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Constituição social, mínimo existencial e a reserva do possível

Agenda 15/04/2020 às 16:48

Reflexões sobre a conciliação entre a garantia do mínimo existencial e o argumento da reserva do possível no Estado Social e Democrático de Direito Brasileiro.

1. Constitucionalismo e Neoconstitucionalismo

Constitucionalismo é o movimento social, jurídico e político que visa a alicerçar o Estado, limitando o poder de seus governantes. Assim, ao prever direitos fundamentais de primeira (liberdade), segunda (igualdade) e terceira (fraternidade) gerações – atualmente já se fala em quarta, quinta e a sexta gerações – e de garantias a esses direitos, não outorga ao Estado poderes absolutos como, por exemplo, durante o absolutismo de outrora.

Como ensina Bulos (2017, p. 66):

“O Constitucionalismo é uma técnica jurídica de tutela das liberdades, porquanto engloba um conjunto de normas, instituições e princípios constitucionais positivos, depositados em constituições escritas, a exemplo do direito à vida, à igualdade, à dignidade, ao devido processo legal, e tantos outros vetores relacionados à mecânica dos direitos humanos fundamentais.”

Não obstante podermos verificar traços do constitucionalismo desde a antiguidade, pode-se afirmar que sua origem, ao menos nos moldes em que hoje conhecemos (constitucionalismo moderno), se deu com as revoluções sociais que deram origem às Constituições dos Estados Unidos (1787) e da França (1791). A primeira constituição brasileira foi outorgada por D. Pedro em 1824, marcadamente liberal.

O neoconstitucionalismo, por sua vez, surge com o pós-positivismo, cujo marco histórico é a Segunda Guerra Mundial. Além de continuar sustentando a limitação do poder dos governantes, busca garantir a eficácia das normas constitucionais.

Resumidamente, e para melhor entender esse novo movimento social, político e jurídico, a melhor doutrina aponta para os seguintes marcos do neconstitucionalismo: a) marco histórico: Pós Segunda Guerra Mundial, marcada por atrocidades, muitas vezes embasadas estritamente na lei (im)posta; b) marco filosófico: pós-positivismo, reaproximando o Direito à filosofia e à moral e, por conseguinte, afastando-o do positivismo estrito e c) marco teórico: o reconhecimento da força normativa da constituição, ou seja, a constituição deixa de ser apenas uma “carta de intenções”, ocupando lugar de destaque no ordenamento jurídico do Estado, guardando suas normas a característica da imperatividade. (NUNES JÚNIOR, 2018)


2. Estado Social e Democrático de Direito

Apesar dos avanços trazidos pelo constitucionalismo e pelo neoconstitucionalismo, constatou-se que o liberalismo, período no qual se esperava do Estado tão somente a sua não interferência na liberdade das pessoas, era insuficiente para garantir os direitos fundamentais da pessoa humana ou, em última análise, de lhe garantir uma vida digna.

Com efeito, diante da desigualdade social, o simples não fazer do Estado era insuficiente para uma mínima justiça social. Assim, iniciou-se um movimento que reivindicava ações positivas do governante, a fim de garantir à população direitos sociais e econômicos, conhecidos como direitos de segunda geração ou, direitos de igualdade.

As primeiras constituições marcadamente sociais foram a mexicana, de 1917, e a alemã (de Weimar), de 1919.

A Constituição da República Federativa do Brasil (CRF), de 1988, traz, já em seu preâmbulo, que o Estado Democrático Brasileiro será “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. (grifamos)

Em seu artigo 1º, prevê como princípios fundamentais da República, dentre outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

Dentre os objetivos fundamentais da República, elencados no artigo 3º da CRF/88, está o de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

Em resumo, vivemos não apenas em um Estado cujo regime político é a democracia, como também em um Estado social de direito, cuja Constituição prevê, em seu texto, inúmeros direitos sociais, como os direitos à educação, trabalho, saúde, dentre outros, os quais garantirão – ou deveriam garantir – a igualdade entre as pessoas, para que vivam com dignidade.


3. Direitos Sociais

A CRF/88 traz os direitos sociais em seu artigo 6º:

“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

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Como já explanado, os direitos sociais visam à igualdade entre as pessoas e a justiça social. A CRF/88 foi a pioneira no Brasil a destacar tais direitos em capítulo próprio, no bojo do título destinado aos direitos e garantias fundamentais. Isso demonstra o objetivo do constituinte, de destacar tais direitos como fundamentais para garantir, em sua plenitude, a dignidade da pessoa humana.

Na doutrina de Silva (2019, p. 288):

“(...) podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais”.

Considerando a força normativa da Constituição, trazida que foi pelo neoconstitucionalismo, cabe ao Poder Executivo dos diferentes entes federativos, executar, por meio de políticas públicas[1], programas de governo que garantam às respectivas populações os direitos sociais constitucionalmente previstos.

Nesse sentido, Piovesan (2015, p. 102) ensina que “cabe aos Poderes Públicos conferir eficácia máxima e imediata a todo e qualquer preceito definidor de direito e garantia fundamental”.

Contudo, da leitura do artigo 6º da CRF/88 se constata que tais direitos são programáticos, ou seja, não são autoaplicáveis. Dependem de estruturação e, mais do que isso, recursos financeiros.


4. Reserva do possível

A fim de justificar a não efetivação – ao menos em sua integralidade – dos direitos sociais previstos na CRF/88, surgiu o conceito de reserva do possível, com base  no qual a Administração comumente sustenta que os direitos sociais serão assegurados na medida em que disponíveis recursos financeiros para tanto.

De acordo com a lição do jurista português Canotilho (2018, p. 481):

“Os direitos de liberdade não custam, em geral, muito dinheiro, podendo ser garantidos a todos os cidadãos sem se sobrecarregarem os cofres públicos. Os direitos sociais, pelo contrário, pressupõem grandes disponibilidades financeiras por parte do Estado. Por isso, rapidamente se aderiu à construção dogmática da reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen) para traduzir a ideia de que os direitos sociais sé existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos.”


5. Mínimo existencial

Se, por um lado, a efetivação dos direitos sociais carece de provisão financeira, por outro, se defende que o Poder Executivo há de garantir o mínimo existencial do ser humano, entendido como o conjunto de garantias materiais para uma vida condigna, que implica deveres de abstenção e ação por parte do Estado, ou seja, sua identificação decorre de sua relação e aproximação com o princípio da dignidade da pessoa humana. (NUNES JÚNIOR, 2018).

Nunes Júnior (2018, p. 1107), ao delimitar o conceito de mínimo existencial, explica que:

“Sob o pálio do ‘direito à educação’, não posso requerer minha matrícula numa universidade pública; sob o manto do ‘direito à saúde’, não posso exigir minha cirurgia plástica estética no exterior; alegando direito à segurança, não posso exigir que me seja colocado um policial em meu quintal etc.”


6. Conclusão

Diante de todo o exposto, pode-se perguntar: como conciliar a garantia do mínimo existencial da pessoa humana, com a definição de reserva do possível, ou seja, com a capacidade financeira finita dos entes federativos? E mais: o Poder Judiciário pode interferir em função reservada ao Poder Executivo, impondo ao governante a obrigação de garantir a efetivação dos direitos sociais?

O artigo 2º da CRF/88 prevê são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

De origem aristotélica e com contornos de Montesquieu, a separação das funções do Estado – uma vez que o poder estatal é uno –, visa a não concentrar todas as principais funções do Estado em apenas uma estrutura de Poder, implantando, por conseguinte, um sistema de freios e contrapesos (checks and balances) em que, respeitando-se a independência um do outro, os Poderes controlam a atividade dos demais.  

Sucintamente, uma vez não ser esse o escopo do presente artigo, pode-se atribuir a cada um dos diferentes Poderes as seguintes funções típicas: a) Legislativo: legislativa, ou seja, editar leis; b) Executivo: executiva, ou seja, administrar e efetivar as leis; c) Judiciário: jurisdicional, ou seja, interpretar as leis e aplicar o direito.

Apesar de não haver respostas prontas e acabadas aos questionamentos com os quais iniciamos o presente tópico, destacaremos duas decisões do Supremo Tribunal Federal, que sinalizam o atual entendimento daquela Corte sobre o tema.

- ADPF 45:

“A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.”

- RE 581.488:

“Não cabe certamente ao Judiciário, já se disse, formular e executar políticas públicas (...). Entretanto, inexistindo políticas públicas estabelecidas ou sendo elas insuficientes para atender a prestações minimamente essenciais à efetividade do direito fundamental social, abre-se o espaço para a atuação jurisdiciona”.

Em conclusão, conforme entendimento da Supremo Tribunal Federal, cabe ao Poder Executivo a formulação de políticas públicas (como não poderia deixar de ser, nos moldes do princípio da separação de poderes). Do mesmo modo, o Supremo não refuta o argumento da reserva do possível, desde que a Administração comprove estar garantindo o mínimo existencial da pessoa humana.

Assim, a obrigação da Administração em garantir o mínimo existencial da população é inescusável. Garantido esse conjunto de garantias materiais para uma vida condigna, é admissível à Administração alegar a reserva do possível, caso questionada acerca de programas que extrapolem esse piso social, desde que comprove a insuficiência de recursos para efetivá-los.


Bibliografia

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional – 10ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017.

CANOTILHO. J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição – 7ª ed., 20 reimp. Coimbra: Almeida, 2018.

NUNES JÚNIOR. Flávio Martins Alves. Curso de direito constitucional – 2ª ed.. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional – 15ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015.

SILVA, José Afonso da. Curso  de direito constitucional positivo – 42ª ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2019.

SMANIO, Gianpolo Poggio. BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins. Os direitos e as políticas públicas no Brasil. São Paulo: Atlas, 2013.


Nota

[1] Conforme escólio de Smanio (2013, p. 12): “As Políticas Públicas são instrumentos importantes para a concretização dos Direitos Fundamentais. Exigem atuação da Administração Pública, dos órgãos e Poderes do Estado na sua consecução.” 

Sobre o autor
Tiago Contatto Trindade

Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Especialista em Direito Constitucional pelo IDP. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Informações sobre o texto

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