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A (In)Constitucionalidade das Moratórias Heterônomas na Pandemia do Coronavírus

Agenda 15/04/2020 às 17:45

Analisa-se a (in)constitucionalidade da eventual adoção pelo Governo Federal de uma medida moratória heterônoma de tributos estaduais e municipais em meio a pandemia provocada pelo Coronavírus à luz da doutrina e dos posicionamentos mais recentes do STF.

O surto infeccioso tem provocado grandes baixas e milhões de infectados ao longo do globo, provocando uma grande crise que se divide em duas frentes: sanitária e econômica, com efeitos nefastos pela prolongação da onda de recessão e futura depressão financeira.

Pensando nisso, diversas nações começaram a adotar políticas mitigatórias e compensatórias na área tributário-financeira, visando reduzir o impacto no setor empresarial.

No âmbito federal, destacam-se: moratória dos tributos federais do SIMPLES Nacional, moratória das contribuições previdenciárias patronais e empregador doméstico, moratória do PIS e da COFINS, dentre outras.

No âmbito estadual, destacam-se: moratória de cumprimento de obrigações acessórias, moratória de 90 dias para recolhimento do ICMS e ISS apurados no Simples Nacional, dentre outras.

O mês de abril inaugura o período de aceleração da doença no Brasil, havendo ainda muito entrave dos governos estaduais e municipais para concessão de moratórias de ICMS e ISS de forma geral.

Nesse caso, seria possível que o Governo Federal instituísse uma moratória geral dos tributos estaduais e municipais, como previsto no art. 152, I, b, do CTN?

Como se sabe, a moratória é a dilação do prazo para pagamento do tributo ou a outorga de novo prazo quando já esgotado o original, previsto como uma hipótese de suspensão do crédito tributário no art. 151, I, do CTN.

No entender do STJ, as hipóteses de suspensão de crédito tributário são um rol taxativo, embasado na interpretação literal tida no art. 111, I, e art. 141, ambos do CTN.

Nesse sentido, leciona Alexandre Mazza[1]:

Trata-se de importante instrumento de política tributária utilizado para amenizar o impacto de graves crises econômicas, calamidades públicas, ou catástrofes da natureza, casos em que o legislador poderá aumentar o prazo para recolhimento de tributos.

Para sua instituição é necessário lei específica em respeito ao princípio da legalidade e indisponibilidade do interesse público.

O art. 152 do CTN prevê duas espécies de moratória: a individual e a geral:

Art. 152. A moratória somente pode ser concedida:

I - em caráter geral:

a) pela pessoa jurídica de direito público competente para instituir o tributo a que se refira;

b) pela União, quanto a tributos de competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, quando simultaneamente concedida quanto aos tributos de competência federal e às obrigações de direito privado;

II - em caráter individual, por despacho da autoridade administrativa, desde que autorizada por lei nas condições do inciso anterior.

Parágrafo único. A lei concessiva de moratória pode circunscrever expressamente a sua aplicabilidade à determinada região do território da pessoa jurídica de direito público que a expedir, ou a determinada classe ou categoria de sujeitos passivos.

A moratória em caráter geral aplica-se para todos os sujeitos passivos, independente do cumprimento de elementos pessoais por parte deles. A simples publicação da lei já suspende a exigibilidade do crédito.

Na moratória em caráter individual é necessário além da lei específica um despacho da autoridade administrativa concedendo a cada devedor que demostre o cumprimento de requisitos pessoais elencados.

Regra geral, a competência para instituição da moratória é da pessoa política instituidora do tributo, chamado de moratória autônoma. Porém, o CTN também prevê a possibilidade da União conceda moratória em caráter geral, dos tributos estaduais e municipais, quando simultaneamente concedida quanto aos tributos de competência federal e às obrigações de direito privado, chamada de moratória heterônoma.

Corrente minoritária entende ser possível à concessão da moratória heterônoma em face de situações excepcionais, pois somente uma grave conjuntura econômica poderia justificar a adoção desta medida sem que se possa cogitar ter havido violação à autonomia financeira dos outros entes federativos de atuação menos abrangente que a União, preservando-se assim a cláusula pétrea constitucional fixada para assegurar o princípio do pacto federativo, art. 60, §4º, I, da CF.

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Porém, doutrina majoritária se posiciona no sentido que a previsão ofenderia flagrantemente a autonomia federativa dos entes políticos, art. 18 da CF:

Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

Para Eduardo Sabbag, in “Manual de Direito Tributário”, 6ª Ed. 2014, página 987: “[...] a moratória concedida pela União quanto a tributo de competência alheia põe em risco a autonomia de entes menores, em detrimento do pacto federativo [...]”.

Na mesma linha, José Eduardo Soares de Melo, in “Curso de Direito Tributário”, 3ª Ed., página 343, destaca que “[...] criticável, todavia, a exclusiva faculdade cometida à União (art. 152, I. b do CTN) por não possuir competência para se intrometer no âmbito tributário das demais pessoas de Direito Público”

Seguindo o posicionamento majoritário, existe um projeto de lei complementar nº 528 de 2018, de autoria do Deputado Rubens Pereira Júnior, para revogar o art. 152, I, b, do CTN e vedar a possibilidade de instituição de moratórias heterônomas, sendo nesse sentido a justificação:

Ora, parece-nos bastante claro que a segunda espécie, ou seja, a moratória heterônoma, não mais pode prosperar em nosso sistema tributário, visto que claramente não está adequada ao que preceitua a Constituição Federal, no que tange à autonomia dos entes federativos.

Tal possibilidade, originária do vetusto Código Tributário Nacional, que data 1966, destoa em absoluto da atual Carta Política de 1988, visto que esta garante, em seu artigo 18, de forma cristalina, a mais ampla e irrestrita AUTONOMIA entre os Entes federados.

De forma mais contundente ainda, no sentido de manter essa autonomia entre os entes federados, o constituinte originário, consagrou a impossibilidade de fragilização desse pacto federativo, pautado na já citada estrutura de autonomia federativa dos entes, vedando até mesmo essa fragilização por vias de emendas à própria Constituição Federal.

Ora, dessa forma, não faz sentido que do ponto de vista do exercício do poder decorrente da autonomia, configurada em um dos seus aspectos, qual seja, a competência tributária, que um ente federado possa se imiscuir em questões dessa natureza de outro ente.

Por fim, a própria Constituição vedou expressamente, em seu artigo 151, inciso III, a concessão da isenção heterônoma. Assim, a União não pode conceder isenção, que é outro benefício em matéria tributária, em tributo que não lhe compete.

Por isso, e até mesmo por analogia, entendemos que a moratória heterônoma também deve ser vedada em nosso ordenamento jurídico.

Embora ainda não haja decisão judicial acerca da recepção desse dispositivo, as últimas decisões do Supremo podem sugerir uma luz interpretativa de qual posição o mesmo adotaria no caso de utilização dessa medida.

Na ADPF 672, 08/04/2020, ficou acertado que não compete ao Executivo federal afastar unilateralmente as decisões dos governos estaduais que eventualmente tenham determinado restrição de serviços e circulação de pessoas em meio à pandemia do coronavírus.

Segundo o Ministro Relator Alexandre de Moraes:

Nesses momentos de crise o fortalecimento da união e a ampliação de cooperação entre os Três Poderes, no âmbito de todos os entes federativos, são instrumentos essenciais e imprescindíveis a serem utilizados pelas diversas lideranças em defesa do interesse público.

As autoridades devem atuar sempre com o absoluto respeito aos mecanismos constitucionais de equilíbrio institucional e manutenção da harmonia e independência entre os poderes, “evitando-se o exacerbamento de quaisquer personalismos prejudiciais à condução das políticas públicas essenciais ao combate da pandemia de Covid-19.

E como a ADPF 672 se liga com o presente tema?

Mesmo fazendo parte da corrente que prega a inexistência de direitos absolutos e tendo em mente a ADI 6357, 27/03/2020, que entendeu pela relativização de alguns artigos da LRF de forma excepcional para fins de combate a pandemia, é necessário ponderar que a visão macro da União não permite enxergar as dificuldades e obstáculos específicos do gestor, principalmente o municipal, pela disparidade econômica, social e política entre as regiões do país, que tornam prejudicial à adoção de uma moratória heterônoma decidida no plano federal.

Nesse aspecto, observa-se que cada ente político está na sua própria frente de batalha, combatendo arduamente os efeitos da pandemia com objetivos específicos em cada esfera.

Sejam no resgaste de empresas, empregos, renda mínima, aquisição de equipamentos, políticas de restrição e isolamento ou mesmo medidas de postergação de tributos, ou seja, todos requerem vultosas quantias ou reservas públicas para sua consecução, com as devidas análises para entender o melhor momento decisivo para cada jogada nesse “tabuleiro de xadrez” econômico.

Nesse ponto de vista, ninguém melhor que o próprio gestor do referido ente político instituidor da moratória, para saber os benefícios ou malefícios que cada jogada provocaria nas estratégias já adotadas que contam com o orçamento já vinculado paras as respectivas operações, prejudicando assim a continuidade de projetos já em execução ou outras benesses em prol do próprio coletivo.

Interessante mencionar que a norma em debate é originária do CTN de 1966, ou seja, precede a Constituição de 1988, sendo com ela incompatível segundo os argumentos aqui expostos.

Nesse aspecto, doutrina se divide: para uns seria caso de inconstitucionalidade superveniente; já para outros, caso de mera revogação (direito intertemporal).

Segundo o entendimento do STF, só se pode falar em inconstitucionalidade quando tratar-se de ato normativo posterior à Constituição. Assim, para que uma lei seja considerada inconstitucional é necessário que esteja em divergência da Constituição vigente à época de sua edição.

Assim, uma lei que era compatível com a Constituição de sua época, passando a ser incompatível com a Constituição superveniente, configuraria um caso de não recepção constitucional, matéria de direito intertemporal e que pode ser conhecida por qualquer juiz de direito.

Dessa forma, percebe-se que a adoção de uma moratória heterônoma pelo Governo Federal, ainda que preenchidos os requisitos do art. 152, I, B do CTN, visando amenizar os efeitos econômicos durante a pandemia feriria flagrantemente o princípio do pacto federativo, prejudicando a contenção do avanço da Covid-19 pelas esferas estadual e municipal em seus respectivos âmbitos de atuação.

Ademais, o gestor federal não está apto, em sua visão macro, para enxergar as peculiaridades regionais que obstaculizam decisões como essa, além de interferir na própria gestão administrativa dos entes menores, prejudicando projetos já em execução e outras benesses que já contavam com o orçamento vinculado e futuras receitas tributárias a receber, frustrando assim os objetivos estrategicamente formulados e a própria finalidade pública.

Como se procurou demonstrar, apesar da ausência de decisões judiciais sobre a matéria, segue-se o posicionamento majoritário no sentido de ofensa a Carta Magna, considerando que o art. 152, I, b, da CTN não teria sido recepcionado pela atual Constituição, sendo esse o possível posicionamento dos tribunais.

 


[1] Manual de Direito Tributário. Mazza, Alexandre. 2018.

Sobre o autor
Filipe Reis Caldas

Advogado Tributarista. Bacharel em Direito pela Faculdade Marista. Pós-graduado em Direito Público pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF. Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/PE.

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