UM CRIME DE RESPONSABILIDADE
Rogério Tadeu Romano
I – O FATO
A Folha, em seu site, no dia 19 de abril do corrente ano, noticiou que em cima da caçamba de uma caminhonete, diante do quartel-general do Exército e dirigindo-se a um público pró-intervenção militar no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) afirmou neste domingo (19) que "acabou a época da patifaria" e gritou palavras de ordem como "agora é o povo no poder" e "não queremos negociar nada".
"Nós não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil", declarou o presidente, que participou, pelo segundo dia consecutivo, de manifestação em Brasília, causando aglomerações. "Chega da velha política. Agora é Brasil acima de tudo e Deus acima de todos", declarou.
Além de defender o governo e clamar por um novo AI-5 —o mais radical ato institucional da ditadura militar (1964-1985), que abriu caminho para o recrudescimento da repressão— os manifestantes aglomerados em frente ao quartel-general defenderam o fechamento do STF (Supremo Tribunal Federal) e miraram no presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Em uma ocasião, os presentes se juntaram em coro defendendo a prisão do deputado.
"O que tinha de velho ficou para trás. Nós temos um novo Brasil pela frente", discursou Bolsonaro, também de cima da caçamba. "Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro".
Bolsonaro tem incentivado os protestos.
Por sua vez, o site do O Globo, no mesmo dia, acentuou:
“Além dos traços autoritários, o ato descumpre as medidas de distanciamento social defendidas por especialistas e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), consensuais em quase todo o mundo.
— Nós não queremos negociar nada, nós queremos é ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás, nós temos um novo Brasil pela frente. Todos sem exceção no Brasil, tem que ser patriota e acreditar e fazer a sua parte — disse Bolsonaro.”
II – O DECORO
O comportamento do atual presidente da República é manifestamente contrário à Constituição.
Não cabe pregar contra o Legislativo e o Judiciário, poderes da República.
Aliás, Paulo Brossard(O impeachment, 1992, pág. 54) ensinou que a própria Constituição estatui, no artigo 89 caput, da Constituição de 1946, que “são crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal”. E só depois de haver traçado essa regra básica é que acrescenta: “e, especialmente, contra....”, seguindo-se os oito itens exemplificativamente postos em relevo pelo constituinte, pelo que incumbiu o legislador da tarefa de decompô-los e enumerá-los. Mas ela mesma prescreveu que todo atentado, toda ofensa a uma prescrição sua, independente de especificação legal, consituti crime de responsabilidade.
Assim se tem do artigo 89 da Constituição de 1946:
Art 89 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição federal e, especialmente, contra:
I - a existência da União;
II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos Poderes constitucionais dos Estados;
III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV - a segurança interna do País;
V - a probidade na administração;
VI - a lei orçamentária;
VII - a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos;
VIII - o cumprimento das decisões judiciárias.
Parágrafo único - Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.
Veja-se o que se diz no artigo 85 da Constituição de 1988:
São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
I - a existência da União;
II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV - a segurança interna do País;
V - a probidade na administração;
VI - a lei orçamentária;
VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.
Assim todo o ato do presidente da República que atentar contra a Constituição é crime de responsabilidade.
Observo, para tanto, o artigo 9 da Lei 1079/50:
Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:
.......
7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.
Constitui crime de responsabilidade contra a probidade da administração “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. De forma semelhante dispunha o Decreto nº 30, de 1892, ao preceituar, no artigo 48, que formava seu capitulo VI, ser crime de responsabilidade contra a probidade da administração “comprometer a honra e a dignidade do cargo por incontinência política e escandalosa, ......, ou portando-se com inaptidão notória ou desídia habitual no desempenho de suas funções”.
Como disse ainda Paulo Brossard(obra citada, pág. 56), “não é preciso grande esforço exegético para verificar que, na amplitude da norma legal – “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” – cujos confins são entregues à discrição da maioria absoluta da Câmara e de dois terços do Senado, cabem todas as faltas possíveis, ainda que não tenham, nem remotamente, feição criminal.
A lei estabelecerá as normas de processo e julgamento(Constituição Federal, art. 85, par. único). Essas normas estão na Lei n. 1.079, de 1.950, que foi recepcionada, em grande parte, pela Constituição Federal de 1988 (MS nº 21.564-DF).
Tal se dá em decorrência do princípio republicano, na possibilidade de responsabilizá-lo, penal e politicamente, pelos atos ilícitos que venha a praticar no exercício das funções.
Paulo Brossard(obra citada, pág. 132) fala em pena política que o Senado impõe, ao acolher acusação da Câmara consistente na destituição do presidente da República. Para o ministro Brossard, dado que impropriamente chamados crimes de responsabilidade, enquanto infrações políticas, não são crimes, mas ilícitos de natureza política, como política é a pena a eles cominada.
Em posição que merece ser considerada como atual, Paulino Ignácio Jacques(Curso de direito constitucional, 7ª edição, Rio de Janeiro, pág. 254) concluiu que vigorava em tema de crime de responsabilidade, impeachment, a tese de que, se a causa do processo não deixa de ser puramente política, o meio – o processo e julgamento – e o fim – a pena – são tipicamente criminais, uma vez que o Presidente da República sofre a imposição de uma pena(perda do cargo, com incapacidade para exercer outro, ou sem ela). Adotamos a tese do impeachment europeu, um processo misto(político-criminal), como notaram Duguit, Esmein, Bryce e Tocqueville, dentre outros, ao passo que o impeachment americano só inflige pena administrativa, pois há um processo meramente político.
No Império, era criminal a pena aplicada. Não se estancava o processo instaurado contra um ministro, mesmo que ele se desligasse do cargo, nem seu afastamento do governo impedia fosse encetado o processo.
III – ALGUMAS QUESTÕES SOBRE O IMPEACHMENT
Ademais, cabe uma questão importante, envolvendo a inconstitucionalidade de penas alternativas(perda do cargo ou com incapacidade para exercer qualquer outro).
Em seu voto, no caso do MS 21.689, o relator ministro Carlos Velloso disse:: “No regime da Constituição vigente, como na de 1946, em que foi editada a Lei no 1.079, de 1950, a pena da inabilitação, para o exercício de qualquer função pública deve ser entendida como de aplicação necessária, em caso de condenação no processo de impeachment”. Não poderia, portanto, haver uma pena sem a outra.
No caso do impeachment da ex-presidente Dilma, entendeu o Senado que as penas não eram cumulativas, podendo haver cassação sem declaração de incapacidade para exercício de outro cargo.
Michel Temer ensinava que a Constituição de 1946 acabara com a natureza “acessória” da segunda pena, defendida por Rui Barbosa. Eis o que ele escreveu sobre o assunto: “A inabilitação para o exercício de função pública não decorre da perda do cargo, como à primeira leitura pode parecer. Decorre da própria responsabilização. Não é pena acessória. É, ao lado da perda do cargo, pena principal. (…) A renúncia, quando já iniciado o processo de responsabilização política, tornaria inócuo o dispositivo constitucional se fosse obstáculo ao prosseguimento da ação.
Outra questão foi manifestada durante o impeachment do ex-presidente Collor, no sentido da cessação do processo, diante da renúncia do presidente da República. O Senado entendeu, após ter ciência da renúncia daquele ex-presidente que o processo de impedimento não poderia cessar.
No entanto para o ministro Paulo Brossard(obra citada, pág. 134), “tão marcante é a natureza política do instituto que se a autoridade corrupta, violenta ou inepta, em sua palavra, nociva, se desligar definitivamente do cargo, contra ela não será instaurado processo e se, iniciado, não prosseguirá.”
Assim, para Paulo Brossard(obra citada, pág. 134) “o término do mandato, por exemplo, ou a renúncia ao cargo trancam o impeachment ou impedem sua instauração. Não pode sofrê-lo a pessoa que despojada de sua condição oficial, perdeu a qualidade de agente político”.
Mas, assim não entendeu o Supremo Tribunal Federal ao manter o impedimento do ex-presidente Collor, mesmo depois de sua renúncia.
Nas discussões em torno do Mandado de Segurança 21.689, decidido apenas em dezembro de 1993 tal matéria foi debatida. Trata-se de uma das votações mais importantes para o impeachment de Collor e uma das mais tortuosas na história do STF. Os ministros foram instados a responder a duas perguntas: a) poderia o processo prosseguir depois da renúncia de Collor?; b) a pena de “inabilitação” tem natureza acessória ou está ligada intrinsecamente à perda do cargo?
A primeira votação acabou empatada em quatro a quatro – dois dos ministros se declararam suspeitos, e um terceiro, impedido. Para desempatá-la, foi necessário convocar três ministros do Superior Tribunal de Justiça. O mandado foi negado a Collor, que pretendia resgatar seus direitos políticos.
Paulo Brossard estava presente no julgamento do mandado de Collor. Ele se recusou a analisar a questão, alegando que o STF não tinha competência para tratar de qualquer decisão do Senado. “As decisões do Senado são incontrastáveis, irrecorríveis, irrevisíveis, irrevogáveis, definitivas”, escreveu em sua obra O impeachment. No dia do julgamento do Mandado de Segurança, afirmou: “Esta é a quarta vez que o STF é chamado a intervir em área que a Constituição lhe não conferiu, mas ao Senado reservou, e só ao Senado, numa quebra do monopólio do Poder Judiciário”. Mas, obrigado a dar um voto a respeito, Brossard negou o mandado a Collor e concordou com o ministro Velloso, que mantivera a condenação.