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O eterno homem cordial.

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Agenda 05/05/2020 às 12:33

Não pode se tomar o conceito de cordialidade, em “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, como uma imutável diretriz na evolução. Cordialidade não significava “elogio”, mas sim, “problema crítico”.

Palavras-chaves: Homem cordial. Cordialidade. História do Brasil. Sociologia.

Filosofia. Formação do Brasil.


No fatídico capítulo quinto (quinto dos infernos[1], deve ser a referência), intitulado "O homem cordial", na obra chamada “Raízes do Brasil”, que integrava a coleção Documentos Brasileiros, de autoria do notável Sérgio Buarque de Holanda, parafraseava a expressão de Ribeiro Couto[2] e foi endereçada ao escritor mexicano Alfonso Reyes.

O homem cordial se caracterizava como sendo um dos efeitos decisivos da supremacia inconteste e absorvente do ninho familiar, pois as relações que se travam na vida doméstica, sempre forneceram o modelo vigente e obrigatório para qualquer composição social entre os brasileiros.

A expressão “cordial” não indica apenas bons modos e gentileza. Cordial vem do latim cordis, cujo significado remoto é cordas, sendo relativo ao coração. A explicação etimológica serve para ressaltar sua dubiedade e, simultaneamente, àquilo caracteriza, segundo a sua tese, o temperamento do homem brasileiro. Pois, diferentemente dos povos asiáticos, em geral, entre os quais predomina a polidez, como sendo parte integrante do procedimento civilizacional, no Brasil, tal polidez permanece somente na superfície.

In litteris, Buarque esclarece: “Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no 'homem cordial': é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso, a polidez é, de algum modo, organização da defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas suas sensibilidades e suas emoções.”

Na verdade, a cordialidade tinha o papel de sublinhar com destaque a rígida separação, em nossa sociedade, entre o público e o privado[3].

O historiador não deixava dúvidas sobre sua pejorativa consequência. Pois armado da máscara de cordialidade, o indivíduo[4] consegue manter sua supremacia ante o social. Fundada nas relações familiares de que derivava, a cordialidade se estendia até a área do público, cuja lógica, que antes deveria ser o interesse público, era com isso sufocada.

A distinção se tornará mais efetiva a partir da terceira edição de Raízes do Brasil, quando ao texto sensivelmente modificado[5] corresponderá ao esclarecimento decisivo sobre a questão da cordialidade.

Importante esse esclarecimento desde que Cassiano Ricardo[6] iniciara seu desentendimento, tornando-a como sinônimo da nossa bondade original. Contrapôs, Sérgio Buarque que reiterou em nota a origem a Ribeiro Couto, acrescentava ainda a passagem de “O Conceito do Político”, que Carl Schmitt[7] publicara em 1933. Diferencia-se a inimizade, pertencente à ordem do privado, assim como a hostilidade, pertinente a ordem do público[8]. 

Cassiano Ricardo Leite (1894-1974) foi jornalista, poeta e ensaísta brasileiro. Foi representante do modernismo de tendências nacionalistas e esteve ligado aos grupos Verde-Amarelo e da Anta, foi o fundador do grupo da Bandeira, reação de cunho social-democrata a estes grupos. Tendo, em sua obra se transformado até o final, evoluindo formalmente com as novas tendências dos anos de 1950 e tendo participação no movimento da poesia concreta.

E, no texto revisto espancando todas as dúvidas, Sérgio Buarque frisou que nossas raízes familiares comprometiam a formação consequente de uma ordem pública entre nós, pois seus agentes, no exercício de seus cargos, agem como se a população fosse parte do círculo de seus protegidos.

O termo “cordial” em vez de restringir-se a estrita acepção inicial, a oposição entre público e privado, a hostilidade versus a inimizade como derivadas da importância primordial da instituição familiar, passa então, a ter a oposição entre público e privado, significava que nossa política, sob o manto de afabilidade, acobertava interesses privados. E, mesmo contemporaneamente, vigora essa acepção.

Apesar da delação, da tortura, do desaparecimento dos adversários, dos assassinatos diários em blitz policial, e ainda, todas as atrocidades praticadas habitualmente durante o Estado Novo[9], como se poderia imaginar a indiferença e a progressiva hostilidade da população pelo clima intenso de terror e de medo em face da velha cordialidade do homem brasileiro.

O privado doravante se identifica mais com instituições industriais, ainda que de origem familiar. Seria uma espécie de cordialidade industrial. Oriunda de instituições que, por sua exímia capacidade de difusão pública, possuem a possibilidade de forjar uma opinião pública.

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O homem cordial precisa expandir seu ser na vida social, precisa estender-se até a coletividade, que não suporta o peso denso da individualidade, precisa viver nos outros. Ter empatia. Tal necessidade aponta para a necessidade de apropriação efetiva do outro, principalmente através de nossas cotidianas expressões linguísticas.

Aliás, destacou Sérgio Buarque o uso do sufixo típico do diminutivo, o famoso - inho -, colocado em vocábulos como senhorzinho, sinhazinha que revela a grande vontade de se aproximar do que é distante do nível do afeto.

O homem cordial[10], é, portanto, um artifício, uma armadilha psicológica e comportamental inserida em nossa formação enquanto povo. É por essa razão, que ressaltou o historiador a contribuição brasileira para a civilização será o homem cordial.

A identidade brasileira ainda um enigma sendo pensada a partir de dualidades. Gerando-se, naturalmente, o trabalhador e o aventureiro, por exemplo, uma dicotomia salientada por Leenhardt[11], a qual o aventureiro ibérico que não sabia onde aportava. Antônio Cândido em sua introdução clássica aponta que o historiador trabalha com dualidades, com pares, como trabalho e aventura; método e capricho. rural e urbano; burocracia e caudilhismo, norma impessoal e impulso afetivo.

Nas décadas de 1920 e 1930 foram de intensa atividade cultural e intelectual no Brasil e, segundo muitos historiadores, foi quando o Brasil fora redescoberto, ou seja, surgiram novas formas de interpretar a nossa identidade e singularidade ante às outras civilizações foram desenvolvidas, tanto na seara da literatura, da história e das alcunhadas "ciências sociais".

A Semana de Arte Moderna de 1922 e o Movimento Regionalista de Pernambuco foram um dos principais marcos do esforço interpretativo sobre o que vem a ser Brasil. E, nesse momento, a obra "Raízes do Brasil", onde foi desenvolvido o fundamental conceito de “homem cordial”. A obra fora publicada em 1936 pela Editora José Olympio, sendo obra que visou investigar o que baseia a história do Brasil, de seu povo e de suas instituições mais peculiares, tais como a família patriarcal, entre outros aspectos tão marcantes da sociedade brasileira.

Tais temas também interessaram outro intelectual relevante pernambucano Gilberto Freyre, cujas obras “Casa Grande e Senzala” (1933) e “Sobrados e Mucambos[12]” (1936) são cruciais para se refletir e analisar a formação do Brasil.

Em verdade a composição da obra de Sérgio Buarque de Holanda nasceram em 1930, na época que teria sido enviado como correspondente brasileiros dos Diários Associados para Polônia, Rússia e Alemanha.

Em tais dualidades fica nítida a distinção efetuada por Max Weber entre os diferentes tipos de legitimação, com o trabalho, o método, o urbano, a burocracia e a norma impessoal, situando-se no campo dominado pelo chamado domínio em virtude da legalidade, em virtude da fé na validade do estatuto legal e da competência funcional, baseada em regras racionalmente criadas e com os polos opostos de cada parte  situando-se no terreno dos tipos de autoridade tradicional e carismática.

São esses tipos de autoridade segundo Sérgio Buarque, apesar de não mencionar a tipologia weberiana que têm predominado no Brasil e, é a utilização dessa dualidade e a constatação desse predomínio que irão nortear o pensamento do historiador.

A maioria das histórias nacionais pode ser dito que são cruéis e a de nosso país naturalmente não é uma exceção. E, pretender que o tenha sido - a do Brasil, em menor ou maior grau do que a dos outros povos já é matéria dependente de critérios de mensuração e naturalmente de termos de comparação, que até o momento ainda não se descobriram.

O homem cordial é definido como protótipo do não-cidadão[13], pelo fato de o seu perfil não se adequar à esfera pública, simbolizando, ainda, uma sociedade que prefere obedecer a assumir responsabilidades. E, não mais se adequa à modernidade, devido a uma característica ressaltada por Sérgio Buarque, que menciona o horror às distâncias que parece constituir, ao mesmo até agora, o traço mais específico do caráter brasileiro.

Enfim, o romantismo ganho no Brasil um personalismo inato. E, se adaptou tão bem ao nosso gênio nacional, ao ponto que se pode afirmar que nunca a nossa poesia pareceu tão legitimamente nossa, como sob a sua influência. E, deve-se ao fato de persistir, aqui como em Portugal, o velho prestígio das formas simples e espontâneas, dos sentimentos pessoais, a despeito das contorções e disciplinas seculares do cultismo e do classicismo.

Enfim, a continuidade que demos à tradição ibérica gera um tempo, que ao invés de se renovar, conduz a reafirmação de nossos traços de significado, e tal continuidade se revela na conservação do passado para não aniquilar nosso perfil identitário.

A origem do homem cordial cunhou aspectos peculiares à história brasileira. Aliás, Sérgio Buarque, definiu como o caráter epidérmico das rebeliões que antecederam e mesmo as que sucederam a Independência, o qual possui, na perspectiva, as origens de nossas políticas identitárias. Não é, em resumo, o mesmo paternalismo, de raízes coloniais[14] e barrocas que forma, ainda hoje, o núcleo de quase toda atividade política no Brasil.

A repulsa firme e reiterada de todas as modalidades de racionalização, e, por conseguinte, da despersonalização, tem sido, até hoje, um dos traços constantes dos povos de raízes ibéricas. E, sublinha, ainda, alguns dos traços básicos do ethos econômico de tais populações.

Sérgio Buarque tenta identificar as raízes do Brasil, mas é uma tentativa que se configura como contraditória, na medida em que o brasileiro é caracterizado como portador de uma identidade sem raízes; somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.

 E, tal desterro se relaciona ao que ele definiu como a predominância do caráter de exploração comercial da colonização portuguesa, mais preocupada em explorar a terra, ainda que de forma predatória, do que em estabelecer-se nesta de forma consistente.

Foi a cordialidade lusitana presente na raiz da tradição ibérica na qual fomos criados, do iberismo de fundamental relevância que gerou a plasticidade da colonização portuguesa, tão referida por Gilberto Freyre.

Permitiu ao português misturar-se sem maiores restrições ao negro e ao índio, criando uma cultura assim ambivalente, originalmente branca e europeia, mas vinculada a tradições africanas e indígenas[15]. E, conclui-se que este dilema está presente em nossos impasses nacionalistas, continuam em propostas literárias, políticas ou sociais.

Diferentemente do que ocorreu na colonização inglesa, tal plasticidade que tanto caracterizou o processo colonial português não ocorreu.

O espírito empreendedor e empresarial, a capacidade de trabalho e a coesão social são as características que faltam a esse processo e veio a definir a colonização britânica como de ocupação.  o colonizador de origem inglesa era movido pelo "afã de construir", enquanto o português deixou-se atrair "pela esperança de achar em suas conquistas um paraíso feito de riqueza mundana e beatitude celeste, que a eles se ofereceriam sem reclamar labor muito maior, mas sim como um dom gratuito".

Trabalhando a dicotomia entre as diferentes colonizações a partir da dualidade proposta por Buarque, Lippi de Oliveira ressalta as diferentes representações da natureza que fundamentam cada processo:

"A representação puritana da natureza contrasta com o que foi apresentado... Para os puritanos, não cabia nem conquistar nem descobrir  a natureza, mas o conhecimento e a domesticação, tarefas que requeriam muito trabalho e muita "ação de graça" (matéria-prima do rito nacional  mais importante nos Estados Unidos: o dia de Ação de Graças)."

A plasticidade lusitana é bem exemplificada por Sérgio Buarque a partir do aprendizado de técnicas de caminhada e de sinalização mato adentro. E, o português adaptou-se às técnicas indígenas e as utiliza com grande sucesso e sem menor prurido. E, ainda concluiu:

“Estavam certamente nessa incorporação necessária de numerosos traços da vida do gentio, enquanto não fosse possível uma comunidade civil e bem composta, segundo os moldes europeus. E, nesse sentido ainda se aponta outra interpretação para plasticidade portuguesa, na perspectiva de Sérgio Buarque.”

A plasticidade é uma espécie de virtude dos fracos, espelhando a predisposição para o ajuste e o compromisso, em vez da sobranceira imposição unilateral da vontade também típica dos calvinistas.

É essa circunstância que faz Sério Buarque afirmar que, neste terreno particular, a fraqueza lusitana enfim foi sua força.

Antônio Cândido definiu a obra de Buarque como um momento alto do pensamento brasileiro, na medida que rompia com a solução liberal, que atribuía às elites a tarefa de conduzir a nação e tutelar o povo e, passava a atribuir a esse mesmo povo, a capacidade de iniciativa e criatividade política.

Aliás, ressaltou Cândido que a obra foi editada pouco depois do esmagamento da Aliança Nacional Libertadora e, foi voltada claramente contra os autoritarismos, tanto os herdados da velha estrutura oligárquica, quanto os surgidos na conjuntura contemporânea, como o integralismo.

Aliás, o historiador identifica que o nacionalismo verde-amarelista, que desaguaria, afinal, no integralismo, caminha, de fato, nesse sentido: ele denuncia, um processo de remodelação conservadora e uma tentativa de manutenção de padrões culturais[16] de onde nascem os bacharéis e os caudilhos. E, tais padrões constituídos, em resumo, a partir da tradição ibérica, um conservadorismo a que o historiador foi honroso crítico e oponente.

O Estado[17] concebido por Buarque é estático no contexto de uma identidade, a do homem cordial, e não de uma realidade social específica. A superação do homem cordial só será possível, finalmente, através da modernização da sociedade brasileira, o que pressupõe a urbanização e superação de seu personalismo e aristocratismo.

Não pode se tomar o conceito de cordialidade, em “Raízes do Brasil”, como um imutável diretriz na evolução. Cordialidade não significava “elogio”, mas sim, “problema crítico”. O historiador mostrava que cordialidade vinha de cordis, coração, e dizia respeito ao problema que os brasileiros tendem a inflacionar a esfera privada em detrimento da pública. Por isso, teríamos instituições frouxas e pouco ou nenhum apego aos partidos, à lei e ao Estado.  Não seremos o eterno homem cordial[18].

Sobre as autoras
Gisele Leite

Professora universitária há três décadas. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Pesquisadora - Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE Associação Brasileira de Direito Educacional. Vinte e nove obras jurídicas publicadas. Articulistas dos sites JURID, Lex Magister. Portal Investidura, Letras Jurídicas. Membro do ABDPC Associação Brasileira do Direito Processual Civil. Pedagoga. Conselheira das Revistas de Direito Civil e Processual Civil, Trabalhista e Previdenciária, da Paixão Editores POA -RS.

Denise Heuseler

Professora universitária. Advogada. Pós-Graduada em Direito Processual Civil e Direito Civil. Possui diversas obras jurídicas publicadas. Pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.

Informações sobre o texto

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