1. Introdução: Breve Análise sobre os Contornos da Prisão Cautelar no Processo Penal Brasileiro.
A prisão, conceituada como qualquer forma de tolhimento do direito de ir e vir através do recolhimento de qualquer pessoa ao cárcere, é medida associada ao direito penal e ao processo penal com características diferentes em cada um desses ramos do direito.
No direito material trata-se de conseqüência jurídica da prática de um crime, como sanção dotada do fundamento punitivo utilizado pelo Estado, visando proteger bens jurídicos básicos a seus cidadãos. Refere-se ao resultado de uma condenação pela prática de um crime após sentença penal transitada em julgado.
O direito processual penal, por sua vez, conta com instituto da prisão, que em muitos casos se faz necessário sob o argumento da cautela. Uma vez considerada como instrumento de cautela, destina-se a assegurar o resultado útil da jurisdição penal, constituindo verdadeiro instrumento do processo.
A prisão processual tem características as quais, no ordenamento jurídico brasileiro, devem ser necessariamente verificadas para sua caracterização. [01]
Uma primeira característica é a jurisdicionalidade dessa medida, quer dizer, o controle judicial amplo sobre a qual esta é erigida. De regra, a prisão cautelar deverá ser determinada pelo Judiciário. Apenas nos casos em que isso não é possível pela premência da situação esse controle será exercido a posteriori.
É necessariamente medida acessória ao processo principal, dependendo diretamente deste, apesar de ser passível de lhe preceder em diversas situações. É por essa característica que a prisão cautelar deve guardar íntima relação com o crime em discussão no processo, sendo impossível que seja mais onerosa ao réu do que seria a conseqüência definitiva.
Decorre dessa característica sua homogeneidade em relação ao restante do processo, devendo ser proporcional ao resultado final pretendido. Daí porque muitos entendem que crimes cuja pena não é grave, considerados de médio potencial ofensivo, em que se admite a suspensão condicional do processo, não se aplica a prisão cautelar.
A doutrina também relaciona como característica da prisão processual a "instrumentalidade hipotética", servindo como meio para atingir a medida principal.
Imperativo destacar sua provisoriedade, já que dura enquanto não proferida a medida principal e na constância dos requisitos que a autorizam.
Além das características, relaciona-se às prisões cautelares pressupostos estipulados pela legislação penal, a saber, fumus boni iuris e periculum in mora. Esses são pressupostos a qualquer medida provisória ou de urgência a ser tomada no processo e que somente podem se dar enquanto esses permanecerem.
O periculum in mora, noção bem trabalhada no direito processual brasileiro, traduz a urgência e necessidade que premeria o processo no sentido de que a delonga na prestação jurisdicional causaria sua ineficácia. Assim também a noção de fumus boni juris, que significa a situação de meridiana clareza do direito evocado à aplicação no caso concreto.
Mais consoante os propósitos do processo penal seria a adequação desses requisitos, oriundos de uma teoria geral do processo, ao direito material tutelado e as situações a ele inerentes. Nessa lógica, óbvia seria a adaptação dos pressupostos à nomenclatura fumus comissi delicti e periculum libertatis, as quais, longe dos preciosismos terminológicos, denotam grande adaptação dos pressupostos das medidas cautelares ao processo penal. [02]
O chamado periculum libertatis seria caracterizado pelo real perigo que consiste a liberdade do réu para a sociedade, no simples fato deste não estar sob custódia. Diferentemente da noção do periculum in mora, não seria a demora na prestação jurisdicional a ensejar a prisão, mas o efetivo e verificável perigo que o réu representa para a sociedade. Da mesma forma, o chamado fumus comissi delicti somente é verificado quando o cometimento do delito for suficientemente aferido nos autos, havendo alta probabilidade quanto à autoria, noção afastada da simples aplicação do bom direito.
Segundo a legislação processual penal são seis as espécies de prisão cautelar, conforme relação a seguir: a) prisão temporária; b) prisão em flagrante; c) prisão preventiva; d) prisão em decorrência de pronúncia; e) condução coercitiva do réu, vítima, testemunha ou outrem que se recuse injustificadamente a comparecer em juízo ou polícia; f) prisão em decorrência de sentença condenatória recorrível. [03]
Questão controvertida se direciona justamente a esse último tipo relacionado: a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível. Diverge-se quanto a sua natureza, sendo questão importante para a determinação de diversos institutos processuais e principalmente porque se trata do instrumento mais radical ao dispor do Estado em desfavor do cidadão, em sua forma menos cuidadosa porque mais urgente.
O tema desse trabalho é justamente a análise desse instituto jurídico no sentido de adequá-lo ao sistema de garantias constitucionais do processo penal, bem como às disposições do ordenamento em que se insere.
2. A Prisão como Efeito da Sentença Condenatória Recorrível: Impossibilidade de Caracterização como Medida Cautelar.
A doutrina tradicional expõe que a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível é instrumento de preservação dos desígnios da jurisdição penal e, portanto, de natureza cautelar. Trata-se do resultado da exegese dos dispositivos pertinentes da matéria no Código de Processo Penal.
O art. 393 enumera os efeitos da sentença penal condenatória, nestes termos:
Art. 393. São efeitos da sentença condenatória recorrível:
I – ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança;
II – ser o nome do réu lançado no rol dos culpados.
O referido inciso I atesta que advindo sentença condenatória, o réu será recolhido a prisão ou mantido nela em virtude desse provimento jurisdicional como atribuição inerente à condenação.
Nos termos do dispositivo mencionado, a prisão é efeito direto da sentença condenatória. Contudo, nos casos em que a apelação do réu tem efeito suspensivo, a ordem judicial não terá aplicação imediata e o condenado aguardará o julgamento de seu recurso em liberdade. [04]
Para entendimento sistemático da hipótese em que a sentença não terá eficácia imediata no caso do réu que permaneceu solto no curso do processo (art. 393, I, 1ª parte), faz-se necessária a análise conjunta deste dispositivo com o art. 594 do mesmo diploma, que traz a seguinte redação:
Art. 594. O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto.
Convém esclarecer que apesar do artigo falar em recolhimento à prisão para recorrer, esta conduta não é um pressuposto de admissibilidade recursal, isto é, o recurso não pode deixar de ser recebido e processado pela fuga do condenado. Tal assertiva decorre do fato de que o recurso advém do princípio da ampla defesa, direito fundamental garantido ao cidadão pela Constituição.
O fato de o réu ter impedido seu recolhimento à prisão impõe ao Estado o dever de captura, não a inadmissibilidade de seu recurso. [05]
Necessário, portanto, situar o art. 594 do CPP como dispositivo em que estão apresentados os requisitos para o efeito suspensivo da apelação, isto é, os casos em que o réu não será recolhido à prisão porque os efeitos da sentença condenatória estariam obstados.
Assim, se o réu for primário e tiver bons antecedentes, independentemente do crime ser afiançável, ou condenado por crime de que se livre solto, recorrerá em liberdade, não havendo prisão como efeito da sentença penal condenatória.
Caso o réu seja primário, porém com maus antecedentes, sua situação vai depender da natureza do crime: sendo afiançável, terá que prestar fiança para recorrer em liberdade; se for inafiançável o crime, será recolhido à prisão.
Por fim, no caso de réu reincidente, ele sempre será recolhido à prisão. Neste caso, a sentença condenatória é eficaz desde logo, produzindo seus efeitos imediatos, pois o recurso interposto não tem o condão de sustar sua eficácia.
Percebe-se, então, que os requisitos do art. 594 do CPP para recorrer em liberdade (efeito suspensivo da apelação), referem-se apenas ao réu que estava solto, eis que o dispositivo menciona "recolher-se à prisão", ou seja, a hipótese é combinada apenas com a primeira parte do art. 393, I (ser o réu preso).
O entendimento de que o mencionado dispositivo aplica-se somente ao réu que esteve solto durante o curso do processo é amplamente majoritário na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. O réu que já estava preso não tem direito a recorrer em liberdade, ou seja, a hipótese do art. 393, I, segunda parte (conservado na prisão) tem aplicação imediata, sem o efeito suspensivo da apelação concedido pelo art. 594 do CPP. Em tal situação, a prisão passa a ser um efeito automático da sentença condenatória. [06]
Assim, o réu que sofreu prisão cautelar durante o curso do processo, permanecerá preso após a condenação, sem direito à aplicação do art. 594 do CPP. Contudo, o título da sua prisão não será mais cautelar (prisão preventiva, por flagrante, etc.), e sim, a própria sentença condenatória recorrível, já que não decorre de qualquer motivo específico que garanta o resultado útil do processo. Parte, simplesmente de uma presunção não absoluta, de que o réu deve ser preso quando pesa sobre ele um juízo de condenação fundado em cognição processual exaustiva.
Não se fala mais em manutenção de prisão cautelar originária, que cessa com a decisão, surgindo, então, uma nova modalidade de prisão, baseada num título diverso, qual seja, a sentença condenatória recorrível, eis que a prisão torna-se um de seus efeitos automáticos.
Diversos são os motivos para que se entenda dessa maneira.
Tal custódia não segue as características básicas referentes à prisão cautelar, isso porque esse instituto não se relaciona de qualquer forma com o resultado pretendido na ação penal condenatória. Ao contrário, é em si a própria pretensão punitiva, a pena decorrente do processo judicial.
De outro lado, tão pouco se relaciona com o fundamento de prevenir ulteriores agressões ao ordenamento jurídico e à paz social, não sendo dotado de preocupação com o perigo da demora. Prova disso, é que os requisitos firmados pelo art. 594 somente são verificados quando da prolação da sentença e da interposição do recurso, não sendo direcionáveis à verificação contínua da cautelaridade.
Ademais, os requisitos dessa ordem de prisão não se destinam a garantir o resultado útil do processo, representando acolhimento da pretensão punitiva, ou seja, medida de cunho essencialmente satisfativo.
Não se pode afirmar, tampouco, que seja medida provisória. A sentença de mérito é julgamento baseado em cognição exauriente que não comporta alterações de cunho probatório, não constituindo um meio de garantia e efetividade do processo, característica marcante da cautelaridade.
Em síntese, um instituto que baseia sua existência exclusivamente na sentença e na produção de seus efeitos, obstável pela interposição de recurso em determinadas condições, não pode ter o rótulo de cautelar nem produzir efeitos como tal.
Dessa forma, reconhecida a ausência das características fundamentais das prisões cautelares, impossível entender a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível como uma medida essencialmente acautelatória do processo, pois representa a imposição da pretensão punitiva estatal reconhecida na decisão de mérito.
3. A Prisão como Efeito da Sentença Condenatória Recorrível: Execução Provisória da Pena.
Desprovida das características da cautelaridade, é imperativo que o instituto da pena proveniente de sentença condenatória recorrível seja caracterizado como verdadeira execução provisória da pena.
A interpretação que daria ensejo a esse entendimento provém diretamente do sistema processual penal positivo brasileiro, conforme se verifica nos art. 393, I e 594 da codificação. Através desses dispositivos, resta claro que tal modalidade de prisão é efeito da sentença, tanto que essa é obstável pela interposição de recurso e considerando o perfil do condenado, jamais se reportando aos pressupostos ou características da medida de urgência.
O cárcere nesses termos não pode ter caráter cautelar porque a medida instrumental não pode prevalecer sobre a pena em si e as regras da execução. Melhor dizendo: na constância de sentença penal condenatória e atribuindo o ordenamento prisão dela decorrente como efeito direto, não é possível que subsista o fundamento da cautela, porque já é em si a própria pena que deve ser obedecida como conseqüência da prestação jurisdicional.
Afastando do instituto sua interpretação cautelar, qual seria, então, conforme o sistema jurídico vigente, a natureza jurídica dessa prisão decorrente de sentença condenatória?
A opção pela execução provisória da pena se impõe diante da análise do sistema legislativo penal vigente, especialmente os comandos configurados nos art. 393, I e 594, do Código de Processo Penal.
Não é apenas interpretando os artigos referentes ao efeito da sentença e dos recursos que se vislumbra a possibilidade de execução provisória. A análise do sistema como um todo permite, e mesmo direciona, a consideração da execução provisória no direito processual brasileiro. Afrânio Silva Jardim relaciona diversos argumentos baseados no sistema legal para afirmar a natureza de execução provisória da prisão decorrente de sentença condenatória. [07]
Com relação à sentença, dispõe o art. 669 que esta somente é executável após seu trânsito em julgado, comportando exceções. Dentre as exceções, o inciso I destaca a hipótese de a sentença condenatória sujeitar o réu à prisão, mesmo nos casos de crimes afiançáveis, enquanto não for prestada a fiança. Tal situação significa que o ordenamento já previa a possibilidade dessa execução provisória que se tenta visualizar.
Necessário se faz ressaltar que esse artigo não foi revogado pela lei de execuções penais, mais especificamente pelo art. 107, em que se condiciona a prisão à expedição de carta de guia, procedimento somente identificado nas execuções definitivas de sentença. O CPP sempre contou com dispositivo semelhante verificado na disposição do art. 674, o qual nunca foi confrontado com o 669, existindo espaço para a execução provisória numa compreensão sistemática da totalidade do ordenamento jurídico.
Além disso, a execução provisória em matéria penal é identificada no ordenamento jurídico, conforme se verifica principalmente em relação ao art. 637 do CPP. Neste, a lei não confere ao recurso extraordinário efeito de suspender os efeitos dos provimentos jurisdicionais já exarados. Mesmo inexistindo o trânsito em julgado de sentença penal, permite-se a execução provisória da pena nesse particular.
Uma vez que não há óbice quanto à existência da execução provisória em sede de recurso extraordinário, dispositivo algum veda a aplicação analógica também na fase de apelação. Ambos os recursos impedem o trânsito em julgado da sentença, mas possibilitam a prisão do condenado. O ordenamento continua a tratar a questão como relacionada ao efeito do recurso.
Certamente não se está a simplificar a questão ou mesmo negar a diferença entre a instância de cassação e a instância especial. O que se pretende com esse argumento é provar que a idéia de execução provisória não é estranha ao ordenamento jurídico brasileiro infraconstitucional. E ainda como, em certa medida, está a beneficiar os cidadãos.
Não fosse isso, a execução provisória seria depreendida também indiretamente por institutos do direito processual penal descritos na legislação como passíveis de conferir ao recurso de apelação efeito suspensivo.
O art. 597 designa as hipóteses em que a apelação terá efeito suspensivo, verificando como uma delas a suspensão condicional da pena. Como tal instituto somente é verificável na execução da sentença condenatória, ou seja, durante a imposição da pena, é de se reconhecer mais essa evidência da admissão da execução provisória como solução do sistema para a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível.
Questão que poderia ser apresentada pelos opositores dessa tese seria referente à fiança como forma de atribuir o efeito suspensivo ao recurso, sendo caracterizada como espécie do gênero contracautela. Se fosse atribuída tal natureza jurídica à fiança, estaria caracterizada a condição cautelar da prisão decorrente da sentença condenatória recorrível. Esse engano não deve ser levado adiante.
Uma vez que a prisão não é cautelar, conforme demonstrado, impossível que o instituto decorrente tenha natureza de contracautela. Melhor seria entender como possibilidade do réu em adiar a execução penal prevista em crimes certos e determinados, já que é esse seu principal efeito.
Jamais poderia ser considerada como caução, pois o bem jurídico que seria admitido como tal não seria equivalente àquele objeto da pena. A caução seria inidônea para garantir o bem jurídico, inútil para afirmação de seus propósitos.
Indubitável, dessa maneira, a inexistência da natureza de contracautela para a fiança, nem de cautela para a prisão decorrente de sentença condenatória.
Todas essas verificações tornam muito difícil que seja afastada a natureza jurídica da execução provisória para a referida prisão. Afastado o rótulo da cautela, e associando-a aos efeitos da sentença e dos recursos, parece que o sistema legal aponta a execução provisória única alternativa viável para o tipo de prisão em questão.