Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Prescrição Virtual

Agenda 24/04/2020 às 16:00

Apanágio dos regimes democráticos, foi a liberdade de pensamento sempre exercitada pelos varões ilustres em saber e doutrina. Não admira pois que, na esfera dos cultores do Direito Penal, lavre geralmente variedade de opiniões.

Um entre infinitos exemplos, depara-nos o instituto da prescrição que, segundo ensina o mestre Damásio E. de Jesus, “é a perda da pretensão punitiva ou executória do Estado pelo decurso do tempo sem o seu exercício” (cf. Código Penal Anotado, 18a. ed., p. 349).

Em verdade, o tempo — devorador de todas as coisas (“edax rerum”) — apaga a memória do fato punível e torna escusado o castigo do delinquente.

Sobre este dogma do Direito há nas escolas penais unânime consenso: já ninguém ousa subestimar o fenômeno do decurso do tempo, causa e origem de relevantes efeitos na ordem jurídica.

Ainda: tão firme se acha esta convicção no espírito de muitos, que não falta quem, apoiado no argumento de que tudo faz esquecer o decurso do tempo, entre a reclamar se reconheçam desde logo os seus efeitos.

É o toque de rebate dos propugnadores da tese da prescrição virtual, dita igualmente antecipada ou em perspectiva, em que se põe a mira na pena que, em tese, lá para o diante, será aplicada ao réu.

O pórtico dos Tribunais, porém, não franqueou ainda entrada a esse arrojado expediente, suposto lhe note o louvável propósito de terçar pela economia e celeridade processuais.

Ao extinguir a punibilidade do réu debaixo do argumento da incoercível e fatal ocorrência da prescrição em perspectiva — atento o decurso de certo lapso de tempo até a prolação da sentença condenatória —, adiantou-se o magistrado no exame do mérito da causa, o que lhe era defeso: cumpria-lhe aguardar a completa instrução criminal, em ordem a formar seu juízo.

Pelo que, não será de bom conselho antecipar a análise do mérito, com o fito de prognosticar a ocorrência, ou não, da prescrição, que tanto implicará descaso pela obrigatoriedade da ação penal e violação grave da garantia primaz de todo o acusado: a oportunidade de comprovar sua inocência; fora também decidir por convicção íntima, não por livre convencimento mediante motivação lógica, princípio em que assenta a verdade jurídica apurável no devido processo legal.

Por este augusto padrão têm decidido nossas Cortes de Justiça:

“É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal” (Súmula nº 438 do STJ).

“Somente ocorre a prescrição regulada pela pena em concreto após o trânsito em julgado para a acusação, não havendo falar, por conseguinte, em prescrição em perspectiva, desconsiderada pela lei e repudiada pela jurisprudência” (STJ; Rev. Tribs., vol. 804, p. 519; rel. Min. Hamilton Carvalhido).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Esta é, por igual, a opinião de renomados penalistas, como Guilherme de Souza Nucci:

“A maioria da jurisprudência não aceita a chamada prescrição virtual, pois entende que o juiz estaria se baseando numa pena ainda não aplicada, portanto num indevido pré-julgamento, embora seja realidade que, muitas vezes, sabe-se, de antemão, que a ação penal está fadada ao fracasso”.

E, passos avante:

“(…), no Código Penal, não há amparo para tal modalidade de prescrição, embora o legislador devesse cuidar dela no futuro, prevendo-a de maneira expressa” (Código Penal Comentado, 5a. ed., p. 469).

Em suma: aqueles que, em pontos de prescrição, não hesitam em lançar a barra do arbítrio muito além do direito expresso (ou literal disposição do Código), a esses — conquanto se lhes não deva atenuar o entusiasmo com que porfiam pelas boas causas e úteis reformas — parece bem aguardem a promulgação de novo estatuto penal, que os favoreça e acolha de boa sombra.(*)


Nota

(*)       A tese da prescrição virtual (ou antecipada), que mereceu outrora sufrágios (bem que modestos), de presente perdeu todo o alcance e momento, por força da Súmula nº 438 do STJ — do teor seguinte: “É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal” — e de decisão do STF, que “reconheceu a existência de repercussão geral, reafirmou a jurisprudência da Corte acerca da inadmissibilidade da assim chamada prescrição em perspectiva e deu provimento ao recurso do Ministério Público” (RE nº 602.527-RS; Plenário; rel. Min. Cezar Peluso; 19.11.2009; v.u.).

Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!