizer que não há previsão legal de cometimento de crime, vale uma visita ao Código Penal para um diálogo com alguns tipos penais (artigos de lei que classificam condutas como criminosas).

Alguns desses crimes realmente causam bastante discussão acerca de sua incidência no caso sob análise, como o artigo 131, que considera crime “Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio”, ou, ainda, “Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente”, tal qual está no artigo 132, ou, um pouco menos provável neste momento, pois o ato já é ocorrido, mas que poder-se-á avaliar diante de caso concreto, é a conduta do artigo 267, isto é, “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos.”.

Desses, o que melhor reflete a possibilidade de atuação do Estado, inclusive com força policial, é o que dispõe o artigo 268, do Código Penal: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa.” e pode ter a consequência agravada se junto com tal prática, vier o crime de desobediência (art. 330, Código Penal), consistente em “Desobedecer a ordem legal de funcionário público”, como a de um agente do Estado ou da própria polícia.

Como se vê, é uma falácia, crueldade e irresponsabilidade a propagação de notícias falsas ou sem fundamento no sentido de que governadores agem sem amparo da Lei e que seus atos violam os seus limites de atuação.

Se verdadeira fosse essa hipótese, os governos da Itália, França, Espanha, para citar alguns, e até mesmo os Estados Unidos da América e seu presidente Donald Trump, teriam que ser considerados comunistas ou outra coisa qualquer e todos eles – assim como o restante do mundo civilizado, estariam unidos para derrubar uma única pessoa: Bolsonaro. Convenhamos: imaginação tem limite e quando atinge certo nível, não se trata mais de simples “teoria da conspiração”. Beira mesmo à loucura.

É por essas e outras que o presidente continua fazendo suas bravatas, mantendo sua torcida animada nas arquibancadas enquanto o jogo está sendo jogado sem sua participação efetiva. Espera-se que no final da partida, o time que vem se esforçando em prol do bem comum, apesar do fogo-amigo, reste vencedor.

Afinal, nesse campeonato, o prêmio não é um troféu. É a vida de pessoas. É reduzir ao máximo possível o número de contaminados e de mortes. Pense nisso antes de apoiar atitudes assim.

Quanto a mim, obediente ao mestres da filosofia, só posso admitir que nada sei. Vou, pois, aos livros estudar e quem sabe o errado seja somente eu e todas essas normas e constatações científicas sejam apenas delírio.

Sobre o autor
Marcos Roberto Mem

Advogado Foi membro efetivo da Comissão de Segurança Pública da OAB SP; Ex presidente da Comissão de Segurança Pública da 36ª Subseção da OAB SP; Ex Vice-presidente do Conselho Municipal de Segurança Pública de São José dos Campos SP; Especialista em Direito Público/UNISAL; MBA em Direito Bancário/FGV; Pós-graduando em Compliance e Governança Corporativa/EPD

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!