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Aplicação do princípio pas de nullité sans grief no Processo Penal

O artigo cuida da aplicação do princípio pas de nullité sans grief no Processo Penal.

De acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça a decretação da nulidade de ato processual requer prova inequívoca do prejuízo suportado pela parte, em face do princípio pas de nullité sans grief, previsto no art. 563 do Código de Processo Penal. - Jurisprudência em teses edição nº 69

Essa diretriz foi adotada no seguinte julgado:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. ALEGAÇÃO DE NULIDADES. SORTEIO DOS JURADOS. PUBLICIDADE DA LISTA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. PRINCÍPIO PAS DE NULLITÉ SANS GRIEF. NULIDADES NÃO RECONHECIDAS. RECURSO IMPROVIDO.

1. A Lei Processual Penal em vigor adota, nas nulidades processuais, o princípio da pas de nullité sans grief, segundo o qual somente há de se declarar a nulidade se, alegada em tempo oportuno, houver demonstração ou comprovação de efetivo prejuízo para a parte.

2. Não há falar em nulidade decorrente do sorteio dos jurados e da publicidade da lista do Tribunal do Júri, considerando-se que o sorteio dos jurados foi acompanhado pelas instituições competentes e que a defesa teve condições de examinar impedimento e suspeição dos jurados, inexistindo, portanto, demonstração do prejuízo advindo das alegações.

3. Agravo regimental improvido.

(AgRg no HC 542.734/MG, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 05/03/2020, DJe 10/03/2020)

As normas sobre nulidades do processo penal formam um sistema instrumental destinado ao condicionamento da pratica de atos processuais ajustados aos parâmetros legais e constitucionais.

Considerado a amplitude do vício, as nulidades podem ser classificadas como absolutas ou relativas.

Nulidade absoluta

A nulidade absoluta decorre do atentado ao interesse público processual.

O ato absolutamente nulo, que viola o interesse público, merece rigorosa censura processual. Assim, as nulidades absolutas podem ser reconhecidas de ofício pelo juízo ou tribunal, ou seja, independentemente da alegação das partes.

Essa nulidade poderá ser reconhecida até em grau de recurso, como regra.

O reconhecimento da nulidade absoluta por tribunal, contudo, deve ser limitado pelas orientações protetivas do acusado, principalmente pela proibição de reforma desfavorável.

A jurisprudência vem se posicionando no sentido de que os tribunais não podem reconhecer nulidade absoluta desfavorável ao acusado, alegada no recurso da acusação, sob pena de afronta ao princípio non reformatio in pejus.

A propósito, o enunciado nº 160 da súmula da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal reconhece ser nula a decisão do Tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não argüida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício.

Características essenciais da nulidade absoluta (presunção de prejuízo, reconhecimento de ofício e possibilidade de arguição a qualquer tempo)

A nulidade absoluta tem três características essenciais, a presunção de prejuízo, a possibilidade de ser reconhecida de ofício e a admissibilidade da alegação a qualquer tempo.

Com relação à primeira característica, é importante lembrar que o art. 563 do Código de Processo Penal prevê que nenhum ato será declarado nulo se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa. Essa previsão reafirma o princípio pas des nullités sans grief[1], cuja orientação é de que só poderá haver o reconhecimento da invalidade de atos cujas nulidades causem efetivos prejuízos às partes.[2]

Nos casos das nulidades absolutas há uma presunção relativa de que causam prejuízo.[3] Assim, compete a parte interessada na validade do ato nulo demonstrar que a nulidade, ainda que absoluta, não gerou prejuízos.

As nulidades absolutas também poderão ser reconhecidas de ofício, pelo juízo ou tribunal, a qualquer tempo durante o processo, resguardadas as limitações de reforma em prejuízo dos acusados, como assinalado acima.

Além disso, as partes poderão pretender o reconhecimento da nulidade absoluta a qualquer tempo. Essa possibilidade decorre do fato de eu a nulidade absoluta não pode ser neutralizada pela preclusão temporal ou pela preclusão lógica. Em outros termos, ela não se convalida pelo transcurso do tempo nem admite que as partes aceitem os seus efeitos.

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É preciso ressalvar a hipótese da sentença penal absolutória própria, cujos efeitos convalidam até mesmo as nulidades de caráter absoluto. O convalescimento das nulidades absolutas, nesses casos, decorre da inadmissibilidade de revisão criminal em desfavor do réu.

Nos casos de sentenças condenatórias ou absolutórias impróprias, naturalmente, a nulidade absoluta poderá ser arguida até mesmo após o trânsito em julgado, seja através de habeas corpus, revisão criminal ou instrumento equivalente.

Nulidade relativa

A nulidade relativa ocorre quando o ato é praticado em desconformidade com normas infraconstitucionais, sem atentar contra o interesse público.[4] Os atos relativamente nulos, de maneira abrangente, desafiam os interesses das partes.  As nulidades relativas poderão ser sanadas e os atos convalidados, se presentes alguns pressupostos legais.

Características fundamentais da nulidade relativa.

As nulidades relativas possuem três características fundamentais, não são presumidamente prejudiciais, podem ser reconhecidas de ofício e precisam ser alegadas oportunamente pelas partes, sob pena de preclusão.[5]

Inicialmente, é relevante destacar que as nulidades relativas não ensejam presunção de prejuízo. Ou seja, há uma presunção relativa de que essas nulidades não são capazes de gerar prejuízo para as partes. Assim, a parte interessada no reconhecimento da invalidade deverá demonstrar que o ato relativamente nulo, no caso específico, produziu prejuízo.[6]

As nulidades relativas podem ser reconhecidas de ofício pelo juiz. Entretanto, devem ser arguidas em momento oportuno pelas partes, nos termos do art. 571 do Código de Processo Penal, sob pena de preclusão temporal.

Além da preclusão temporal a nulidade relativa pode ser sanada pela preclusão logica, quando as partes aceitam os seus efeitos.

 Se o ato relativamente nulo, praticado por forma distinta, atingir o fim almejado pela norma, também haverá superação da nulidade relativa.

Serão relativas as nulidades que decorram da ausência da intervenção do Ministério Público em todos os termos da ação por ele intentada e nos da intentada pela parte ofendida, quando se tratar de crime de ação pública

Também haverá nulidade relativa caso não haja concessão de prazos para as partes.

A falta de intimação do réu para a sessão de julgamento, pelo Tribunal do Júri, quando a lei não permitir o julgamento à revelia, também é causa de nulidade relativa.

De modo geral, haverá nulidade relativa sempre que houver omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato praticado.[7]

Outros limites para a arguição e reconhecimento das nulidades

As nulidades só podem ser alegadas pela parte que possa ter interesse no seu reconhecimento. Assim, a parte não poderá pretender o reconhecimento de nulidade pelo descumprimento de uma formalidade que só interessaria à parte contrária.

Também não se admite que a parte pretenda o reconhecimento da nulidade de um ato praticado por ela mesma, ou seja a parte não pode arguir uma nulidade causada por ela própria.

Ainda é relevante destacar que, conforme indicado no art. 566 do Código de Processo Penal, não será declarada a nulidade de ato processual que não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa. Essa disposição segue a orientação de que só será possível reconhecer a nulidade que causar prejuízos.

Referências

ALVES, Leonardo Barreto Moreira. Processo Penal parte especial, 7ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 325.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Boletim do IBCCrim n. 223, São Paulo, jun. de 2011.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza”, de Francesco Carnelutti. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil. Vol. 3. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria da garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

KHALED JUNIOR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único I, 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

LOPES JUNIOR, Aury. Prisões Cautelares. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

PACELLI, Eugenio. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência, 9ª ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2017. PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal, 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2017.

TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

 


[1] “A interpretação dos tópicos que tratam de nulidades está centrada no denominado princípio (para alguns um sistema, dentro do qual estariam outros princípios) da instrumentalidade das formas, que, ao menos para nós, nada mais é do que a consagração da já conhecida parametrização trazida pelo princípio pas de nullité sans grief, o qual, por sua vez, é o comando fulcral do artigo de abertura do presente tópico. Em síntese, não há de se declarar nulidade de determinados atos se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação e para a defesa. Impende registrar, porque nos parece pouco enfatizado na doutrina e jurisprudência pátrias: a declaração de nulidade do ato não aproveita unicamente à defesa, mas também à acusação. Repise-se a razão de ser de tal normativo: na aplicação dos institutos processuais previstos pela legislação, há de se manter a paridade de armas, devendo-se declarar a nulidade, sejam elas absolutas ou relativas, embora, como adiante visto, reclamem interpretações um pouco diversas, notadamente quanto a seus efeitos.” PACELLI, Eugenio. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência, 9ª ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2017, p. 807.

[2] “ No cenário das nulidades, atua o princípio geral de que, inexistindo prejuízo, não se proclama a nulidade do ato processual, embora produzido em desacordo com as formalidades legais (pas de nullité sans grief). Vale ressaltar que, de tanto se decretar nulidades, surgiu o brocardo “mais vale um mau acordo do que uma boa demanda”. Anote-se o ensinamento de Borges da Rosa: “quando ditos litigantes conseguiam, afinal, ver vitoriosas as suas pretensões e reconhecidos os seus direitos, a vitória lhes tinha custado tão cara que as despesas, as delongas e os incômodos do processo anulavam as vantagens do ganho da causa. Em geral, tais despesas excessivas, delongas e incômodos provinham, principalmente, de frequentes decretações de nulidade de parte ou de todo o processo. Estas, mais do que outras causas de origem diversa, deram nascença ao conselho da sabedoria prática: ‘mais vale um mau acordo do que uma boa demanda’. As frequentes decretações de nulidade, em consequência de não terem sido seguidas, ao pé da letra da lei, as formalidades, quer substanciais, quer secundárias, por elas prescritas, para a regularidade dos atos forenses, tornavam os processos morosos, complicados e caros.” NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado, 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 874.

[3] “É assim que o art. 563, CPP, ao deixar explicitado que "nenhum ato será declarado nulo se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa: estampa o vetusto princípio pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo). O reconhecimento judicial de nulidade dependerá de demonstração do prejuízo, decorrendo também desse enunciado normativo o que se convencionou denominar de princípio da conservação dos atos processuais. Deve-se observar o atual posicionamento do STF e STJ no sentido de que a necessidade de demonstração de prejuízo se faz presente mesmo em se tratando de nulidade absoluta.“ TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 1504.

 

[4] “As nulidades relativas contêm vício menos grave, pois violam regras meramente processuais, daí porque devem ser arguidas pelas partes no momento oportuno, não podem ser reconhecidas de ofício pelo juiz, precluem, convalidam e dependem da demonstração do prejuízo.” ALVES, Leonardo Barreto Moreira. Processo Penal parte especial, 7ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 325.

[5] “Nulidade relativa. Essa é a fatura mais alta que a TGP cobra do processo penal: acabaram com a teoria das nulidades pela importação do pomposo pas nullité sans grief. Tão pomposo quanto inadequado e danoso. Iniciemos por um princípio básico – desconhecido pela TGP, por elementar: forma é garantia. O ritual judiciário está constituído, essencialmente, por discursos e, no sistema acusatório, forma é garantia, pois processo penal é exercício de poder e todo poder tende a ser autoritário. Violou a forma? Como regra, violou uma garantia do cidadão. E o tal “prejuízo”? É uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado, que vai encontrar referencial naquilo que quiser o juiz (autoritarismo-decisionismo-espaços impróprios de discricionariedade, conforme Lenio Streck). Como dito, no processo penal existe exercício condicionado e limitado de poder, sob pena de autoritarismo E esse limite vem dado pela “forma”. Portanto, flexibilizar a forma é abrir a porta para que os agentes estatais exerçam o poder sem limite, em franco detrimento dos espaços de liberdade. É rasgar o princípio da legalidade e toda a teoria da tipicidade dos atos processuais. É rasgar a Constituição. Por culpa da TGP, está chancelado o vale-tudo processual. O decisionismo se legitima na TGP. Eu-tribunal anulo o que eu quiser, quando eu quiser. E viva a teoria geral do processo!”LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 84.

[6] “O princípio pas des nullités sans grief- corolário da natureza instrumental do processo (CPP, art. 563: "Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa.") - impede a declaração da nulidade se não demonstrado o prejuízo concreto à parte que suscita o vício. Em se tratando de nulidade absoluta, geralmente violadora de norma protetiva de interesse público com status constitucional (v.g., devido processo legal, ampla defesa, contraditório), grande parte da doutrina êntende que o prejuízo é presumido.”LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único I, 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 1586.

 

[7] Súmula 155 do Supremo Tribunal Federal: É relativa a nulidade do processo criminal por falta de intimação da expedição de precatória para inquirição de testemunha; Súmula 273 do Superior Tribunal de Justiça:  Intimada a defesa da expedição da carta precatória, torna-se desnecessária intimação da data da audiência no juízo deprecado.

 

Sobre os autores
Antonio Evangelista de Souza Netto

Juiz de Direito de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Pós-doutor em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutor em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2014). Mestre em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2008). Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM. Professor da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo - EMES. Professor da Escola da Magistratura do TJ/PR - EMAP.

Jeffrey Chiquini

Coautor: Jeffrey Chiquini. Advogado criminalista. Especialista em direito penal e processual penal. Professor de processo penal da Escola da Magistratura Federal do Paraná.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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