JURISDIÇÃO NACIONAL E O TRANSPORTE MARÍTIMO INTERNACIONAL DE CARGAS: ABUSOS E PRECEDENTES
A cláusula de eleição de foro estrangeiro e a arbitragem. Órgão Especial do STJ na Sec. 14.930 não é precedente para as ações regressivas movidas por seguradores sub-rogados contra transportadores marítimos. A validade dos julgados que reconhecem a natureza abusiva do contrato internacional de transporte marítimo de carga.
Transporte marítimo internacional de carga | Dano Contratual | Direito de Transportes, Direito do Seguro, Direito Marítimo e Direito de Danos | Cláusulas abusivas | Contrato de adesão | Análise econômica do Direito | Protagonismo da seguradora sub-rogada e a função social do negócio de seguro | O ressarcimento em regresso e o princípio do mutualismo: interesses de todos os segurados e da sociedade em geral | Princípios do sequenciamento e da estabilização dos precedentes | Direitos dos contratante débil | Dever moral e constitucional de reparação civil integral | Primazia da jurisdição nacional | Desobediência da lei de arbitragem brasileira | Segurador não pode ser obrigado a renunciar sua jurisdição por decisão alheia | Artigos que tratam da arbitragem e do foro estrangeiro | Precedentes judiciais que reconhecem a natureza abusivas dessas cláusulas
I
INTRODUÇÃO
Recentemente um dos autores deste artigo escreveu um outro artigo, sobre o tema nº 210 de repercussão geral do STF, cujo início agora reproduzimos:
“Se os fatos jurídicos não forem rigorosamente os mesmos, não há que se aplicar o precedente judicial (aliás, nem há precedente)”
Ministro Fux
Aula-palestra sobre o Código de Processo Civil,
intitulada “O precedente no Direito Brasileiro e a gestão de precedentes no STF.
No curso foram mais ou menos estas as palavras do Ministro. Entusiasmado, não só com a ideia acima, mas todo o conteúdo da aula-palestra, um de nossos autores endereçou o seguinte comentário a amigos próximos e interessados em Direito do Seguro e Direito dos Transportes:
“Com base nas palavras do Ministro, levando em conta princípios fundamentais do Direito e os conceitos de “sequenciamento” e de “estabilização de precedente”, arrisco dizer:
1) não se pode aplicar a decisão de repercussão geral do STF, tema 210, ao transporte internacional de carga (razão ôntica diferente do transporte de passageiros). Além de fatos diferentes, há choque com Súmula 188, também da Corte, quando seguradora sub-rogada for autora da ação indenizatória. Primazia do princípio da reparação civil integral (art. 944, CC).
2) a decisão do órgão especial do STJ que, em caso muito específico, determinou à seguradora seguir arbitragem convencionada entre seu segurado e terceiro, não cabe nos casos de transportes marítimos internacionais de cargas. Não é precedente aquela decisão nestes litígios, porque estes se informam por contratos de adesão, com cláusulas desde sempre consideradas ilegais, inconstitucionais e abusivas pela jurisprudência. Fatos diferentes, respostas diferentes.”.
Mais do que nunca confiamos no triunfo no cenário jurisprudencial das duas teses acima expostas, porque as vemos amparar-se, como dito no outro texto, nos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade, da não surpresa, da isonomia, da equidade e da moralidade, entre outros.
Naquele artigo (em verdade, um breve ensaio) tratou-se do Tema 210 de repercussão geral do STF, da Convenção de Montreal, da limitação de responsabilidade do transportador aéreo de carga; neste se tratará dos precedentes judiciais em relação ao contrato internacional de transporte marítimo de carga.
O Código de Processo Civil prevê: não decidirá o caso o juiz que se defrontar com um contrato em que haja estipulação de foro estrangeiro ou compromisso arbitral.
A princípio nada de errado. O problema é quando em questão se puserem espécimes contratuais como o contrato internacional de transporte marítimo de carga, ignorando a ilegalidade brutal que acomete parte de seu clausulado, por intermédio do qual unilateralmente estabelece, a propósito da solução de conflitos, jurisdição estrangeira ou arbitragem. É preciso dizê-lo: em tais cláusulas nada há de convenção, de anuência, de escolha a dedo.
Não existe renúncia tácita ao direito-garantia fundamental de acesso à jurisdição brasileira. A parte contratante pode realmente preferir outra jurisdição que não a brasileira, desde que, respeitada sua intimidade animada, reflita-se dela, no espelho contratual, a liberdade enfática e confessa. A jurisdição estrangeira não pode ser imposta de um lado a outro. Jamais.
Situação mais grave é a da arbitragem. Pois a Lei de Arbitragem brasileira expressamente enxerga na voluntariedade o critério máximo de validade da convenção. Mais do que a jurisdição estrangeira, a arbitragem não deve ser forçada; não se pode arrastar para uma câmara arbitral quem não tenha por ela optado, com o ânimo desembaraçado e isento de restrições.
Em ambas as situações, no contexto internacional do contrato de transporte marítimo de carga, pode-se ver de tudo. Menos uma escolha livre de ambas as partes. Esse contrato é tipicamente de adesão. Embarcador ou consignatário não costumam expressar sua vontade; submetem-se os dois aos desígnios do armador, não de todo arbitrários, porém nem de todo reconhecidos.
É um contrato desequilibrado, desajustado, meio manco. Inegavelmente contém cláusulas abusivas para o ordenamento jurídico brasileiro. Justamente desse rol de abusividades escritas fazem parte as disposições sobre jurisdição e arbitragem. Os donos de carga não influem sequer no modelo de solução do litígio que porventura surja. Não por outra razão a jurisprudência sempre considerou tais cláusulas abusivas, ilegais, inválidas e ineficazes.
Pelo mesmo raciocínio, ou melhor, de até forma mais severa, absurdo seria adotar os moldes desta cláusula, imposta à parte aderente, e estender-lhe os abusivos efeitos em desfavor do segurador sub-rogado, que nem parte é da relação contratual de transporte.
Praticamente unânimes são os precedentes a tratar da abusividade constitutiva das cláusulas de eleição de foro e de arbitragem em contratos do gênero. Desse jeito, não projetam efeitos contra os donos de cargas, contratantes débeis; e mesmo que os projetasse, ficariam retidos na figura aderente, limitados a elas, jamais se podendo opô-las ao segurador sub-rogado, o que seria um ataque frontal ao conceito de ressarcimento, à mutualidade, aos legítimos interesses dos segurados em geral.
Nosso objetivo é mostrar que a decisão na SEC. 14.930 do órgão especial do Superior Tribunal de Justiça não é um precedente para todo e qualquer caso com seguradora, segurado, terceiro e arbitragem. Não é precedente, especialmente em litígios de Direito Marítimo, pleitos de ressarcimento em regresso entre seguradoras sub-rogadas e transportadores, porque os contratos que os informam são de adesão, e nem mesmo os segurados, quiçá as seguradoras, anuem com cláusulas de foro estrangeiro ou de arbitragem.
Para este tipo de litígio, os precedentes são aqueles que datam de bem antes do novo Código de Processo Civil e que, desde sempre, despojaram as cláusulas de todas as pretensões de legitimidade, validade e eficácia. Tais cláusulas ferem também a Constituição Federal e, também pela violência com que negam à parte aderente o direito de socorrer-se do Poder Judiciário, acabam por invadir o campo moral, onde cravam o mastro de suas aquisições imperiais.
Dentro da mais moderna compreensão do Direito Contratual, nos contratos de adesão com obrigação de resultado, pelo menos uma das partes vai assumir as vestes daquilo que se convencionou chamar “contratante débil”. Contratante débil é o hipossuficiente, o incapaz de externar sua vontade na relação contratual, obrigado a aderir ao pacote de cláusulas que a outra parte empurra sem perguntar. No transporte marítimo, o contratante débil é o embarcador, é o consignatário da carga; o segundo até um pouco mais do que o primeiro, por ser o terceiro em favor de quem se estipula a obrigação.
Esses atores contratuais não esboçam nenhuma expressão de anuência às cláusulas de foro estrangeiro e arbitragem. Em relação a tais pontos a sua debilidade de contratação manifesta-se com inigualável rigor. Como costumam figurar na condição de segurados no seguro de transporte, pelo fenômeno da sub-rogação essa frágil condição se transmite ao segurador.
Quando nos atentamos aos precedentes de que falava o Ministro Fux, mencionado no início deste texto, ainda que muito alarde tenha sido lançado sobre a decisão, o julgado na SEC 14.930 não pode ser como tal considerado. Ao menos sem antes entortar a realidade do transporte, não se poderá aplicá-lo ao ressarcimento em regresso que, em virtude dos direitos a ele transmitidos pelo dono da carga, o segurador sub-rogado move contra transportadores inadimplentes.
Aplicam-se, ou melhor continuam imperando nestes casos, os precedentes históricos, a tradição que sempre identificou a abusividade plena em certas cláusulas do instrumento contratual do transporte marítimo de cargas. Disso fazem prova os precedentes do próprio STJ e, especialmente, do TJSP, já que nele se trata da maioria das ações dessa natureza.
A decisão do Órgão Especial do STJ no Sec. 14.930 não é, portanto, precedente no sentido em que o utiliza o ministro Fux, nem pode espraiar suas influências para o ressarcimento contra transportadores marítimos. Precedentes são os que tradicionalmente reconhecem, antes de tudo, a natureza abusiva de tal contrato.
A decisão nada teve a ver com Direito Marítimo; o contrato de cujas cláusulas se falava não era de adesão, nem se encontrava repleto de cláusulas abusivas. Isso muda tudo. Com efeito, lá o segurado ainda optou pela arbitragem no exterior, e a Seguradora, ainda que a pretexto de discuti-la, participou do respectivo procedimento. Fogem do caso as figuras concretas que habitualmente se apresentam no palco do transporte marítimo. Não funciona como precedente; não sem ao menos, de forma injusta, desprezar a vontade do dono da carga, ou da seguradora que se sub-rogou em seus direitos e ações, apenas para conferir à arbitragem, por razões talvez de ordem prática, política ou econômica, uma amplitude de territórios antagônica à tradição jurídica, discordante da lei e adversa ao bom senso.
Este artigo se dividirá em duas partes: uma dedicada para a cláusula de foro estrangeiro; outra para a arbitragem, à luz dos precedentes, entendidos como fonte do Direito, no novo sistema processual brasileiro.
II
A CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO ESTRANGEIRO
O novo Código de Processo Civil introduziu mudanças significativas no sistema processual brasileiro, exigindo dos protagonistas do Direito mais apuro no olhar. Algumas dessas mudanças, se mal dissecadas e expostas, poderiam produzir uma franca tragédia no Direito Marítimo. Falamos da cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro no contrato internacional, essa novidade dispositiva.
Em princípio, sua aparição está rodeada de ares positivos. Mas é sempre prudente lembrar que não há no cosmos inteiro um mal em que não haja bem. Se olhar por essa perspectiva é otimismo ou pessimismo, ignoramos. Justamente porém essa cautela inicial é que nos orienta a prevenir do artigo alguns erros de interpretação mais previsíveis. Prevalecendo a hermenêutica menos lesiva aos direitos, as consequências serão boas, ótimas, uma maravilha.
Decerto toda novidade, antes de firmar território nos terrenos da história jurídica em que deu o ar de sua graça, deve ter consciência da tradição que a precede e que pavimentou seu caminho até ali. No respeitante à cláusula de eleição de foro, embora a regra nova lhe reconheça a validade e a eficácia no contrato internacional, nem por isso ela abre mão das exigências de regularidade estrita, formal e material. De modo que a regra não será hábil, em abstrato, se a cláusula contratual, em concreto, não refletir a perfeição do negócio jurídico.
A cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro no contrato internacional só será efetivamente reconhecida e aplicada se o seu conteúdo corresponder perfeitamente aos pressupostos de validade do negócio jurídico, e principalmente quando sobre seu ânimo soprar a nobreza liberta dos espíritos voluntários. Qualquer ofensa, qualquer ataque, qualquer mitigação do princípio da autonomia da vontade removerá as energias vitais deste corpo clausular, assim abandonado às margens da ordem processual.
Todo contrato internacional de transporte marítimo de carga é um contrato de adesão, formatado exclusivamente pelo transportador, sem anuência do consignatário da carga, muito menos do segurador.
Surgindo conflitos, à Justiça recai a primazia de sua solução. Em virtude de garantia constitucional expressa, cabe a ela observá-los, ouvi-los, resolvê-los. Mesmo uma cláusula a princípio válida, de cuja voluntariedade ninguém duvida, poderá ser abandonada ao relento, em razão das disposições abusivas que restringem suas camadas de interpretação, quando houver concreta lesão ou ameaça de lesão ao acesso jurisdicional.
Será possível às partes renunciar porém à soberania judicial do Brasil, colocando-se sob o juízo de outras cortes do mundo?
O artigo 25, caput, do novo Código de Processo Civil reconhece: “Não compete à autoridade judiciária brasileira o processamento e o julgamento da ação quando houver cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro em contrato internacional, arguida pelo réu na contestação”.
Antes de mais nada, cabe um esclarecimento sobre o objeto de sua incidência: o contrato internacional. O contrato internacional promove a circulação de riquezas entre nações, mesmo que por intermédio de atores puramente privados, envolvendo o fluxo regular de bens, capitais ou de serviços, tudo segundo o artigo 2º do Decreto-Lei nº 857/1969.
Nesta fôrma contratual cabe perfeitamente uma cláusula eletiva de foro estrangeiro, contanto que, no ato de firmá-la, se haja tributado o devido respeito à soberania da jurisdição nacional (casos com reserva legal) e do próprio ordenamento jurídico brasileiro. Este artigo do Código de Processo Civil de 2015 não possui correspondência no código processual de 1973. É real inovação da ordem processual brasileira.
Num primeiro momento, ele é interessante. Num segundo, sua incidência acaba por se mostrar mais seleta. Ainda que o pareça aos olhos interessados de alguns, ele não é uma massa amorfa a que basta martelar para ajeitar-se a qualquer molde contratual. No plano dos contratos adesivos, dos quais faz parte o contrato de transporte marítimo de carga, a arbitrariedade da cláusula faz questão de afugentar todos os pressupostos de validade e eficácia.
Imprescindível é a autonomia da vontade para o aperfeiçoamento do negócio jurídico, condição sem a qual resta a abusividade mais plena e radiante, com todos os prejuízos a acompanhá-la. A validade e a eficácia da norma legal, claro, não são passíveis de discussão. Não dotada desta mesma sorte é a cláusula contratual de fato, presumidamente capaz de trazer ao ato da vida a concretude de sua potência.
A cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro somente será alvo de pleno alcance do artigo 25 se sua forma e seu conteúdo se ajustarem perfeitamente ao ordenamento jurídico brasileiro.
No transporte marítimo, permite-se a uma das partes impor sua vontade, com cláusulas de prévia formatação, ao passo que à outra cabe obedecer tais imposições, sob pena de ver navios; e pior: navios que não transportam tudo, menos a sua carga. Os contornos da lei e dessa particularidade contratual distanciam-se bastante, cada qual guarda reservas contra outra, numa admirável antipatia mútua.
Dessa forma, é preciso firmar alguns postulados que retiram dessa modalidade contratual o cabimento do art. 25 do CPC. O contrato: 1) é de adesão; 2) contém vícios a atrapalhar a plena autonomia de uma das vontades da relação jurídica; 3) baseia-se em normas e convenções internacionais não reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro; 4) contém cláusulas manifestamente abusivas; e 5) não oferece simetria entre as partes.
No conhecimento de transporte a cláusula que pretende eleger foro afasta-se da chancela do artigo. Melhor se descreve pelos traçados conceituais da cláusula hardship. Exatamente por isso a jurisprudência nunca as reconheceu. Os tribunais brasileiros sempre enxergaram nelas o abuso e a incompatibilidade com o Direito brasileiro, a invalidade e a ineficácia, sobretudo no respeitante à soberania da jurisdição nacional. É até de longa data a tradição jurisprudencial de ex officio a declarar nula.
Abaixo, reproduzimos enunciado de Súmula do extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo:
Súmula nº 14 do antigo 1º TACivSP, hoje TJSP:
“Contrato de transporte. Seguradora subrogada – A cláusula de eleição de foro constante do contrato de transporte ou do conhecimento de embarque é ineficaz em relação à seguradora sub-rogada.”
No mesmo sentido as emblemáticas decisões presentes na RT 623/90 e RT 623/90:
“A cláusula de eleição de foro constante de contrato de transporte ou do conhecimento de embarque é ineficaz quanto à seguradora sub-rogada no crédito da remetente, pois não está a seguradora na posição contratual da remetente segurada, detendo apenas o crédito desta.” (UJ 356.311 – TP – j. 7.5.87 – rel. Juiz Araújo Cintra)
“Os foros especiais e o do domicílio do réu são concorrentes, por conseguinte, concorrentes este último e o de eleição. E diz-se que a competência é concorrente quando simultaneamente vários foros forem competentes, podendo haver a escolha de um autor, em detrimento dos demais (...)”“Proposta a ação, dá-se por escolhido o foro, pouco importando que o réu mude seu domicílio ou ocorra outra alteração de fato, pois esse é o momento da perpetuatio jurisdicitionis, que em nosso Direito não é simultâneo ao da prevenção, pela qual se fixa a competência do juízo, cristalizando-a (art. 86 e 219 do CPC).” “O foro do domicílio geral; e concorrente com os demais, por não trazer à ação nele ajuizada prejuízo ao réu, que melhor poderá defender-se, devendo-se ressaltar haver normas expressas – que são consideradas de caráter geral – quanto ao foro de eleição (arts. 95, Segunda parte, do CPC e 846, parágrafo único, e 950, parágrafo único, do CC).”
Os julgados, afora datados do antigo Código de Processo Civil, cabem perfeitamente aos termos do atual, à orientação praticamente pacífica da jurisprudência presente. O Direito processual civil mudou; o modo de lidar com o transporte marítimo de cargas, contudo, permanece o mesmo: do pai o filho herdou nome; e, embora mude um pouco em aparência, preserva-se nele aquele espírito costumeiro, que não é apenas sangue, mas também tradição.
Uma cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro somente será válida e eficaz se: 1) respeitar o princípio da autonomia de todas as vontades; 2) não estiver inserida em contrato de adesão; 3) respeitar todos os pressupostos essenciais do negócio jurídico perfeito; 4) carecer de qualquer ilicitude, ainda que segundo a ordem moral; 5) não for abusiva.
Diante disso o contrato internacional de transporte marítimo de carga não pode ver como válida e eficaz sua cláusula eletiva de foro estrangeiro, porque eivada do vício da voluntariedade e rotulada, conforme amplo entendimento jurisprudencial, como abusiva, nula de pleno direito.
Destaca-se, pois, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de Agravo Regimental interposto no Agravo de Instrumento nº. 459.668-RJ (2002/0076056-3), julgado em 16 de dezembro de 2002, em que figurou como relator o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito:
“EMENTA: Agravo regimental. Recurso especial não admitido. Contrato. Transporte marítimo. Competência. Cláusula de eleição de foro estrangeiro.
1. O Acórdão recorrido, de forma expressa, afirmou que não enfrentaria o mérito da questão da sub-rogação. Sendo assim, a ausência de prequestionamento do tema contido no artigo 988 do Código Civil, em seu mérito, revela-se evidente, o que impede o seguimento do especial quanto ao ponto.
2. Dispôs o Acórdão recorrido que "uma cláusula de renúncia de direitos com tão graves consequências como a cláusula de eleição de foro estrangeiro não pode reputar-se aceita tacitamente, sem que haja qualquer evidência, por mínima que seja, de que o consentimento da parte foi específico e resultou de uma negociação consciente" (fls. 43). Esse fundamento do Acórdão, suficiente para sua manutenção, não sofreu impugnação, quer com base na alínea a), quer na alínea c) do permissivo constitucional. Os paradigmas versam apenas sobre a validade da cláusula de eleição de foro em contrato de adesão, sem, contudo, tratar da situação específica verificada na hipótese destes autos, cláusula de eleição de foro estrangeiro, ofensa à ordem pública e à jurisdição brasileira, não havendo, portanto, a necessária identidade fática entre os julgados.
3. Agravo regimental desprovido.
AgRg no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 459.668 - RJ (2002/0076056-3)”
A situação, como já mencionado, se torna ainda mais complexa quando se leva em consideração a realidade prática do Direito Marítimo. A maior parte das ações envolvendo os contratos internacionais de transportes marítimos de cargas é demandada por seguradoras, não pelos consignatários de cargas que delas são segurados.
A dinâmica é mais ou menos a seguinte: o consignatário de carga (às vezes, o embarcador e exportador) contrata seguro do ramo de transporte internacional para cobrir os riscos de uma viagem marítimo. Diante do sinistro, falta ou avaria, parcial ou total, o segurador indeniza o segurado, proprietário da carga sinistrada, e se sub-roga na pretensão original contra o transportador marítimo, que não cumpriu fielmente com a obrigação de resultado. A sub-rogação confere ao segurador a legitimidade para deflagrar a disputa judicial.
E não pode neste momento o segurador se ver forçado a obedecer à disposição de um negócio jurídico do qual não foi parte, em sentido estrito, e com a qual não anuiu. A ilegalidade, a abusividade flagrante em relação ao aderente do contrato, revela-se ainda mais perniciosa para o segurador. A sub-rogação não é via de dupla mão: transmite direitos legítimos, nunca os deveres manchados pelo vício.
Seja para a parte efetivamente aderente do contrato, materializado no conhecimento marítimo, seja, com mais razão ao segurador sub-rogado na pretensão do adere que dele é segurado, a imposição de foro se situa em flagrante descompasso com a ordem jurídica vigente. E o próprio artigo 25 contém mecanismos de calibragem contra tais possíveis injustiças. Fala-se, pois, da regra do § 2º: “Aplica-se à hipótese do caput o art. 63, §§ 1º a 4º.”.
O § 3º diz expressamente: “Antes da citação, a cláusula de eleição de foro, se abusiva, pode ser reputada ineficaz de ofício pelo juiz, que determinará a remessa dos autos ao juízo de foro de domicílio do réu.”.
A mesma norma autorizadora da eleição de foro, portanto, soluciona os problemas que em aparência cria.
Em Direito Marítimo, no lugar do réu, em verdade surge do autor o interesse em reconhecer os abusos que residem na cláusula do contrato internacional, a cujo conteúdo lhe força aderir o transportador de cargas, réu perpétuo das obrigações nele encetadas. Não obstante, observada a inversão de polos, “a ineficiência da cláusula poderá ser declarada de ofício pelo juiz (...)”.
Reconhecida a natureza abusiva da cláusula, poderá o juiz, mesmo sem provocação direta, declarar sua nulidade, remetendo ao juízo de foro de domicílio do réu os autos do processo, no domicílio do transportador marítimo de carga, lugar no Brasil onde ele for representado por agente marítimo, seu mandatário comercial. Eis a importância da norma, a esmagar com o peso da lei todas as tiranias de eleição.
III
DA ARBITRAGEM
Os argumentos contrários à imposição de foro estrangeiro facilmente se replicam para a cláusula de compromisso arbitral, ainda mais ofensiva que a primeira, porque usualmente descumpre a própria lei que a sustenta.
A voluntariedade integra a essência da procedimento arbitral. Ninguém pode impô-la. A arbitragem pressupõe, por assim dizer, um escambo de vontades, uma confluência de intenções que desaguam no compromisso único de resolver pendências do lado de fora do Judiciário. Sem esses volitivos requisitos toda pretensão arbitral é vã, hesita no nada, perde a razão de ser. É o que está, com um pouco menos de drama, na própria Lei de Arbitragem.
Nenhum contrato internacional de transporte marítimo de carga segue a regra que no Brasil se elaborou para o compromisso arbitral. Para ter validade no segmento, precisaria, além de respeitar a regularidade das formas, obter a anuência expressa, convicta e prévia do dono da carga, ou, mais ainda, do seu segurador, por força do §2º do art. 786 do Código Civil. Se isso não existe, a cláusula arbitral de nada serve.
Tanto é verdade que no dia 20 de abril de 2017 o próprio CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima — divulgou a seguinte nota:
"A relevância da cláusula compromissória arbitral
A cláusula compromissória é, em síntese, um acordo prévio entre as partes estipulando que, em caso de litígio, o mesmo será resolvido por meio da arbitragem. Muitos estudiosos da arbitragem afirmam que a cláusula compromissória é a pedra angular da arbitragem, possuindo um efeito positivo e um efeito negativo.
O efeito positivo seria a jurisdição para os árbitros (ou árbitro) decidirem (ou decidir) o litígio no caso concreto. Por outro lado, o efeito negativo seria a derrogação da jurisdição estatal. Nesse sentido, é de fundamental importância que a cláusula compromissória arbitral seja bem redigida. E o CBAM possui modelo de cláusula compromissória padrão (disponível em www.cbam.com.br) para facilitar as partes no momento que forem redigir um contrato.
“As partes obrigam-se a submeter qualquer divergência, conflito ou litígio decorrente do presente contrato, inclusive quanto à sua interpretação ou execução, a arbitragem a ser promovida pelo CENTRO BRASILEIRO DE ARBITRAGEM MARÍTIMA – CBAM, na forma do Regulamento do referido CBAM, que é aceito pelas partes que declaram conhecê-lo e concordar com os termos do mesmo”.
Qualquer dúvida em relação à cláusula compromissória não hesite em nos procurar!"
Os próprios defensores da arbitragem reconhecem a frequente irregularidade de sua estipulação. Por isso oferecem alguma solução, ainda que insuficiente para abarcar todos os problemas com que a prática nos brinda.
Desde que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade da Lei de Arbitragem, a defesa da arbitragem virou uma febre no Brasil. Lembro de à época ter feito algumas considerações sobre fatos e mitos que a torneiam:
- O Poder Judiciário é mais confiável
É uma verdade. Não é imune a erros; sabemos. Mas seus membros ao menos são, quase todos, investidos por meio de processos rigorosos de provas e títulos, o que lhes confere o atestado algum conhecimento, de alguma excelência. Fazendo parte do Estado, são imparciais. Encontram-se acima de paixões, casuísmos e interesses econômicos com que as partes se batem.
2) Os árbitros não são livres como os juízes
Por mais qualificados e idôneos que sejam, ainda que conhecedores profundos de temas específicos, não são investidos da função jurisdicional nem gozam de garantias, prerrogativas e autonomias familiares a estes. O magistrado é o Estado, e seus vencimentos, que não são privilégios, mas garantias, independentes daquele caso em particular, são mais difusos. A sociedade os paga justamente para garantir deles a autonomia e a independência. O árbitro é pessoa comum vinculada à iniciativa privada. Recebe seu pagamento direto das partes em cujo litígio atuou. Haverá nisso uma real independência e uma liberdade em que possamos nos entregar em livre confiança? Não é leviano ignorar que pressões próprias do universo negocial possam influenciar, ainda que no íntimo, de maneira velada, sua convicção e o seu juízo? É algo a considerar.
- O especialismo não é necessariamente uma virtude
Sendo especialistas, árbitros estariam em melhores condições de julgar, dizem. Eis um mito. Nem sempre o pensamento estreitado pela técnica acaba providenciando um bom julgamento; não raro até prejudica a efetivação da Justiça com aquilo que Ortega y Gasset chamou de “barbárie do especialismo”. Isto é: à medida que se sabe mais sobre um único rincão do universo, certos especialistas deixam de buscar conhecer o todo, passam até a dedicar-lhe uma ignorância franca e vigorosa. Nem por isso, contudo, o especialista de se comportar, em relação às porções que ignora, com aquele ar doutoral de quem na sua ilha de ciência é verdadeiramente sábio. Já os magistrados, ainda que lhes faltem certas especificidades do conhecer técnico, ao menos possuem, porque precisam possuir, a consciência unitária do Direito, as consequências do decidir.
- Nem tudo a iniciativa privada faz melhor que o Estado
Pode ser que faça em não poucos aspectos da vida prática. Mas isso não se aplica à Justiça. Ninguém melhor que o Estado para aplicar o Direito. Por mais imperfeições que existam, o modelo do Estado como o grande administrador da Justiça é o melhor, o mais vitorioso e o que mais tem gerado bem-estar social nos últimos períodos de civilização. Uma Justiça privada jamais abandonará o espectro da parcialidade, tampouco deixará de ver seguido pela sombra da desconfiança, porque não investida da imparcialidade presumida da Justiça. Eventuais deformações dessa natureza ideal em nada desmerecem o exercício da soberania judicante do Estado. Ao menos no plano do Direito, o Estado faz melhor que a iniciativa privada. É difícil deixar de imaginar os cifrões que flutuam sobre as soluções privadas.
- Não é preciso em tudo imitar os outros países
Países do primeiro mundo, dizem, adotam a arbitragem com frequência; logo, precisamos fazer igual. Não, simplesmente não. Nem tudo o que convém a um país convém a outro. A popularidade arbitral no Reino Unido, por exemplo, não sugere de imediato nada para o Brasil. Falamos de culturas, povos, sistemas jurídicos, histórias e comportamentos diferentes. A imitação pela imitação é coisa até algo ridícula, e nos faz importar, com sorridente ingenuidade, tudo que o exterior nos envia. As ideias aqui parecem entrar pela alfândega. Acredite-se ou não, o sistema judicial brasileiro é elogiado em vários países. Curiosamente, por meio dos nossos correspondentes profissionais no Reino Unido, na Itália e nos Estados Unidos, soubemos que não são poucas as reclamações com os procedimentos arbitrais, muitas vezes maculados pelo erro, pela injustiça e pelo demérito. Se for para abraçar do Reino Unido uma ideia, que seja a cordialidade fina de seu povo, ou quem sabe o parlamentarismo monárquico. Considera-se o sistema jurídico do Reino Unido o mais justo e eficiente do mundo não por causa da arbitragem que lá se pratica, mas pelo vivo cotidiano da toga.
- No transporte marítimo de carga, armadores e clubes de proteção e indenização nutrem pela arbitragem uma estranha obsessão
Se tanto desejam a arbitragem, é porque nela veem alguma vantagem que certamente nos escapa, mas que os leva a preferi-la, ainda que para isso tenham de se desfazer do ordenamento jurídico brasileiro e da tradição jurisprudencial do nosso país. Com acertada razão, sempre houve por parte do Poder Judiciário nacional um tratamento rigoroso nos casos de faltas e avarias de cargas durantes a execução frustrada dos transportes contratados. A verdade indigesta é que em assuntos de Direito Marítimo a arbitragem costuma pender mais para o lado dos armadores e afins do que para o das vítimas, quer sejam os donos de cargas, quer sejam os seguradores que neles se sub-rogam. O tratamento que confere a arbitragem aos armadores é de uma assimetria constrangedora em relação a donos de cargas e seguradores. A justificativa para isso, quando não afeita ao tecnicismo mais doido, repousa na tranquilidade das Convenções Internacionais, das quais, aliás, o Brasil não é sequer signatário.
- A rapidez não é o melhor critério de escolha
A arbitragem seria muito mais rápida do que a Justiça comum. Em princípio, é uma verdade. Mesmo essa clássica lentidão, alardeada há muito pelos cafés jurídicos aí afora, esconde porém um fundo, digamos, mitológico, transcendente às vãs preocupações temporais. Não negamos a morosidade judiciária. Nem que não devamos nos preocupar com ela. A questão é que o tempo não é a medida de tudo. A arbitragem, por exemplo, custa mais; contudo, carente de garantias seguras de imparcialidade, acaba por se traduzir em custo subjetivo, imaterial e humano, na medida em que pairar a dúvida sobre a justiça de cada decisão. Além disso, com as mudanças introduzidas pelo Código de Processo Civil e a introdução dos modelos digitais, acelerando a prestação jurisdicional, fizeram da Justiça Comum uma opção mais atrativa, mais sedutora.
Qualquer tentativa de substituir a Justiça Comum pela suposta Justiça Privada nos modernizará para interesses particulares e nos fará retroceder para os interesses da nação. Quem se beneficiaria disso?
Eis que chegamos então à famigerada (ao menos nos meios maritimistas) decisão na SEC. 19.430: seria um precedente para a rêfrega cotidiana entre seguradoras de carga e transportadores inadimplentes?
É certo que, antes mesmo de publicada, armadores, de manchetes de blog em punho, passavam de um lado a outro ostentando em seu benefício a impublicada decisão. Era o golpe fatal contra o mercado segurador, a estaca no peito do ressarcimento. Alguns meses depois (porque foram meses) publicou-se, finalmente, o acórdão do órgão especial do STJ. E nessa história toda havia muito gelo para pouco uísque.
Os fatos nada tinham a ver com os casos comuns ao contrato internacional de transporte marítimo de carga, de natureza incorrigivelmente adesiva, repleto de cláusulas impostas pelo partidarismo transportador. Francamente, nada mudou. Com todo respeito à sensibilidade arbitral, continua o segurador livre de procedimentos por que não tenha optado, e com o que em vão tentam amordaçá-lo nos conflitos jurídicos. Razões ônticas diferentes exigem soluções jurídicas diferentes. Como a eleição de foro, a arbitragem é sempre voluntária. Não existe arbitragem imposta ou arbitragem de exceção. A regra do art. 786 do Código Civil, além de fundamental para o segurador, muito importa ao colégio de segurados.
O ressarcimento não é um capricho de seguradoras ávidas por infernizar a vida do transportador. É questão de ordem pública. Desprezá-lo, ou tratá-la com dignidade inferior à que merece, pelo acúmulo de prejuízos que pulam de parte a outra segundo as leis do mercado, lá na frente acabará acarretando consequências para a economia do país.
Naquele caso particular de sentença estrangeira contestada, o órgão especial entendeu que o segurador tinha o dever de seguir a convenção de arbitragem celebrada entre segurado e terceiro. Todavia, é simplesmente errado entender que isso projeta efeitos em todo e qualquer litígio envolvendo segurador sub-rogado e arbitragem, ou nos foros que se julgam eleitos por aí.
Naquele caso havia um contrato mercantil de venda e compra, com compromisso arbitral verdadeiramente convencionado pelas partes (uma delas, o segurado), segundo a Lei de Arbitragem brasileira; depois, a efetiva realização do procedimento arbitral no estrangeiro, com participação do segurador, ainda que sob o pretexto de questioná-la, culminando, ao fim, na homologação de decisão arbitral estrangeira.
Logo, há uma diferença notável entre aquela configuração fática e os contextos normais a envolver contratos de adesão. Pelo menos no cotidiano do Direito Marítimo pululam, de contratos a contratos, linhas descompassadas com as previsões legais sobre a arbitragem, com cuja instituição, no caso concreto, não se vê o aderente sequer “concordar expressamente, por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.”(art. 3, §2º, da Lei 9.307/96)
E repetimos: na fórmula litigiosa do ressarcimento que busca obter de armadores em geral, o segurador sub-rogado não figura como parte no contrato de transporte marítimo de carga, nem chega perto de poder optar por soluções arbitrais, razão pela qual, a defendê-lo, conta com a regra do §2º do art. 786 do Código Civil e a longa tradição jurisprudencial.
A forma equivocada com que foi noticiada a decisão levou ao entendimento igualmente equivocado de que o segurador sub-rogado se obrigava, sim, à cláusula, mesmo que não houvesse anuído com seu conteúdo.
O aumento acrítico das utilizações desse precedente, atrelando-o a situações díspares das que o motivaram, seria golpear a espinha dorsal do contrato de seguro, mutilando de pouco em pouco o instituto da sub-rogação; e, nesse afã por substituir o Judiciário, cairíam pelo caminho, enfraquecidos e derrotados, junto com os interesses da seguradora, os interesses da mutualidade, do colégio de segurados, da sociedade.
O Código de Processo Civil reconhece a possibilidade e a validade da arbitragem desde que particularmente convencionada, com a observação expressa da forma legal, de acordo com o que dispõe o §1º do artigo 3º: “É permitida a arbitragem, na forma da lei”.
Particularmente alheia à autonomia privada, bem acomodada no conhecimento de transporte marítimo, a cláusula de compromisso arbitral exibe, em seu corpo de intenções, tal como a cláusula eletiva de foro, um rol de incoerências que conflui para a fácil constatação de sua abusividade, que dela arranca toda a couraça legal e, contaminando seu interior, a faz ruir por dentro. Essa cláusula busca a todos arrastar ao contratualismo dirigido pelo transportador, desviando-se, com autoritário despudor, dos caminhos definidos pela lei e, especialmente, das preferências voluntárias descritas no artigo 3º, §1º da Lei 9.307/96.
Tudo isso preparou o caminho para a seguinte declaração: a SEC. 19.430 não é precedente para o transporte marítimo de cargas. O precedente requer semelhança nos fatos, paralelismo de narrativa; elementos tais que apontam a diversidade de naturezas contratuais, a diferença notável que há entre o contrato sobre o qual se edificou a decisão do STJ e os contratos adesivos, mais afeitos ao gosto maritimista.
A jurisprudência, ao analisar o contrato de transporte marítimo, sempre teve por inválidas cláusulas que depreciasse a autonomia das partes, ou relegasse a segundo plano a sua própria capacidade de decidir. Porque a vontade não é um detalhe. É o centro do contrato. E tudo leva a crer que o Poder Judiciário, ciente do perene despropósito do clausulado, há de conservar a integridade de sua soberania e a continuidade de sua tradição.
IV
CONCLUSÃO
O fim de toda exploração é retomar o ponto de partida. E cá estamos, na confluência do fim e do princípio, no berço de cada ideia e no epitáfio de cada sentença. Levando em conta os precedentes, tomados na mesma acepção com que se referiu a eles o Ministro Fux, com os olhos porém voltados para o transporte marítimo de cargas, este artigo buscou lidar com alguns dos problemas contratuais que no contexto próprio se vão desvelando ao correr dos dias.
Lembramos que o protagonismo de maior parte dos litígios acerca do inadimplemento do contrato de transporte de cargas fica a cargo das seguradoras. Afinal, quase todo dono de carga tem essa preocupação de obter cobertura do seguro de transporte. Diante do sinistro a seguradora paga-lhe a indenização, sub-roga-se na pretensão original e, a seguir, busca do transportador o ressarcimento em regresso.
Em contestação, cientes do dever de ressarcir, muitos transportadores buscam, no entanto, fugir dele para outros lugares mais favoráveis a seus interesses, extinguindo como puderem a demanda no Brasil. Para isso recorrem às inscrições do instrumento que materializa o contrato de transporte marítimo de cargas; à vista de algumas cláusulas que lá se encontram, costumam partir para duas linhas de raciocínio distintas, porém bastante próximas na distância que reservam da soberania jurisdicional brasileira. Firmam posição com o auxílio das cláusulas que elegem (ou impõem) foro estrangeiro exclusivo ou compromisso arbitral.
Essas alegações têm sido bastante comuns, sobretudo no que diz respeito à arbitragem, depois da decisão na SEC 19.430 do órgão especial do STJ. Pode-se porém contar nos dedos de uma mão as vezes em que armadores conseguiram afastar do Estado o poder decisório, em prejuízo da sub-rogação seguradora. E isso é positivo.
Forçar um choque entre o conteúdo da Súmula 188 do STF, que garante o ressarcimento ao segurador naquilo que pagou, e a decisão na SEC. 19.430, em que o atrelaram a certas escolhas firmadas pelo segurado, poderia produzir consequências perigosas, além de afetar o princípio da não surpresa e o da estabilização dos precedentes, corolário do princípio do sequenciamento. Pela visão econômica do Direito é de se imaginar quantos prejuízos recairão sobre os milhões de segurados brasileiros, a instabilidade que terá levado seguradoras a refazer cálculos atuariais, cujo produto final não é difícil imaginar: aumento de custos para empresas e consumidores.
Pois é preciso lembrar um detalhe: ao exercer o ressarcimento em regresso, a seguradora não só defende seus legítimos direitos e interesses. Por força da mutualidade, faz o mesmo em relação aos interesses e direitos do colégio dos segurados. Indiretamente, haja vista a função social do negócio de seguro, também defende os da sociedade em geral, já que ressarcimentos exitosos impactam diretamente na precificação dos seguros. Em outras palavras: prêmios menores, vantagens para os consumidores. Existe ainda a preocupação em punir o causador do dano. Seria nada menos que absurdo livrá-lo de responder por ilícitos apenas porque sua vítima teve a previdência de contratar seguro.
Haveria imbróglio não só jurídico, mas econômico. Forçadas a arcar com todo e qualquer risco, inclusive os que elas não teriam como prever, as seguradoras teriam seu negócio devastado. Como não existe analogia in malam partem, não existe também o uso do precedente em detrimento de todo um segmento vital para a saúde econômica da sociedade.
Inspirado nas palavras do Ministro Fux, um dos idealizadores da cultura dos precedentes no Brasil, reiteramos: divergindo os fatos, a natureza das partes que demandam, não há precedente, não há nada.
É importante que a cultura dos precedentes cresça no país, que a sociedade aprenda sua importância, diminuindo a quantidade desoladora de disputas judiciais em curso, numa contribuição admirável para a cultura da conciliação. Urge porém ter serenidade antes de sair misturando o que em absoluto não é misturável. A melhor forma de proceder, ao menos no transporte marítimo, é preservar a compreensão jurisprudencial que venceu o teste do tempo, pois encontrou a forma de resistir contra os abusos contratuais, negando poderes ao imperialismo de foro e à autocracia arbitral.
Santos, 15 de abril de 2020
“Se você estiver atravessando o inferno, continue caminhando”
Winston Churchill
PAULO HENRIQUE CREMONEZE
Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes, sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, pós-graduado "lato sensu" em Direito e Mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, pós-graduado e especialista em Direito do Seguro pela Universidade de Salamanca (Espanha), membro (acadêmico) da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência (desde 2019), professor convidado da ENS - Escola Nacional de Seguros, palestrante e conferencista da ADESG – Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, presidente do IDT – Instituto de Direito dos Transportes, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo, membro efetivo da UJUSCASP – União dos Juristas Católicos do Estado de São Paulo (Vice-presidente atual), membro da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, membro do Instituto Paranaense de Direito Processual Civil, Pós-graduado em Teologia (formação teológica com reconhecimento Pontifício) pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (vinculada à PUC-SP), autor de livros e de artigos acadêmicos publicados em revistas e cadernos jurídicos, membro do Conselho Fiscal do Museu de Arte Sacra de Santos, Comendador com a Insígnia da Ordem do Mérito Cívico e Cultural da Sociedade Brasileira de Heráldica e outorgado com a Láurea de Reconhecimento da OAB-Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia. Primeiro presidente da ADCE-LSP – Associação de Dirigentes Cristãos de Empresas do Litoral de São Paulo. Associado da Sociedade Visconde de São Leopoldo, entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos e do Colégio Liceu Santista. Patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos.
LEONARDO QUINTANILHA
Acadêmico de Direito, membro do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados