1. Introdução
Dentre os diversos instrumentos de cooperação jurídica internacional previstos na legislação brasileira está a homologação de decisões estrangeiras, abrangendo tanto as sentenças quanto as demais decisões proferidas em processos internacionais.
O presente artigo visa apresentar os contornos normativos desse instituto e analisar três decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) que apreciaram a possibilidade de homologar sentenças estrangeiras de divórcio não-consensual.
2. Cenário normativo da homologação de decisões estrangeiras
Com a ampliação da globalização, há uma interação cada vez maior entre empresas e pessoas de diferentes países. Nesse cenário, é natural surgirem mais conflitos que, eventualmente, devem ser levados ao Poder Judiciário para que sejam solucionados.
Quando nem todas as pessoas envolvidas vivem e/ou atuam na mesma jurisdição, surge o problema de como garantir que as decisões judiciais proferidas em um país serão cumpridas em outro. Afinal, conforme ensina o princípio da soberania consagrado no Direito Internacional Público, o usual é que cada estado tenha jurisdição somente sobre seu próprio território.
Na definição de Nádia de Araújo, a cooperação jurídica internacional significa “em sentido amplo, o intercâmbio internacional para o cumprimento extraterritorial de medidas processuais provenientes do Judiciário de um Estado estrangeiro”.
No ordenamento jurídico brasileiro, essa cooperação pode ser através de diversos instrumentos como auxílio direto, cartas rogatórias e a homologação de decisão estrangeira. Tais institutos são disciplinados pelos arts. 26 a 41 e 960 a 965, todos do Código de Processo Civil (CPC) e pelos arts.14 a 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
No caso da homologação de decisão estrangeira, ocorreram mudanças significativas nas últimas duas décadas.
Historicamente, a competência para homologar sentenças estrangeiras no Brasil era do Supremo Tribunal Federal (STF). Desde a Constituição de 1934 havia essa previsão expressa nas Cartas Constitucionais brasileiras, o que foi mantido em 1988. Dolinger e Tibúrcio ressaltam que, em muitos países, essa competência é atribuída aos juízes de 1ª instância, como na Alemanha, França, Canadá, Suíça e Itália.
Entretanto, com a Emenda Constitucional 45/2004, essa competência passou a ser do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Essa alteração foi refletida no Regimento Interno do STJ em seus arts. 216-A a 216-X, acrescentados em 2014, uma vez que até então estava vigente a Resolução STJ 9/2005.
Registre-se que, como lembram Dolinger e Tibúrcio, até foi cogitada a hipótese de atribuir essa competência aos juízes federais de 1ª instância, porém houve uma preocupação com a quantidade de recursos possíveis até o trânsito em julgado da decisão caso o processo se iniciasse na 1ª instância. No fim, acabou prevalecendo que o processo de homologação da decisão ocorre no âmbito do STJ, mas o eventual processo de execução da decisão é feito na 1ª instância da Justiça Federal.
Outra mudança recente foi que o novo CPC de 2015 passou a admitir a homologação de decisões interlocutórias, bem como a concessão de exequatur para possibilitar, por meio de carga rogatória, a execução de decisão interlocutória estrangeira no Brasil, na forma dos arts. 40 e 960 do CPC.
Além disso, o CPC de 2015 positivou alguns entendimentos da jurisprudência do STF em matéria de homologação de decisão estrangeira.
O art. 961, § 1º, do CPC/2015 dispõe que “é passível de homologação a decisão judicial definitiva, bem como a decisão não judicial que, pela lei brasileira, teria natureza jurisdicional”. Isso já era um entendimento aplicado pelo STF frequentemente porque há diversas diferenças na organização do Poder Judiciário de cada país e nas competências atribuídas a esses órgãos.
Por exemplo, tal situação ocorre com os divórcios decretados por prefeitos no Japão e no Peru e os divórcios decretados pelo Rei ou por autoridades administrativas na Dinamarca. Com base nesse entendimento, essas decisões são homologadas no Brasil como se fossem uma decisão jurisdicional proferida pelo Poder Judiciário.
Tal entendimento também é aplicável nos Estados que não são laicos e que possuem Tribunais vinculados à sua religião. Isso será mais detalhado a seguir, na análise de decisões proferidas por Tribunais do Líbano e do Vaticano.
Outra incorporação da jurisprudência do STF está no art. 961, § 2º, do CPC/2015, que dispõe que “a decisão estrangeira poderá ser homologada parcialmente”. Pode-se citar como exemplo uma sentença de partilha de bens composta por diversos capítulos, sendo que alguns são considerados ofensivos à ordem pública e, por isso, não são homologados, enquanto outros capítulos não apresentam vícios e podem ser homologados no Brasil.
Cabe ressaltar que, nessa homologação, o STJ realiza mero juízo de delibação, ou seja, não há análise de mérito. Somente é verificado se todos os requisitos exigidos pelo CPC/2015 foram cumpridos, a saber:
Art. 963. Constituem requisitos indispensáveis à homologação da decisão:
I - ser proferida por autoridade competente;
II - ser precedida de citação regular, ainda que verificada a revelia;
III - ser eficaz no país em que foi proferida;
IV - não ofender a coisa julgada brasileira;
V - estar acompanhada de tradução oficial, salvo disposição que a dispense prevista em tratado;
VI - não conter manifesta ofensa à ordem pública.
Observa-se que é admitida a homologação de decisões em que tenha ocorrido a revelia durante o processo. Esse entendimento também é uma positivação da jurisprudência do STF. Impende registrar que, tradicionalmente, o STF exigia que o único modo de citar réu no Brasil era por via de carta rogatória. Todavia, cada sistema jurídico tem seus modos de citação e isso deve ser levado em consideração.
No mais, percebe-se que os dois requisitos mais importantes para decidir se uma decisão será ou não homologada no Brasil é a existência de citação regular e a ausência de ofensa à ordem pública. Cabe destacar que o STJ ainda acrescentou como requisitos a ausência de ofensa à soberania nacional e à dignidade da pessoa humana, nos termos do art. 216-F do RISTJ.
Destaca-se que essa ordem pública parte do referencial do próprio Brasil. Assim, uma decisão estrangeira pode ser considerada válida e justa para o país que a proferiu, mas pode ter sua homologação negada por o STJ entender que viola a ordem pública brasileira.
3. Análise de jurisprudência selecionada
Na sentença estrangeira contestada (SEC) nº 10.154-EX, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisou a homologação da sentença estrangeira de divórcio de dois libaneses que se casaram no Líbano na década de 1980 e se mudaram para o Brasil, onde tiveram seus filhos e viveram por cerca de trinta anos seguidos. O marido requereu o divórcio no Tribunal Religioso Islâmico Sunita de Hasbaya, no Líbano, que citou a esposa por publicação de edital em jornal de grande circulação naquele país. Ato contínuo, houve a decretação do divórcio e a divisão dos bens do casal, que se localizavam na totalidade em solo brasileiro.
No processo de homologação dessa sentença estrangeira no STJ, a defesa da ex-esposa alegou que ela nem sabia da existência do processo de divórcio e que essa homologação representaria uma violação à soberania do país. Por sua vez, o ex-marido afirmou que não seria necessário exigir a citação por carta rogatória porque seria um “formalismo exacerbado, em detrimento do princípio da instrumentalidade das formas” (página 1 do relatório do acórdão da SEC nº 10.154-EX).
A decisão do STJ foi no sentido de indeferir o pedido de reconhecimento da sentença por entender que a citação feita não foi válida, uma vez que o endereço da esposa era conhecido, e que era uma ofensa à ordem pública o fato do marido ingressar com essa ação no Líbano, já que por todo o tempo do casamento viveu e trabalhou no Brasil.
Nesse caso observa-se que a falta do devido processo legal na produção da decisão libanesa implicou no seu não reconhecimento pelo STJ, pois não houve respeito ao contraditório e à ampla defesa. O trâmite correto teria sido a citação da parte por carta rogatória, para que tivesse oportunidade de conhecer do processo e de se manifestar. Dito de outra forma, a citação foi meramente formal e não possibilitou o exercício de contraditório substancial pela esposa no processo judicial libanês.
Além disso, faz-se mister destacar que, mesmo se a citação tivesse sido feita de forma válida, essa decisão poderia não ser reconhecida. Apesar das partes serem nacionais do Líbano, o STJ considerou uma violação à ordem pública essa escolha de foro estrangeiro quando claramente o brasileiro é o mais próximo atualmente das partes, que vivem e trabalham no Brasil há décadas. Tal conduta poderia ser enquadrada em uso abusivo do forum shopping e, se a Justiça libanesa adotasse o princípio do forum non conveniens, poderia ter declinado a competência para essa ação de divórcio. Contudo, isso não ocorreu e, à Justiça Brasileira, restou somente a alternativa de constatar a violação à ordem pública que a homologação dessa decisão implicaria.
Aqui se vê a ordem pública sendo utilizada como filtro que impede o reconhecimento de decisões estrangeiras que contrariem os valores caros para a sociedade brasileira mesmo nos casos que envolvam partes sem nacionalidade brasileira, mas que escolheram o Brasil como lugar para viver e construir sua família ao longo das décadas.
Com relação à citação por edital, entretanto, em outras decisões o STJ já atestou sua validade e reconheceu as respectivas decisões estrangeiras, desde que, comprovadamente, a parte se encontrara em lugar incerto e não sabido. Por exemplo, foi o que ocorreu na SEC nº 5.709-US, em que o ex-marido solicitou a homologação de sentença americana que decretou divórcio por abandono do lar. Como a então esposa não foi encontrada nos EUA, a citação foi feita por publicações em jornais oficiais no estado de Nova York. Registre-se que ambos são brasileiros e se casaram no Brasil, não tendo filhos nem bens a partilhar.
No processo de homologação, a parte novamente não foi encontrada e foi citada por edital, nos termos exigidos pela legislação processual brasileira. Na ocasião, a Defensoria Pública, atuando como curadora especial, contestou, argumentando que seria inadmissível a citação por edital nesse caso, já que não haveria demonstração de busca suficiente para localizar a parte. O STJ não acolheu as alegações da Defensoria, sustentando que tanto a citação feita no processo americano, por meio de jornais locais, quanto a citação feita no processo de homologação, por edital, foram válidas.
Deste modo, observa-se que a ausência de comparecimento da parte no processo estrangeiro não é um impeditivo absoluto da homologação da respectiva sentença. Assim como no Brasil o ordenamento jurídico permite que o processo civil prossiga mesmo se o réu não for encontrado, o STJ admite que tal situação ocorra nos processos estrangeiros. Pela comparação entre os dois acórdãos mencionados, infere-se que, na visão do STJ, a ausência de citação pessoal somente configura uma violação da ampla defesa e do contraditório substancial quando a parte podia ser localizada pelo autor da ação.
O último ponto que deve ser assinalado quanto ao primeiro caso é que o STJ em nenhum momento se negou a reconhecer a decisão libanesa por ser proveniente de um tribunal religioso. Isso porque o Líbano não é um Estado laico. Ademais, ainda que esse tribunal não tivesse caráter judicial, seria possível a homologação porque a legislação vigente, em especial o § 1º do art. 216-A do Regimento Interno do STJ, autoriza expressamente a homologação de provimentos não judiciais que, pela lei brasileira, tiverem natureza de sentença.
Outro exemplo de acórdão que espelhou esse entendimento foi o referente à SEC nº 11.962-EX, que tratava da homologação de decisão de anulação de casamento proferida pelo Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, no Vaticano. A parte requerida contestou o pedido de homologação alegando tanto a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que equiparam decisões eclesiásticas, de natureza administrativa, a decisões jurisdicionais, quanto a impossibilidade jurídica do Poder Judiciário Brasileiro homologar decisões eclesiásticas. A parte ainda apontou que haveria violação à soberania nacional no ato do Brasil, Estado laico, reconhecer decisões religiosas.
O STJ afastou todas essas alegações, argumentado, entre outros aspectos, que o Código de Direito Canônico assegura plenamente o direito de defesa e os princípios da igualdade e do contraditório, além do duplo grau de jurisdição para casos de anulação de matrimônio. Novamente se verifica a importância que o respeito ao devido processo legal no processo estrangeiro assume na análise feita pela Corte da Cidadania acerca da existência de violação à ordem pública nas decisões submetidas à sua homologação.
Cabe registrar, também, que nesse caso havia uma ação em andamento na justiça brasileira para a conversão de separação judicial em divórcio, porém isso não impediu a homologação da sentença estrangeira anulando o casamento. Como nenhum Estado tem soberania sobre outro, não é possível aplicar o conceito de litispendência plenamente e paralisar eventual processo em tramitação em outra jurisdição. O novo Código de Processo Civil (CPC), Lei 13.105/2015, traz esse entendimento expresso no seu art. 24, assim como já havia no art. 90 do antigo CPC, Lei 5.869/1973.
4. Conclusão
Diante do exposto, conclui-se que um dos principais aspectos analisados pelo STJ nos processos de homologação de decisões estrangeiras é se houve citação válida, um dos requisitos do devido processo legal, por possibilitar o exercício da ampla defesa e do contraditório substancial. Caso seja verificado que isso não ocorreu, o pedido pode ser indeferido sob a justificativa de violação da ordem pública.
5. Referências bibliográficas
ARAÚJO, Nádia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 1. ed. Porto Alegre: Revolução eBook. 2016.
BASSO, Maristela. Curso de direito internacional privado. 5ª. ed. São Paulo: Atlas. 2016.
DOLINGER, Jacob. TIBURCIO, Carmem. Direito internacional privado. 14ª. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2018.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Sentença estrangeira contestada (SEC) nº 5.709-US (2011/0157644-7) (f). Acórdão julgado em 17/5/2012. Ministro Relator Arnaldo Esteves Lima.
__________. SEC nº 10.154-EX (2013/0387211-3). Acórdão julgado em 1º/7/2014. Ministra Relatora Laurita Vaz.
__________. SEC nº 11.962-EX (2014/0121085-1). Acórdão julgado em 4/11/2015. Ministro Relator Felix Fischer.