UMA HIPÓTESE DE APLICAÇÃO DA LEI DE SEGURANÇA NACIONAL
Rogério Tadeu Romano
I – A LEI DE SEGURANÇA NACIONAL
A Lei 7.170/83, mais conhecida como Lei de Segurança Nacional, foi promulgada pelo regime militar em 1983, com a justificativa de definir crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social. Portanto, um texto legal criado num regime de exceção, com o objetivo maior de proteger a ditadura que se instalou no país. Porém, essa norma não foi revogada e ainda se encontra em pleno vigor. Analisando seu conteúdo à luz de um Estado democrático de Direito, constitui-se certamente um entulho autoritário que permanece até nossos dias, embora, ao que parece, vinha sendo um tanto esquecida.
É certo que a lei de segurança nacional é plena de enunciados vazios, abertos, que podem levar à sua não efetividade.
A característica mais saliente e significativa da lei de segurança nacional é a do abandono da doutrina da segurança nacional.
Como vem se lê do FGV/CPDOC, a Lei de Segurança Nacional em vigor é a Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983. Essa lei define os crimes contra a segurança nacional e estabelece regras para o seu processo e julgamento. A lei vigente revogou a Lei n° 6.620, de 17 de dezembro de 1978, que havia substituído o draconiano Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1969, que, por sua vez, havia revogado o Decreto-Lei n° 314, de 13 de março de 1967, primeira Lei de Segurança Nacional do regime militar que se iniciou em 1964.
A expressão “segurança nacional” aparece no direito brasileiro com a Constituição Federal de 1934 que, no seu título VI, criou o Conselho Superior de Segurança Nacional (art. 159), com atribuições que se relacionavam com a defesa e a segurança do país. A partir daí, todas as constituições se referem ao Conselho de Segurança Nacional. Com a Constituição de 1967 introduziu-se a regra segundo a qual “toda pessoa natural ou jurídica é responsável pela segurança nacional, nos limites definidos em lei” (art. 89), regra essa mantida pela Constituição vigente (art. 86).
Os crimes contra a segurança interna são crimes contra o Estado de direito democrático. Falando em tese, as tiranias não têm inimigos ilegítimos. A segurança do Estado depende de múltiplos fatores, entre os quais, por exemplo, a pujança de sua economia e o preparo e coesão de suas forças armadas. Quando se fala em crime contra a segurança do Estado, no entanto, pretende-se punir somente as ações que se dirigem contra os interesses políticos da nação. Os crimes contra a segurança do Estado são os crimes políticos. Para que possa caracterizar-se o crime político é indispensável que a ofensa aos interesses da segurança do Estado se faça com particular fim de agir. É indispensável que o agente dirija sua ação com o propósito de atingir a segurança do Estado. Nos crimes contra a segurança interna, esse fim de agir é o propósito político-subversivo. O agente deve pretender, em última análise, atingir a estrutura política do poder legalmente constituído, para substituí-lo por meios ilegais. Pode-se dizer que o fim de agir é aqui um elemento essencial do desvalor da ação neste tipo de ilícito, sem o qual verdadeiramente não se pode atingir os interesses da segurança do Estado. A existência do fim de agir é uma indefectível marca de uma legislação liberal nessa matéria. Mas pode-se também dizer que essa exigência do fim de agir está na natureza das coisas. Não há ofensa aos interesses políticos da nação, se o agente não dirige sua ação deliberadamente para atingi-los.
Com a doutrina da segurança nacional pretendeu-se substituir a noção de crime contra a segurança do Estado por um outro esquema conceitual, que se refere a certas ações que atingem os objetivos nacionais. Segundo tal doutrina, entende-se por segurança nacional o grau relativo de garantia que, através da ação política, econômica, psicossocial e militar, o Estado proporciona à nação, para a consecução ou manutenção dos objetivos nacionais, a despeito dos antagonismos ou pressões, existentes ou potenciais. A garantia a que se alude é proporcionada pelo poder nacional, que se define como “expressão integrada dos meios de toda ordem de que efetivamente dispõe a nação numa determinada época”, exercendo-se através de ações políticas, econômicas, psicossociais e militares, para assegurar a consecução dos objetivos nacionais. A segurança nacional compreende a segurança interna, que “diz respeito aos antagonismos ou pressões” de qualquer origem, forma ou natureza, que se manifestem ou possam manifestar-se no âmbito interno do país”, e a segurança externa, que diz respeito aos antagonismos ou pressões de origem externa, surgidas no domínio das relações internacionais.
O conceito de segurança nacional tem por fulcro, como se percebe, a consecução dos objetivos nacionais, que compete ao Conselho de Segurança Nacional estabelecer (art. 89, I, Constituição Federal). Os objetivos nacionais são vagamente definidos como “cristalização dos interesses e aspirações nacionais em determinado estágio da evolução da comunidade, cuja conquista e preservação toda a nação procura realizar através dos meios de toda a ordem a seu alcance”. A lei vigente define como objetivos nacionais, especialmente, a soberania nacional, a integridade territorial, o regime representativo e democrático, a paz social, a prosperidade nacional e a harmonia internacional.
II – A AFRONTA A DEMOCRACIA E OS TIPOS PREVISTOS NA LEI DE SEGURANÇA NACIONAL PARA O CASO
Dito isso, observa-se que os acontecimentos maciçamente objeto de repercussão na imprensa envolvendo uma manifestação que pregava o AI-5, a ditadura militar, ações contra o Congresso Nacional e contra o Supremo Tribunal Federal, devem ser enquadrados na Lei de Segurança Nacional, uma vez que partem do objetivo de agredir a democracia brasileira.
A democracia é meio de convivência, despertar do diálogo, sensatez.
Lincoln dizia que a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo, como acentuado em célebre discurso 9 de Novembro de 1863 no Cemitério Militar de Gettysburg.
Disse Burdeau(Traitè de Science Politique, tomo V/57) que “se é verdade que não há democracia sem governo do povo, a questão importante está em saber o que é preciso entender por povo e como ele governa”.
Em verdade, a democracia é exercida direta e indiretamente pelo povo e em proveito do povo. Diz-se que é um processo de convivência, primeiramente, para denotar sua historicidade, depois para realçar que, além de ser uma relação de poder político e verificar-se o respeito e a tolerância entre os conviventes.
Mas é necessário ter o necessário cuidado para com a chamada “democracia de fachada”, dentro da construção de um poder discricionário, abusivo, para quem nada é obstáculo e tudo pode.
Como ensinou Chávez, a construção do poder discricionário demanda uma democracia de fachada, com eleições regulares e Parlamento em funcionamento, enquanto as estruturas democráticas vão sendo carcomidas. A imprensa livre é sufocada e a oposição é constrangida pela máquina de destruição de reputações. Já o Judiciário é tomado por governistas, transformando-se em pesadelo dos dissidentes do regime. Assim, estão dadas as condições para que a Constituição se torne letra morta.
Para o caso foi infringido o artigo 16 da LSN:
Art. 16 - Integrar ou manter associação, partido, comitê, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o emprego de grave ameaça. Pena: reclusão, de 1 a 5 anos.
Ademais, transcrevo os artigos 17, 18 e 22, I, da Lei de Segurança Nacional:
Art. 17 - Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito.
Pena: reclusão, de 3 a 15 anos.
Parágrafo único.- Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até a metade; se resulta morte, aumenta-se até o dobro.
Art. 18 - Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados.
Pena: reclusão, de 2 a 6 anos.
Art. 22 - Fazer, em público, propaganda:
I - de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social;
.....
São crimes formais, de perigo, em que se exige o dolo específico como elemento do tipo penal.
O objeto jurídico é a democracia no Brasil.
IV – A COMPETÊNCIA PARA INSTRUIR E JULGAR OS CRIMES
A Lei de Segurança Nacional estabeleceu a competência da Justiça Militar para julgar os crimes contra a segurança nacional. Contudo, após a promulgação da atual Constituição Federal, o art. 30 da Lei 7.170/83, que determinou esta competência, não foi recepcionado pela nova ordem constitucional, que substituiu a denominação "crimes contra a segurança nacional" para "crimes políticos", estabelecendo a competência da Justiça Militar (art. 124) apenas para os crimes militares definidos em lei, enquanto atribuiu à Justiça Federal a competência para processar e julgar o crime político (art. 109, inciso IV). Precedentes STF: RC nº 1.468/RJ e STJ: CC nº 21.735/MS.
Diante do novo ordenamento constitucional, cabe à Justiça Federal processar e julgar os crimes previstos na Lei de Segurança Nacional.
A matéria tem leading case no julgamento do Conflito de Competência 21.735, Relator Ministro José Dantas, DJ de 15 de junho de 1998, em que se entendeu que cabe à Justiça Federal e não a Justiça Estadual o processo e julgamento por crime contra a segurança nacional segundo a regra do artigo 109, IV, da Constituição Federal.
Aliás, o Superior Tribunal Militar, no julgamento do Conflito de Competência 2004.02.000316-1/DF, entendeu que a Lei de Segurança Nacional, em seus artigos 1º e 2º, adota, respectivamente, a teoria objetiva e subjetiva da proteção ao bem jurídico tutelado. Assim, todos os crimes descritos na Lei de Segurança Nacional são crimes políticos objetivamente considerados e devem ser processados e julgados perante a Justiça Federal, a teor do artigo 109, IV, da Constituição Federal.
Veja-se ainda:
CRIME POLÍTICO. COMPETÊNCIA. INTRODUÇAO, NO TERRITÓRIO NACIONAL, DE MUNIÇAO PRIVATIVA DAS FORÇAS ARMADAS, PRATICADO POR MILITAR DA RESERVA (ARTIGO 12 DA LSN). INEXISTÊNCIA DE MOTIVAÇAO POLÍTICA: CRIME COMUM. PRELIMINARES DE COMPETÊNCIA: 1ª) Os juízes federais são competentes para processar e julgar os crimes políticos e o Supremo Tribunal Federal para julgar os mesmos crimes em segundo grau de jurisdição (CF, artigos 109, IV , e 102, II, b), a despeito do que dispõem os artigos 23, IV, e 6º, III, c, do Regimento Interno, cujas disposições não mais estão previstas na Constituição. 2ª) Incompetência da Justiça Militar: a Carta de 1969 dava competência à Justiça Militar para julgar os crimes contra a segurança nacional (artigo 129 e seu 1º); entretanto, a Constituição de 1988, substituindo tal denominação pela de crime político, retirou-lhe esta competência (artigo 124 e seu par. único), outorgando-a à Justiça Federal (artigo 109, IV) . 3ª) Se o paciente foi julgado por crime político em primeira instância , esta Corte é competente para o exame da apelação, ainda que reconheça inaplicável a Lei de Segurança Nacional. MÉRITO: 1. Como a Constituição não define crime político, cabe ao intérprete fazê-lo diante do caso concreto e da lei vigente. 2. Só há crime político quando presentes os pressupostos do artigo 2º da Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/82), ao qual se integram os do artigo 1º: a materialidade da conduta deve lesar real ou potencialmente ou expor a perigo de lesão a soberania nacional, de forma que, ainda que a conduta esteja tipificada no artigo 12 da LSN, é preciso que se lhe agregue a motivação política. Precedentes. 3. Recurso conhecido e provido, em parte, por seis votos contra cinco, para, assentada a natureza comum do crime, anular a sentença e determinar que outra seja prolatada, observado o Código Penal. (RC nº 1.468/RJ, Relator o Ministro Ilmar Galvão, Tribunal Pleno, DJ de 16/8/2000)
Tem legitimidade ativa para o ajuizamento de ação penal pública incondicionada para tais casos o Ministério Público Federal, que poderá adotar medidas investigatórias e de iniciativa na persecução penal, em especial, com relação cerceamento desses atos, dentro dos limites legais.