A televisão é uma das formas de entretenimento mais difundida pelos domicílios brasileiros. Em pesquisa recente foi verificado que há residências em que não existe uma geladeira, mas a presença do aparelho de TV é indispensável. E é nesta forma de cultura que alguns absurdos acontecem. As novelas pregam situações rejeitadas pelo ordenamento jurídico, mas que o povo leigo muitas vezes aceita como possíveis. A bola da vez agora é o relacionamento entre a filha e o marido da sua genitora, o que vem garantindo bons pontos de audiência para a emissora.
O Subtítulo II do Título I do Livro IV do Código Civil é destinado a tratar do tema referente aos parentes. Em mais de quarenta artigos, o legislador procurou regrar as situações pertinentes ao assunto. Logo no Capítulo I, referente às disposições gerais, o art. 1593 deixa claras as espécies de parentescos aceitas pelo ordenamento jurídico quando determina que "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem." Há, portanto, duas formas de parentesco, dentre as quais a civil será objeto do presente ensaio.
Numa abordagem meramente explicativa, deve-se esclarecer o que vem a ser o parentesco por consangüinidade. Conforme preceitua Caio Mário da Silva Pereira, é a relação "que vincula, umas às outras, pessoas que descendem ter um mesmo tronco ancestral" [01], ou seja: para ser considerado parente consangüíneo, deve existir um ancestral em comum entre as partes; alguém que deu origem a toda a família.
Porém, em razão de não ser o objetivo central do trabalho aqui apresentado, necessário se faz ultrapassar esta etapa e seguir em busca de um estudo acerca da outra espécie de parentesco.
A afinidade surge da relação familiar decorrente do vínculo do casamento ou das relações entre companheiros em razão da união estável. É um vínculo derivado exclusivamente de norma legal, não havendo qualquer ligação de sangue. Aqueles que estabelecem uma relação por afinidade, na maioria das vezes, não possuem parentes consangüíneos, sendo um estranho ao outro.
No que se refere à determinação dos graus, "o cônjuge está inserido na mesma posição na família do seu consorte" [02]. A contagem dos graus de parentesco é feita por analogia, seguindo o determinado no caso de parentesco consangüíneo. Assim, o sogro será parente em primeiro grau em linha reta por afinidade do seu genro, bem como o cunhado será parente em segundo grau e assim por diante.
Em contrapartida, apesar desta criação legal se equiparar à relação sanguínea, o art. 1.595, § 1º, limita o parentesco por afinidade apenas aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do cônjuge. Isto implica em dizer que são parentes por afinidade o sogro, a sogra, nora, genros e os cunhados, não mais havendo possibilidade de aumentar esse rol, visto que a norma caracteriza-se por ser taxativa. Ademais, inexiste uma relação entre os parentes dos cônjuges, também chamados de contraparentes. Não há relação de afinidade da afinidade (affinitas affinitatem non pariti), ou seja, não se pode considerar como parente, por exemplo, duas sogras ou dois sogros.
Por ser uma criação legal, o parentesco por afinidade extingue-se assim que o vínculo que o criou desaparece. Com isso, terminada a relação afetiva (entenda-se como tal o casamento ou a união estável), não há mais que se falar em manutenção daquela. Esta norma, por sua vez, não é absoluta, possuindo uma exceção elencada no art 1595 § 2º do CC.
Segundo tal dispositivo, "na linha reta, a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento". No intuito de trazer destaque à restrição existente, o legislador inverteu a construção da oração, colocando em primeiro plano a parte final. Assim, fazendo uma leitura direta, conclui-se que não se pode falar em extinção do parentesco em linha reta, mesmo quando a relação que lhe deu origem inexista. Neste sentido, Silvio de Sávio Venosa doutrina:
"Na linha colateral os afins são, portanto, os cunhados. O cunhadio ou afinidade colateral extingue-se com o término do casamento, porém a afinidade em linha reta é sempre mantida. Desse modo, desaparece, por exemplo, o impedimento de o viúvo ou divorciado casar-se com a cunhada, mas permanece o impedimento de casamento de viúvos ou divorciados com sogro e sogra" [03]
A fim de exemplificar o assunto, Caio Mário diz que, "rompido o vínculo matrimonial, não deixa o sogro ou sogra, genro ou nora de estarem ligados pelas relações de afinidade" [04]. Portanto, dentre os parentes por afinidade determinados no § 1º do art 1595 (ascendentes, descendentes e irmãos do cônjuge), somente o vínculo existente entre cunhados será desfeito com o término do casamento ou da união estável. Permanecerá, desta forma, intacta a conexão entre os ascendentes e descendentes, os chamados parentes em linha reta.
Vale salientar que a previsão do art. 1.595, § 2º, não se limita somente à esfera civil. No âmbito Penal, ela também influencia no que tange, por exemplo, ao impedimento dos jurados em caso de crime da competência do Tribunal do Júri.
"Inexiste suspeição ou impedimento de jurado cujo tio foi testemunha no processo, nem daquele cujo tio é cunhado da vítima. Parentesco por afinidade nos termos do § 1º do artigo 1595 do CC, "limita-se aos ascendentes, descendentes, irmãos do cônjuge ou companheiro". Não causa confusão e perplexidade capaz de invalidar o julgamento, a referência nos quesitos de defesa, da expressão vítima visada, desde que indicado seu nome no quesito pertinente ao fato principal que cumulou também a aberratio ictus. [05]
Ao tratar do tema, o autor Carlos Roberto Gonçalves, em sua obra Sinopse Jurídica – Direito de Família, afirma que, "com o divórcio e conseqüente rompimento do vínculo, não mais persiste a afinidade" [06]. Ora, tal afirmação não pode ser aceita de forma pacífica; afinal, como já demonstrado, a norma não abriu qualquer exceção, determinando que será mantido o parentesco por afinidade em linha reta "com a dissolução do casamento ou da união estável". Portanto, não cabe ao intérprete restringir a aplicação da lei, sendo ela compatível com qualquer tipo de dissolução do casamento, ou seja, desde a morte de um dos cônjuges até mesmo o divórcio.
Assim, feita esta pequena consideração, e ainda fundamentado nesta limitação imposta pelo § 2º do art. 1595, deve-se questionar acerca da razão pela qual o legislador não permitiu a extinção do parentesco por afinidade em linha reta quando do término da relação que o originou. Será que tal determinação surgiu por mero capricho legislativo ou teve uma razão lógica de ser?
Acreditamos que há duas justificativas para a existência deste parágrafo segundo do artigo 1595. A primeira diz respeito ao aspecto meta-jurídico, enquanto que a segunda refere-se ao direito sucessório.
No que tange ao plano extralegal, os princípios sociais seriam abalados com a inexistência da limitação aqui estudada. Ao permitir que seja extinto o parentesco por afinidade em linha reta, estaria o legislador criando situações consideradas como aberrantes e agressivas ao meio social, visto que permitiria a concretização de relacionamentos entre o cônjuge e seu sogro ou sogra.
Imaginar a relação entre sogra, sogro ou até mesmo filhos e netos com o consorte do cônjuge seria desestruturar o instituto fundamental para a organização da sociedade que é a família. Certamente, apesar da exibição de exemplos nas novelas, não é aceito o relacionamento, por exemplo, do cônjuge com a filha do seu consorte. Consentir com tal questão é ir diretamente de encontro com a ética e moral social.
Portanto, apenas no mundo fantasioso das novelas, e somente nele, será possível a existência de um relacionamento entre, por exemplo, a filha e o seu padrasto. Não se pode esquecer que tal restrição aplica-se também no caso da união estável que, além da previsão expressa na respectiva norma legal, teve seu tratamento igualado ao do casamento, pela Carta Magna.
Já no que se refere ao aspecto jurídico, somente se pode concordar com o pensamento do ilustre autor Silvo de Sávio Venosa de que "a afinidade não em repercussões no direito sucessório" [07], mediante a existência do § 2º do art. 1595. Assim, inexistindo tal preceito, a afinidade atingiria diretamente ao direito sucessório conforme demonstraremos.
Dispõe o art. 1790 e o art. 1829 do Código Civil, respectivamente:
Art. 1790 -
I- se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II- se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III- se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV- não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança;"
Art. 1829 – "A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I- aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II- aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III- ao cônjuge sobrevivente;
IV- aos colaterais"
Aceitar o relacionamento entre o consorte e seus parentes por afinidade em linha reta teria como conseqüência a interferência direta no direito sucessório deste, visto que, conforme preceitua o Código Civil, o cônjuge concorre com o descendente e o ascendente em caso de sucessão hereditária. A fim de demonstrar a influência da situação aqui apresentada no direito sucessório, destaca-se que:
"Concorrendo com descendentes só do autor da herança, receberá o cônjuge parcela idêntica à dos que sucederem por direito próprio. Assim, sendo 4 (quatro) filhos, cada qual receberá 1/5 da herança. Existindo entre os filho algum pré-morto, sua prole, netos do falecido, herdam por representação, partilhando entre si, em quotas iguais, o que cabia ao seu pai (1/5)" [08]
Não foi por acaso que o legislador, no § 2º do art. 1595, determinou que permanecerá o vinculo de parentesco por afinidade em linha reta, já que em se tratando de direito sucessório, haveria uma grande modificação nos bens destinados ao ex-cônjuge. Assim, buscou-se, além de tudo, compelir fraudes que viessem a acontecer a fim de prejudicar aquele que teve o seu vínculo afetivo finalizado.
Percebe-se que o legislador utilizou-se da sutileza pertinente ao parágrafo de um artigo para garantir a segurança de grande parte do direito sucessório, o que justifica, mais uma vez, a impossibilidade, tanto do aspecto social como jurídico, de se aceitar que haja um relacionamento entre o consorte e o sogro, sogra, noras, genros ou netos do seu cônjuge.
Portanto, por ser um meio de informação em massa, deveriam os produtores de programas e novelas da televisão brasileira ter mais cuidado na hora de formular situações como a apresentada atualmente, a fim de que, além de ser respeitada a normal legal, seja garantida a ordem social e a concretização do vínculo familiar.
BIBLIOGRAFIA
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: vol VI: Direito de Família. 14. ed. Rio de Janeiro. Forense. 2004.
VENOSA, Silvio de Sávio. Direito Civil. Direito de Família. 4ª Ed. Editora Atlas. 2004 São Paulo.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL - www.tj.rs.gov.br
GONÇALVES, Carlos Roberto. Sinopse Jurídicas: Direito de Família. 9 ed atual de acordo com o novo Código Civil (lei nº 10.406 de 10-1-2002. São Paulo. Saraiva. 2003.
CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil, vol. 6: direito das sucessões. 2 ed atual. rev.. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2003. p. 217.
CATEB, Salomão de Araújo. Direito das sucessões. 3 ed. São Paulo. Atlas. 2003.
NOTAS
01
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: vol VI: Direito de Família. 14 Ed. Rio de Janeiro. Forense. 2004. p. 309.02
VENOSA, Silvio de Sávio. Direito Civil: Direito de Família. 4 Ed. São Paulo. Atlas. 2004. p. 26203
Ob Cit. p 26304
Ob Cit. p. 31105
Trecho do acórdão da apelação crime nº 70009560392, Relator Elba Aparecida Nicolli Bastos - TJRS06
GONÇALVES, Carlos Roberto. Sinopse Jurídicas: Direito de Família. 9 ed atual de acordo com o novo Código Civil (lei nº 10.406 de 10-1-2002. São Paulo. Saraiva. 2003. p.8607
Ob Cit. p. 26308
CAHALI, Francisco Jose; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil, vol. 6: direito das sucessões. 2 ed atual. rev.. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2003. p. 217.