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As razões de direito e de fato que inviabilizam o acordo de não persecução criminal, no âmbito da Justiça Militar da União, nos termos da Lei nº 13.964/2019

Agenda 17/04/2020 às 18:22

O projeto de lei anticrime foi descaracterizado pela lei 13694/2019.Assim, os crimes de alto potencial ofensivo estão suscetíveis de acordo de não persecução criminal. Por essas e outras razões o referido acordo não deve ser aplicado na Justiça Militar.

Enfatize-se, preliminarmente, que o anteprojeto de lei, denominado anticrime, tinha como objetivo estabelecer medidas contra a corrupção, crimes organizados e os crimes praticados com grave violência à pessoa (art. 1º). Para tanto, o PL em questão, dentre outros requisitos, como a confissão do investigado, fixou a pena máxima em abstrato não superior a quatro anos, para o acordo de não persecução penal. Vejamos abaixo a redação do Projeto de Lei:

Art. 28-A-CPP. Não sendo o caso de arquivamento e tendo o investigado confessado circunstanciadamente a prática de infração penal, sem violência ou grave ameaça, e com pena máxima não superior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

Após o referido projeto de lei ser submetido ao legislativo e ser aprovado com alterações, entrou em vigor a Lei 13.964/2019 e o art. 28-A teve a seguinte modificação em seu texto:

Art. 28-A-CPP. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.

Como pode se perceber, a redação do Projeto de Lei foi modificada substancialmente, no que se relaciona à qualidade da pena. Com efeito, com a entrada em vigor da mencionada lei, a pena estabelecida passou a ser a pena mínima de quatro anos e não mais a pena máxima de quatro anos, como previa o PL, como requisito para o acordo de não persecução penal.

Com a mencionada alteração legislativa caiu por terra o objetivo principal contido no projeto de lei, referente à medida contra corrupção, uma vez que o acordo de não persecução criminal poderá, em tese, abranger os crimes de corrupção ativa e corrupção passiva, cujas penas mínimas são inferiores a quatro anos de reclusão.

Feitas as mencionadas considerações iniciais é importante salientar que, para o embasamento do ponto de vista que se pretende demonstrar, é necessário trazer à colação alguns aspectos inerentes à classificação dos crimes, consoante a sua potencialidade lesiva. Nesse sentido, sublinhe-se que a Constituição Federal de 1988, no art. 98, inciso I, determinou a criação pela União, Estados e Distrito Federal de juizados especiais para julgamento de infrações penais de menor potencial ofensivo.

A Lei 9.099/95 definiu, em seu art.61, que as infrações penais de menor potencial ofensivo são as contravenções penais e os crimes em que a lei comine pena máxima não superior a dois anos. A mesma lei, no art.89, normatizou as hipóteses de suspensão do processo, nos crimes em que a pena cominada for menor ou igual a um ano. Estabeleceu assim o crime de médio potencial ofensivo.

Desse modo, os crimes de alto potencial ofensivo são aqueles cuja pena mínima cominada é superior a um ano, não sendo cabível a suspensão do processo.

Assim sendo, constata-se que o legislador, ao estabelecer pena mínima de quatro anos para o acordo de não persecução criminal pelo Ministério Público, permitiu que os crimes de alto potencial ofensivo fossem alcançados pelo aludido acordo não persecutório, o que nos parece ferir o princípio da razoabilidade.

Veja que, para as hipóteses de suspensão do processo (pena igual ou inferior a um ano), o Ministério Público oferece denúncia e propõe a suspensão do processo por dois a quatro anos, quando cabível. Já para o acordo de não persecução penal (pena mínima até quatro anos), não há sequer denúncia do MP.

O fato é que a Lei 9.839/1999 proibiu a aplicação da Lei 9.099/95 à Justiça Militar (Art. 90-A. As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar).

Desse modo, seria um contrassenso sem precedentes aplicar na Justiça Militar o acordo de não persecução penal, que contempla crimes com pena mínima de quatro anos, ou seja, crimes de alto potencial ofensivo e, ao mesmo tempo, coibir a aplicação da Lei 9.099/95, que trata dos crimes de menor potencial ofensivo (pena máxima de dois anos) e crimes de médio potencial ofensivo (pena mínima igual ou inferior a um ano).

Para que se tenha uma ideia da dimensão e da gravidade dos crimes militares que, pelo quantum da pena mínima, admitiriam, em tese, o acordo de não persecução penal, segue abaixo quadro que contém crimes militares com penas mínimas inferiores a quatro anos.

TIPOS do CÓDIGO PENAL MILITAR e suas PENAS

Art. 139: Violação de território estrangeiro

Art. 143: Consecução de notícia, informação ou documento para fim de espionagem

Art. 144: Revelação de notícia, informação ou documento

Art. 145: Turbação de objeto ou documento

Art. 146: Penetração com o fim de espionagem

Art. 147: Desenho ou levantamento de plano ou planta de local militar ou de engenho de guerra

Art. 148: Sobrevoo em local interdito

Art. 151: Omissão de lealdade militar

Art. 152: Conspiração

Art. 154: Aliciação para motim ou revolta

Art. 155: Incitamento

Art. 156: Apologia de fato criminoso ou do seu autor

Art. 160: Desrespeito a superior; desrespeito a comandante, oficial general ou oficial de serviço (a pena aumenta pela metade)

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Art. 161: Desrespeito a símbolo nacional

Art. 162: Despojamento desprezível

Art. 163: Recusa de obediência

Art. 164: Oposição a ordem de sentinela

Art. 165: Reunião ilícita

Art. 166: Publicação ou crítica indevida

Art. 167: Assunção de comando sem ordem ou autorização

Art. 168: Conservação ilegal de comando

Art. 169: Operação militar sem ordem superior

Art. 170: Ordem arbitrária de invasão

Art. 171: Uso indevido por militar de uniforme, distintivo ou insígnia

Art. 172: Uso indevido de uniforme, distintivo ou insígnia militar por qualquer pessoa

Art. 173: Abuso de requisição militar

Art. 174: Rigor excessivo

Art. 178: Fuga de preso ou internado

Art. 180: Evasão de preso ou internado

Art. 181: Arrebatamento de preso ou internado

Art. 182: Amotinamento de presos

Art. 183: Insubmissão

Art. 184: Criação ou simulação de incapacidade física

Art. 185: Substituição de convocado

Art. 186: Favorecimento a convocado

Art. 187: Deserção

Art. 188: Casos assimilados à deserção

Art. 190: Deserção especial

Art. 191: Concerto para deserção (I – se a deserção não se consuma)

Modalidade complexa (II – se a deserção se consuma)

Art. 192: Deserção por evasão ou fuga

Art. 193: Favorecimento a desertor

Art. 194: Omissão de Oficial ( deixar de proceder contra desertor)

Art. 195: Abandono de posto

Art. 196: Descumprimento de missão

Art. 197: Retenção indevida (de algo que lhe foi confiado / passagem de função)

Art. 198: Omissão de eficiência da força

Art. 199: Omissão de providências para evitar danos

Art. 200: Omissão de providências para salvar comandados

Art. 201: Omissão de socorro

Art. 202: Embriaguez em serviço

Art. 203: Dormir em serviço

Art. 204: Exercício de comércio por oficial

Art. 209: Lesão leve

Art. 210: Lesão culposa

Art. 211: Participação em rixa

Art. 214: Calúnia

Art. 215: Difamação

Art. 216: Injúria

Art. 219: Ofensa às forças armadas

Art. 224: Desafio para duelo

Art. 226: Violação de domicílio

Art. 227: Violação de correspondência

Art. 228: Divulgação de segredo

Art. 229: Violação de recato

Art. 230: Violação de segredo profissional

Art. 234: Corrupção de menores

Art. 235: Pederastia ou outro ato de libidinagem

Art. 238: Ato obsceno

Art. 239: Escrito ou objeto obsceno

Art. 240: Furto

Art. 241: Furto de uso

Art. 248: Apropriação indébita simples

Art. 249: Apropriação de coisa havida acidentalmente

Art. 251: Estelionato

Art. 252: Abuso de pessoa

Art. 254: Receptação

Art. 255: Receptação culposa

Art. 259: Dano simples

Art. 262: Dano em material ou aparelhamento de guerra

Art. 263: Dano em navio de guerra ou mercante em serviço militar

Art. 264: Dano em aparelhos e instalações de aviação e navais, e em estabelecimentos militares

Art. 265: Desaparecimento, consunção ou extravio

Art. 268: Incêndio

Art. 269: Explosão

Art. 270: Emprego de gás tóxico ou asfixiante

Art. 271: Abuso de radiação

Art. 272: Inundação

Art. 273: Perigo de inundação

Art. 274: Desabamento ou desmoronamento

Art. 275: Subtração, ocultação ou inutilização de material de socorro

Art. 276: Fatos que expõem a perigo aparelhamento militar

Art. 278: Difusão de epizootia ou praga vegetal

Art. 279: Embriaguez ao volante

Art. 280: Perigo resultante de violação de regra de trânsito

Art. 281: Fuga após acidente de trânsito

Art. 282: Perigo de desastre ferroviário

Art. 283: Atentado contra transporte

Art. 284: Atentado contra viatura ou outro meio de transporte

Art. 286: Arremesso de projétil

Art. 287: Atentado contra serviço de utilidade militar

Art. 288: Interrupção ou perturbação de serviço ou meio de comunicação

Art. 290: Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar

Art. 291: Receita ilegal

Art. 294: Corrupção ou poluição de água potável

Art. 295: Fornecimento de substância nociva

Art. 296: Substância alimentícia ou medicinal alterada

Art. 297: Omissão de notificação de doença

Art. 298: Desacato a superior

Art. 299: Desacato a militar

Art. 300: Desacato a assemelhado ou funcionário

Art. 301: Desobediência

Art. 302: Ingresso clandestino

Art. 303: Peculato

Art. 304: Peculato mediante aproveitamento do erro de outrem

Art. 305: Concussão

Art. 306: Excesso de exação

Art. 307: Desvio

Art. 308: Corrupção passiva

Art. 309: Corrupção ativa

Art. 310: Participação ilícita

Art. 311: Falsificação de documento

Art. 312: Falsidade ideológica

Art. 313: Cheque sem fundos

Art. 314: Certidão ou atestado ideologicamente falso

Art. 315: Uso de documento falso

Art. 316: Supressão de documento

Art. 317: Uso de documento pessoal alheio

Art. 318: Falsa identidade

Art. 319: Prevaricação

Art. 320: Violação do dever funcional com o fim de lucro

Art. 321: Extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento

Art. 322: Condescendência criminosa

Art. 323: Não inclusão de nome em lista

Art. 324: Inobservância de lei, regulamento ou instrução

Art. 325: Violação ou divulgação indevida de correspondência ou comunicação

Art. 326: Violação de sigilo funcional

Art. 327: Violação de sigilo de proposta de concorrência

Art. 328: Obstáculo à hasta pública, concorrência ou tomada de preços

Art. 329: Exercício funcional ilegal

Art. 330: Abandono de cargo

Art. 331: Aplicação ilegal de verba ou dinheiro

Art. 332: Abuso de confiança ou boa-fé

Art. 334: Patrocínio indébito

Art. 335: Usurpação de função

Art. 336: Tráfico de influência

Art. 337: Subtração ou inutilização de livro, processo ou documento

Art. 338: Inutilização de edital ou de sinal oficial

Art. 339: Impedimento, perturbação ou fraude de concorrência

Art. 340: Recusa de função na Justiça Militar

Art. 341: Desacato

Art. 343: Denunciação caluniosa

Art. 344: Comunicação falsa de crime

Art. 345: Auto-acusação falsa

Art. 346: Falso testemunho ou falsa perícia

Art. 347: Corrupção ativa de testemunha, perito ou intérprete

Art. 348: Publicidade opressiva

Art. 349: Desobediência a decisão judicial

Art. 350: Favorecimento pessoal

Art. 351: Favorecimento real

Art. 352: Inutilização, sonegação ou descaminho de material probante

Art. 353: Exploração de prestígio

Art. 354: Desobediência a decisão sobre perda ou suspensão de atividade ou direito

Total: 164 tipos penais do Código Penal Militar

Dentre os crimes citados, suscetíveis de acordo de não persecução penal, destacamos aqueles de extrema reprovação no âmbito castrense, como os delitos contra a segurança externa do país (espionagem e conspiração), tráfico de drogas, peculato, corrupção ativa, corrupção passiva, bem como os crimes propriamente militares que não admitem sequer a suspensão condicional da pena

Vale observar ainda que o acordo de não persecução penal, além da pena mínima de quatro anos, estabelece outros requisitos que são, ao meu juízo, inconciliáveis com a estrutura do Ministério Público Militar e da Justiça Militar. Vejamos os demais requisitos:

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos, indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público;

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45. do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social a ser indicado pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; e

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

Dos mencionados requisitos, o único que nos parece viável no âmbito do MPM e, até mesmo da Justiça Militar, seria a reparação do dano.

Ocorre que o art. 240,§ 2º do Código Penal Militar já prevê a reparação do dano e, dependendo da interpretação que for dada ao aludido dispositivo, o agente poderá ser absolvido, caso restitua ou repare o dano causado, antes de instaurada a ação penal. Essa norma é aplicada aos crimes patrimoniais (art. 250. do CPM).

O Superior Tribunal Militar, no julgamento da Apelação nº 7001106-21.2019.7.00.0000, não acolheu, por unanimidade, a preliminar suscitada pela Defensoria Pública da União, quanto à aplicação do acordo de não persecução na Justiça Militar, sob o fundamento de que o alcance normativo do acordo de não persecução penal está circunscrito ao âmbito do processo penal comum, não sendo possível invocá-lo subsidiariamente ao Código de Processo Penal Militar.

Realmente, o legislador não quis que o acordo não persecutório penal fosse aplicado ao processo penal militar. Observe que a lei em questão individualizou no seu texto as normas penais e processuais que seriam alteradas. Assim, a partir do art. 2º da Lei 13.964/2019, houve a descrição pormenorizada das alterações, nas diversas leis e artigos que se pretendia aperfeiçoar.

Vejamos por exemplo que o art. 1º, § 3º, da Lei 8.038/99, que institui normas procedimentais para processos, perante o STJ e STF, foi alterado pelo art. 16. da Lei Anticrime, passando a constar o acordo de não persecução penal, nos moldes estabelecidos no art. 28-A do CPP.

Da mesma forma, o art. 17. da Lei 8.429/92 (improbidade administrativa) foi alterado pelo art. 6º da denominada Lei Anticrime, no sentido de admitir o acordo de não persecução civil.

No que diz respeito à legislação militar, o legislador acrescentou o art. 16. –A ao CPPM, registrando que os servidores da Polícia Militar e dos Corpos de Bombeiros, investigados por fatos relacionados ao uso de força letal, no exercício profissional, poderão constituir defensor.

Desse modo, verifica-se que o silêncio do legislador foi intencional ao não estipular o acordo de não persecução penal no âmbito da Justiça Militar. Com efeito, é comum o legislador ordinário não fazer qualquer menção à legislação penal e processual penal militar quando elabora lei, com conteúdo na área criminal. Não foi esse o caso, uma vez que, como visto no parágrafo antecedente, a legislação processual penal militar não foi esquecida.

Por fim, assinale-se que a legislação penal e processual penal possui dispositivos penais e processuais próprios que, se interpretados em consonância com a Constituição Federal, supre a questão da não persecução penal de forma mais objetiva, em relação aos crimes de menor gravidade.

Pelos motivos expostos, não vejo razão jurídica e razão de fato para aplicação do instituto da não persecução criminal na Justiça Militar, nos moldes estabelecidos na Lei em comento.

Sobre o autor
Luciano Gorrilhas

Subprocurador-geral de Justiça Militar

Informações sobre o texto

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