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A ilegalidade da Súmula 51 do TJ/SC

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Agenda 30/04/2020 às 21:43

A Súmula nº 51 do TJ/SC restringe a gratuidade de justiça, cerceando direitos processuais.

Resumo: O objetivo do presente trabalho é demonstrar a ilegalidade da Súmula nº 51 do TJ/SC, a qual, em oposição às inovações proporcionadas pelo Código de Processo Civil, apregoa uma concepção unitária da gratuidade de justiça, a partir da qual se condensa, de forma irrefletida, o amplo espectro de despesas insurgentes no processo. Sob tal concepção, o Enunciado caracteriza o recolhimento do preparo como ato incompatível com o pedido recursal ao benefício, obstando o conhecimento do recurso e, por conseguinte, cerceando o direito de isonomia processual do litigante que, embora não satisfaça os já ultrapassados critérios de miserabilidade e pobreza, entende-se incapaz em arcar com o amplo leque de despesas processuais supervenientes. A Súmula da Corte catarinense nega, assim, eficácia à sofisticação proporcionada pela legislação processual vigente, a qual, por meio da previsão à concessão seletiva, percentual ou parcelada (§§5º e 6º do art. 98), confere à gratuidade de justiça atributos de delimitação e fracionamento, os quais permitem um melhor regramento do benefício à luz das especificidades do caso concreto.

Palavras-chave: Súmula nº 51 do TJ/SC. Gratuidade de justiça. Custas processuais. Precedentes vinculantes.


INTRODUÇÃO

O já não tão novo Código de Processo Civil (CPC) introduz no ordenamento jurídico brasileiro um sistema de precedentes vinculantes1, por meio do qual o entendimento cristalizado por um órgão colegiado deve ser obrigatoriamente observado pelos magistrados a ele submetidos2.

Embora produza inegáveis reflexos de ordem material, a opção legislativa incorporada pelos arts. 926. e seguintes do CPC versa, como característico das normas essencialmente processuais, sobre a gestão do modus operandi da máquina jurisdicional – escolha de ordem gerencial que reúne entusiastas e opositores. Se, por um lado, o sistema de precedentes vinculantes visa garantir às partes os direitos à segurança jurídica, tratamento isonômico e celeridade processual (PUGLIESE, 2011, pp. 58-69), por outro, as críticas ao modelo centram-se na supressão da autonomia dos Juízes singulares e possível violação à tripartição de Poder (GORAIEB, 2016, pp. 12-14).

Neste último ponto, sem pretensões de desqualificar a benéfica contribuição do modelo ao ordenamento jurídico pátrio, salienta-se que, para além dos eventuais vícios formais de normas emanadas pelo Judiciário, os enunciados vinculantes apresentam problemática intrinsicamente atrelada à atividade judicante – e ainda pouco realçada pela doutrina – qual seja, a de um mesmo instituto jurídico ver-se regido de formas distintas por normas legislativas e por normas insertas em precedentes dotados de força vinculante.

Esta particular reticência quanto ao sistema de precedentes vinculantes introduzido pelo CPC motivou uma análise mais detida quanto à regência do instituto da gratuidade de justiça proposta pela Súmula nº 51 do TJ/SC, publicada pelo respectivo Órgão Especial em 17.04.2019, e à possível ilegalidade do Enunciado por afronta a dispositivos legais consagrados pelo Código de Processo Civil. Confira-se o teor do Enunciado:

Súmula nº 51 TJ/SC: O pedido de justiça gratuita seguido do pagamento do preparo pelo recorrente é considerado ato incompatível com o interesse de recorrer, impossibilitando o conhecimento do recurso no ponto.

À primeira leitura, é fácil constatar o intento da Corte catarinense em privilegiar os princípios da celeridade processual e primazia ao mérito, alçados pelo art. 4º3 ao patamar de normas fundamentais do processo civil. Assim, constatado o recolhimento do preparo, supera-se a análise da preliminar recursal referente à gratuidade de justiça, uma vez que a manifestação de condições financeiras pelo recorrente violaria pressuposto de hipossuficiência essencial à concessão do benefício.

Todavia, ao se delimitar a análise à concepção conferida pelo Enunciado, dotado de força vinculante (art. 927, V4), ao instituto da gratuidade de justiça, despertam-se algumas inquietações. Ao preconizar que o recolhimento do preparo impossibilita o conhecimento e, por conseguinte, a concessão do benefício em sede recursal, verifica-se que a inteligência da Súmula compreende a gratuidade de justiça como um benefício unitário, indivisível, na medida em que a manifestação da capacidade em arcar com apenas um encargo processual autorizaria o julgador a concluir pela suficiência de recursos do recorrente em arcar com as outras inúmeras espécies, típicas e atípicas, de despesas judiciais.

Em contraposição à concepção unitária propagada pela Súmula nº 51 do TJ/SC, os §§5º e 6º do art. 98. prescrevem modalidades intermediárias de concessão do benefício, mais flexíveis às especificidades do caso concreto, possibilitando a alocação seletiva, percentual ou parcelada das despesas processuais. Assim, o Diploma Processual vigente confere à gratuidade de justiça atributos de delimitação e fracionamento:

§ 5º A gratuidade poderá ser concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais, ou consistir na redução percentual de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.

§ 6º Conforme o caso, o juiz poderá conceder direito ao parcelamento de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.

Para além da oposição entre as concepções propostas pela norma jurisdicional x norma legislativa, a saber, unicidade versus divisibilidade da gratuidade de justiça, uma breve reflexão acerca dos desdobramentos do Enunciado revela indícios de acentuada incoerência.

À luz da Súmula nº 51 do TJ/SC, o recolhimento do preparo, apenas um dos nove encargos exemplificativamente5 listados no art. 98, §1º, afastaria o interesse do recorrente em ver-se albergado das demais despesas processuais supervenientes, inclusive daquelas de maior monta, tais quais as decorrentes de: exames de código genético – DNA (art. 98, §1º, V); dos honorários sucumbenciais e periciais (art. 98, §1º, VI); de custos com memórias contábeis (art. 98, §1º, VII); e de emolumentos cartoriais (art. 98, §1º, IX).

Para além dos evidentes prejuízos ao jurisdicionados, a concepção unitária do benefício propagada pelo Enunciado indica ser igualmente prejudicial ao Estado-Juiz. Logrando êxito em demonstrar a insuficiência de recursos para o depósito requisito da ação rescisória (art. 968, §1º), cujo teto se estende a até 1.000 salários-mínimos, não se faz apropriado concluir pelo direito do beneficiário à isenção, por exemplo, das custas atreladas à eventual interposição de recurso especial, alçadas em aproximadamente 1/5 do salário-mínimo vigente6.

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Realçando o cerceamento de direitos e as incoerências proporcionados pelo Enunciado, o propósito do presente trabalho é demonstrar a ilegalidade da Súmula nº 51 do TJ/SC frente à legislação processual em vigor.

Para tal, far-se-á a delineação (i) do contexto e do padrão decisório que levaram à publicação do Enunciado; (ii) dos atributos de delimitação e fracionamento da gratuidade de justiça, consagrados pela previsão legislativa à concessão seletiva, percentual e parcelada do benefício (§§5º e 6º do art. 98); e (iii) das contraposições entre o precedente dotado de força vinculante e a legislação processual em vigor, cuja incompatibilidade importa na premente necessidade de revogação da Súmula nº 51 do TJ/SC.


1. Contexto e fundamentos para aprovação da Súmula nº 51 do TJ/SC

O Enunciado da Súmula nº 51 do TJ/SC replica o teor da Súmula nº 1 do Grupo de Câmaras de Direito Civil da Corte catarinense, aprovado no dia 13.02.20197 e prontamente replicado em julgados daquele Tribunal8. Após dois meses da aprovação pelo órgão fracionário, o Órgão Especial referendou, em 17.04.2019, o Enunciado da Súmula nº 51 da Corte.

Em uma análise restrita aos efeitos propostos pelo Enunciado, qual seja, o não conhecimento do pedido recursal à gratuidade quando constatado o recolhimento do preparo, conclui-se tratar de precedente representativo de uma jurisprudência eminentemente defensiva, esta compreendida como a interpretação extensiva de mecanismos processuais voltada à não apreciação da questão material controvertida9:

teorizando, podemos afirmar que a jurisprudência defensiva está consubstanciada num fenômeno processual pelo qual o tribunal investe em pronunciamento que não abarca a relação de direito material, com o propósito de finalizar o processo sob a justificativa de não haver sido preenchido algum requisito formal que por vez não impediria o justo julgamento da demanda, bem como, a recomposição do ato sem prejuízo para as partes. (BRIZOLA, 2016, p. 16)

Erigida barreira à apreciação fático-jurídica dos requisitos necessários à concessão da gratuidade de justiça em sede recursal, lançam-se duas hipóteses para compreender as razões que conduziram à cristalização de entendimento defensivo pela Corte catarinense: (i) circunstâncias internas, relacionadas ao número de processos, níveis de eficiência e despesas apresentados pelo Tribunal; e/ou (ii) circunstâncias externas, especificamente, a compatibilidade do teor da Súmula ao entendimento consolidado pelos demais Tribunais pátrios.

Sob a perspectiva interna, elegem-se os dados fornecidos pelo Relatório Justiça em Números 2019, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como instrumentos para aferir eventual causalidade entre a operabilidade do TJ/SC e a consolidação do Enunciado de jurisprudência defensiva.

Segundo o referido Relatório, o TJ/SC, um tribunal de médio porte, apresenta os seguintes destaques negativos quando comparado aos demais 26 Tribunais Estaduais:

Tabela 1 – Colocação do TJ/SC frente aos demais TJs

Critério de Avaliação

Colocação

Taxa de congestionamento total

IPC-Jus – Produtividade x Insumos (área judiciária)

20º

Casos novos por magistrado

Custo médio mensal por servidores e magistrados

Tempo médio: processos baixados em 1º grau e pendentes

Fonte: CNJ (2019)

Para fins de elucidação das grandezas descritas acima, tem-se que a taxa de congestionamento representa o número de processos sem solução versus processos em trâmite no ano10, sendo subdividida em total, líquida (na qual desconsideram-se processos suspensos, sobrestados ou em arquivo provisório), concernente a processos em fase de conhecimento, e feitos em fase de execução. Por sua vez, o Índice de Produtividade Comparada (IPC-Jus) correlaciona os índices de produtividade do Tribunal versus os respectivos insumos (número de processos, recursos humanos e recursos financeiros)11.

A análise ordinal revela que o TJ/SC apresenta considerável defasagem, em comparação com os respectivos pares, nos níveis de eficiência e produtividade no manejo de processos. Tal defasagem é corroborada pela comparação das taxas apresentadas pelo TJ/SC nos referidos critérios versus a média das taxas apresentadas pelos demais Tribunais Estaduais:

O comparativo de dados demonstra que o TJ/SC, embora empregue 67% a mais de recursos financeiros na manutenção de seu corpo funcional e receba mais processos por magistrado quando comparado a seus pares, apresenta níveis de produtividade muito aquém da média nacional, figurando na 20ª colocação dentre os 27 Tribunais Estaduais do país.

Nesse esteio, os altos índices de paralisação dos processos mostram-se particularmente preocupantes, notadamente quando a Corte catarinense lidera as taxas de congestionamento referentes tanto aos processos em fase de conhecimento quanto em execução12.

As circunstâncias internas às quais o TJ/SC encontra-se submetido favorecem, portanto, a consolidação e publicação de precedentes vinculantes imiscuídos de uma jurisprudência defensiva13, na medida em que a superposição de óbices processuais propicia a extinção dos processos em trâmite e, por conseguinte, reduz as taxas comparativas de processos pendentes e/ou paralisados.

Assim, não se pode desconsiderar o cenário de baixa eficiência processual enfrentado pela Corte catarinense quando da prolação da Súmula nº 51. Tal cenário, todavia, exerce mais um papel de contextualização que de efetiva compreensão das razões que conduziram à aprovação do Enunciado, uma vez que, embora a hipótese ora delineada explique a inclinação da Corte à formação de uma jurisprudência defensiva, não se pode estabelecer uma relação causal necessária entre os índices apontados e a restrição processual imposta especificamente ao pleito à gratuidade de justiça em sede recursal.

Portanto, a integral compreensão do processo de aprovação do Enunciado demanda, também, uma análise do posicionamento jurisprudencial externo acerca da matéria. Conquanto nenhum outro Tribunal tenha sinalizado a formulação de Enunciado semelhante à Súmula nº 51 do TJ/SC, constata-se relativa estabilidade no entendimento, seja no âmbito federal, seja no âmbito estadual, de que o recolhimento do preparo pelo recorrente obstaria o conhecimento do pedido à gratuidade de justiça14:

APELAÇÃO CÍVEL - JUSTIÇA GRATUITA - RECOLHIMENTO DE PREPARO - PRECLUSÃO LÓGICA - AÇÃO DE COBRANÇA - SUSPENSÃO - PENDÊNCIA DE AÇÃO REVISIONAL - SÚMULA 380 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 1. O recolhimento das custas é ato incompatível com o pedido de justiça gratuita, já que se contrapõe à alegação de ausência de condições para arcar com as despesas processuais. (...)

(TJ-MG - AC: 10701150259995001 MG, Relator: Maurílio Gabriel, Data de Julgamento: 14/03/2019, Data de Publicação: 22/03/2019)

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. PEDIDO DE JUSTIÇA GRATUITA. RECOLHIMENTO DO PREPARO. PRECLUSÃO LÓGICA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. APRECIAÇÃO EQUITATIVA. REDUÇÃO. CABIMENTO. CRITÉRIOS DO ART. 85, § 8º, DO CPC/2015. 1. O pagamento do preparo do recurso implica em preclusão lógica quanto ao pedido de gratuidade de justiça, visto que o recolhimento das custas recursais configura ato incompatível com o próprio requerimento do benefício da assistência judiciária gratuita pleiteado em sede recursal. (...)

(TJ-DF 07393152920178070001 DF 0739315-29.2017.8.07.0001, Relator: ANA CANTARINO, Data de Julgamento: 22/08/2018, 8ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 28/08/2018 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)

APELAÇÃO. JUSTIÇA GRATUITA. RECOLHIMENTO DO PREPARO. PRECLUSÃO LÓGICA. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. COMPROVAÇÃO EFETIVA DA PROPRIEDADE. INDIVIDUALIZAÇÃO DO IMÓVEL E POSSE INJUSTA. PEDIDO REIVINDICATÓRIO PROCEDENTE. SENTENÇA MANTIDA. PLEITO POR INDENIZAÇÃO DE BENFEITORIAS NÃO APRESENTADOS NA INSTÂNCIA ORIGINÁRIA. INOVAÇÃO RECURSAL. NÃO CONHECIMENTO. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NA PARTE CONHECIDA IMPROVIDO. DECISÃO UNÂNIME. 1. - Deve ser indeferido o pedido de justiça gratuita formulado, isto porque os apelantes procederam ao recolhimento do preparo do vertente recurso (evento 69, CUSTAS2), fato que se entremostra logicamente contraditório com o pedido de concessão dos benefícios da justiça gratuita, eis que, por injunção lógica, tem-se por demonstrada a sua capacidade econômico-financeira para arcar com as custas e despesas processuais desnaturando o pedido. (...)

(TJ-TO - APL: 00195580420188270000, Relator: JACQUELINE ADORNO DE LA CRUZ BARBOSA)

PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DETERMINAÇÃO DE RECOLHIMENTO DO PREPARO PARA O JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE DA APELAÇÃO. PEDIDO DE GRATUIDADE NÃO APRECIADO. POSTERIOR RECOLHIMENTO DO PREPARO. PRECLUSÃO LÓGICA. NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO. (...)

4. Ainda que se confira ao provimento impugnado cunho decisório, é de se reconhecer que houve a preclusão lógica para o Agravante, uma vez que o preparo foi recolhido, prosseguindo o feito principal. O pagamento do preparo é ato que revela-se incompatível com a vontade de recorrer do suposto indeferimento do benefício da gratuidade de justiça, o que faz desaparecer o interesse processual no recurso, impedindo o seu conhecimento por ausência de um de seu pressupostos processuais. Precedente: TRF 2ª Região, AG 200551010117590, Rel. Des. Fed. Lana Regueira, 4ª T. Esp., DJ 28/05/2010. 5. - Recurso não conhecido.

(TRF-2 - AG: 201202010188561, Relator: Desembargador Federal MARCUS ABRAHAM, Data de Julgamento: 15/07/2014, QUINTA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: 29/07/2014)

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AUSÊNCIA DE VÍCIO NO JULGADO. EMBARGOS REJEITADOS. (...)

O recolhimento das custas processuais é ato incompatível com o pedido de concessão do benefício da gratuidade judicial. (...)

(TRF-3 - AI: 00077394320164030000 SP, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL NELTON DOS SANTOS, Data de Julgamento: 21/06/2017, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: e-DJF3 Judicial 1 DATA:30/06/2017)

O referido entendimento é chancelado, inclusive, pelo próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ)15, cuja missão de uniformizar a interpretação da legislação federal fixa as balizas da jurisprudência nacional:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO CPC/73. BANCÁRIO. AÇÃO MONITÓRIA APARELHADA EM CHEQUE PRESCRITO. CONVERSÃO EM EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL. PEDIDO DE CONCESSÃO DE BENEFÍCIO DE GRATUIDADE DE JUSTIÇA FORMULADO NA APELAÇÃO CONCOMITANTE COM RECOLHIMENTO DO PREPARO. INCOMPATIBILIDADE. PRECLUSÃO LÓGICA. ACÓRDÃO EM CONSONÂNCIA COM ENTENDIMENTO DO STJ. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. (...) Efetivamente, esta Corte Superior de Justiça possui entendimento no sentido de que, ao realizar o preparo prévio do recurso, a parte pratica ato incompatível com o seu pedido de assistência judiciária gratuita, o que configura preclusão lógica, além de que o recolhimento do respectivo preparo denota a possibilidade econômica da parte em arcar com os custos do processo.

(STJ - REsp: 1610939 DF 2016/0156032-4, Relator: Ministro MOURA RIBEIRO, Data de Publicação: DJ 28/03/2017)

Note-se, por fim, que a inteligência atrelada à Súmula nº 51 do TJ/SC extrapola o âmbito jurisprudencial, sendo, inclusive, replicada em manuais de Direito:

Caso o recorrente realize o preparo prévio, haverá preclusão lógica [do recurso interposto contra o indeferimento do pedido de justiça gratuita], porquanto tal ato, segundo o entendimento do STJ, é incompatível com a vontade de obter o benefício. (DONIZETTI, 2017, p. 181).

Assim, mais do que a conveniência interna de se fixar uma orientação eminentemente defensiva, constata-se que o consenso dos Tribunais pátrios acerca da matéria igualmente contribuiu ao referendo do Órgão Especial à Súmula nº 51 do TJ/SC, porquanto propiciara robusto arcabouço jurisprudencial externo conivente à cristalização da concepção unitária da justiça gratuita em texto de súmula.

A formação das normas jurisprudenciais carece, todavia, do imediatismo que pode ser encontrado em algumas normas legislativas, nas quais a súbita potencialização de um posicionamento pode dar à luz um texto normativo. No processo de formação daquelas, em especial, das súmulas, há a sedimentação de decisões que, uma vez consolidadas16, resultam na cristalização de uma tese jurídica referente ao entendimento do Tribunal acerca de determinada matéria:

Assim, a súmula é o enunciado normativo (texto) da ratio decidendi (norma geral) de uma jurisprudência dominante, que é a reiteração de um precedente. (...) [A súmula] não é uma decisão que constitui um precedente, mas, sim, um texto conciso criado pelo tribunal, com o propósito de enunciar o entendimento que ali prevalece. (DIDIER; BRAGA; OLIVERA, 2016, pp. 500-502).

Nesse aspecto, o processo formal que antecedeu o referendo à Súmula nº 51 do TJ/SC é irretocável. Em observância ao art. 926, caput e §1º, editou-se Enunciado que, de fato, reflete a jurisprudência dominante na Corte catarinense. Assim, a contraposição ao conteúdo da Súmula demanda uma precisa delineação dos fundamentos jurídicos que, pouco a pouco, levaram o Tribunal a propagar o entendimento de que o recolhimento do preparo impossibilita o conhecimento do pedido recursal à gratuidade de justiça.

Em atenção à necessidade de contextualização do padrão decisório que conduziu à formação do precedente vinculante (art. 966, §5º)17, o TJ/SC disponibiliza na rede mundial de computadores vinte e quatro arestos do Tribunal que antecederam o referendo ao Enunciado da Súmula nº 5118. A análise dos argumentos jurídicos estampados nos referidos precedentes é esquematizada no gráfico abaixo e individualmente delineada na Tabela 2 (Anexo).

Conforme se extrai da Tabela 2, a estrutura argumentativa predecessora da Súmula nº 51 do TJ/SC subdivide-se em dois grupos principais, diferenciados pela indicação: (i) apenas do argumento de incompatibilidade; e (ii) deste argumento, associado à materialização de renúncia tácita ao benefício19.

Para fins de especificação das fundamentações supramencionadas, transcreve-se arestos representativos de cada grupo argumentativo:

Ato incompatível. AGRAVO INTERNO. DECISÃO QUE INDEFERIU O PEDIDO DE CONCESSÃO DO BENEFÍCIO DA JUSTIÇA GRATUITA COM EFEITOS EX NUNC. PAGAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS E DO PREPARO RECURSAL PELO AGRAVANTE. ATO INCOMPATÍVEL COM O PEDIDO FORMULADO. PRECLUSÃO LÓGICA. PRECEDENTES DESTA CORTE. (...)

"O recorrente que, em apelação cível, pleiteia a gratuidade da justiça, mas, ao mesmo tempo, quita o preparo, pratica ato incompatível com o pedido manifestado, ensejando o reconhecimento da preclusão lógica"(...)

(TJ-SC - AGV: 00027270720108240011 Brusque 0002727-07.2010.8.24.0011, Relator: Marcus Tulio Sartorato, Data de Julgamento: 31/10/2017, Terceira Câmara de Direito Civil)

Trecho do voto relator:

O recolhimento das custas processuais pelo apelante ocasionou-lhe a perda da faculdade processual de impugnar a decisão de indeferimento do benefício da justiça gratuita, pois esse ato é logicamente incompatível (preclusão lógica) com o pedido de concessão do benefício da gratuidade judiciária.

Ato incompatível associado à renúncia tácita. (...) 1. REQUERIMENTO DE JUSTIÇA GRATUITA. PAGAMENTO DO PREPARO. PRÁTICA DE ATO INCOMPATÍVEL COM A PRETENSÃO RECURSAL. PEDIDO PREJUDICADO. (...)

(TJ-SC - AC: 00362603620118240038 Joinville 0036260-36.2011.8.24.0038, Relator: Raulino Jacó Brüning, Data de Julgamento: 12/07/2018, Primeira Câmara de Direito Civil)

Trecho do voto relator:

1.1. Da justiça gratuita

Ab initio, importa dizer que o pedido de gratuidade judiciária formulado pelos recorrentes encontra-se prejudicado, pois eles efetuaram o pagamento do preparo recursal.

Aplica-se ao caso, analogicamente, o disposto no artigo 1.000 do Código de Processo Civil de 2015 (semelhante ao antigo artigo 503), leia-se:

Art. 1.000. A parte, que aceitar expressa ou tacitamente a decisão, não poderá recorrer.

Parágrafo único. Considera-se aceitação tácita a prática, sem reserva alguma, de um ato incompatível com a vontade de recorrer.

(...)

Por conseguinte, tendo em vista que os apelantes praticaram ato incompatível com o pedido de justiça gratuita, não se conhece do referido pleito.

Assim, a tese de incompatibilidade entre o ato de recolhimento do preparo e o pedido recursal à gratuidade é precipuamente alicerçada no instituto da preclusão lógica. Por sua vez, a alegação de renúncia tácita, complementar à tese de incompatibilidade, encontra amparo normativo no art. 1.000, parágrafo único, do CPC.

Delineado o suporte argumentativo que conduziu ao referendo da Súmula nº 51 do TJ/SC, a demonstração da ilegalidade do Enunciado perpassa, precisamente, a exposição das razões pelas quais o recolhimento do preparo não constitui ato incompatível com o pedido recursal do benefício, tampouco caracteriza a renúncia tácita do recorrente. Para esse fim, faz-se necessária uma prévia análise dos atributos da gratuidade de justiça consagrados pelos §§5º e 6º do art. 98. do CPC que conduzem a tal conclusão.

Sobre o autor
Gabriel Rodrigues Soares

Advogado. Graduado pela Universidade de Brasília (UnB) Atuação: Direito do Consumidor; Cível; Trabalhista

Informações sobre o texto

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