Para aqueles que militam na área criminal, com certeza já se depararam com o reconhecimento de pessoas em delegacia, entretanto, quantos dos mesmos realmente atendem a legislação processual penal? A jurisprudência pátria em uníssono declara que não há qualquer dano ao réu pela inobservância do art. 226 do CPP, mas na verdade há, e é notório e indiscutível. Imagine ser reconhecido por uma vítima em delegacia que no calor do momento, abalada por toda a cadeia de eventos que possivelmente presenciou, ao lado de dois indivíduos que em nada se parecem com você ou com a descrição apresentada pela vítima ou testemunha. Isso não é reconhecimento e sim uma indicação à vítima ou testemunha de quem seria o criminoso. É patente o abalo emocional da vítima que macula seu discernimento, não possuindo base segura para identificação do real autor do crime, afinal, tendo a vítima a prestar mais atenção, por exemplo, a arma de fogo do que traços do autor do crime, ainda mais este estando encapuzado. Assim, deve-se considerar, que a presença de fatores chamativos de atenção, como nos de roubo a arma “distrai a atenção do sujeito de outros detalhes físicos importantes do autor do delito, reduzindo a capacidade de reconhecimento. O chamado efeito do foco na arma é decisivo para que a vítima não se fixe nas feições do agressor, pois o fio condutor da relação de poder que ali se estabelece é a arma” (Lopes Jr., Aury. Direito Processual Penal. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, pg. 706). Deve ser considerado também: “as expectativas da testemunha (ou vítima), pois as pessoas tendem a ver e ouvir aquilo que querem ver e ouvir. Daí por que os estereótipos culturais (como cor, classe social, sexo, etc.) têm grande influência na percepção dos delitos, fazendo com que as vítimas e testemunhas tenham uma tendência em reconhecer em função desses estereótipos (exemplo típico ocorre nos crimes patrimoniais com violência – roubo – em que a raça e perfil socioeconômico são estruturantes de um verdadeiro estigma)” (Lopes Jr., Aury. Direito Processual Penal. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, pg. 707). Podemos observar que na grande maioria dos casos a vítima, ou testemunha, ao fazer o reconhecimento, em total desobediência ao que preceitua o artigo 226, do Código de Processo Penal, reconhece erroneamente o autor do crime. É o que afirma a pesquisa realizada pela ONG “The Innocence Project”, a qual comprova que 75% (setenta e cinco por cento) dos condenados inocentes, foram considerados culpados dos crimes, por causa de erros no reconhecimento pessoal feito por vítimas e testemunhas. Nas palavras do Professor Renato de Oliveira Furtado, isto pode ser explicado “por estar o reconhecimento dotado de força ‘impressionista’, o seu resultado positivo influência profundamente a decisão do juiz. Observa Alessandro Bernasconi que, mesmo estando comprovadas as falhas desse meio de provas, os juízes ‘continuam a ser inconscientemente influenciados pela identificação positiva computada pela testemunha’ (tradução livre) e, ainda, que os resultados positivos do reconhecimento ‘quase equivalem a uma pacífica indicação de culpa’ (tradução livre)” (DE OLIVEIRA FURTADO, Renato. http://www.conjur.com.br/2012-abr-29/renato-furtado-riscos-reconhecimento-formalidades-legais. Publicado em 29/04/2012). Dificilmente uma testemunha ou vítima que identifica erroneamente em sede policial se retrata em juízo, afinal, que confessa o erro na presença de um magistrado e promotor? Se houve erro na identificação na fase policial, na maioria esmagadora de vezes, será mantida em juízo, com a consequente condenação de um inocente. Resta evidente, portanto, que o desrespeito ao art. 226 do CPP em sede policial gera dano a defesa e a busca da verdade real dentro do processo criminal. Ao ser iniciada a investigação e em havendo a necessidade de ser providenciado qualquer tipo de reconhecimento de pessoas ou coisas por parte da suposta vítima e/ou das testemunhas, é essencial que sejam respeitadas as fases previstas no art. 226, do CPP. E tal respeitabilidade deve atender não só ao cumprimento total e eficiente de todos os paradigmas dispostos nos incisos do mencionado artigo, mas, também – e preponderantemente – à sucessividade da metodologia, em verdadeira ordem cronológica. Assim sendo, inicialmente, para que se repute válido o reconhecimento (seja no âmbito do inquérito policial ou na instrução do processo penal), é necessário que sejam seguidos os seguintes passos, os quais serão, por fins didáticos, elencados em alíneas: Art. 226 Inciso I: A pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida – É o primeiro ato a ser providenciado. Nas infrações em que inexistir flagrante delito ou não se evidenciar qualquer indício pré-concebido (filmagem, fotografia, desenho, etc.) deverá a autoridade lavrar termo pormenorizado acerca dos traços físicos/estéticos do suposto autor do fato indicadas pela vítima e/ou testemunha, devendo ser, ao fim, tal documento, firmado pela pessoa declarante. Com base nessa caracterização que será possível a identificação de um ou mais suspeitos, os quais serão ombreados no ato definido no inciso II. Inciso II: A pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la – Esse é o apogeu do procedimento. Nesse ato, devem ser colocados em linha o(s) suspeito(s) e outras pessoas semelhantes ao(s) acusado(s) para que, em meio à diversidade de figuras esteticamente semelhantes, possa o reconhecedor apontar, com precisão, o indivíduo que, de acordo com suas sinceras lembranças, teria cometido o delito. Importante salientar que a certeza do reconhecedor é critério básico de validade do ato. Pairando dúvida, a credibilidade do ato resta deformada. Como já narrado, a jurisprudência pátria acha dispensável tal procedimento, entretanto, este posicionamento é extremamente nocivo a defesa do acusado, afinal, o fato do art. 226, II do CPP referir a locução “se possível” indique para um caráter liberatório do evento investigativo em relação a similitude física dos perfilados, é fundamental ter em mente que o comentado trecho não se trata de uma dispensa total da ordem legal, mas sim para uma mitigação de cogência, em caso de extrema impossibilidade, devendo ser tal impossibilidade fundamentada pela autoridade realizadora do ato de forma razoável, através da lavratura do auto previsto no inciso III, do art. 226, do CPP. Ora, considerando o fato de que a fase policial inadmite a imposição do contraditório, é dever desta fase administrativa comprovar a idoneidade dos procedimentos por ela gerados, pois, caso assim não se faça, a sonegação das garantias processuais penais (tanto para a acusação quanto para a defesa) é mais do que presumida. Para além de mera simbologia, a necessidade de pareamento de suspeitos, enquadrados em similaridade com a descrição formulada pela vítima ou testemunha em momento anterior, funciona como uma forma de dotar a situação de imparcialidade e, ainda, de evitar o acondicionamento do raciocínio do ofendido reconhecedor a acusar aquele que mais se aproxima dos caracteres físicos por ele elencados na descrição prevista no inciso I, do art. 226, do CPP. Trata-se, de fato, de evitar fomentar qualquer tipo de estimulação do reconhecedor a desenvolver uma falsa memória sugerida, eis que, efetivamente, a apresentação de apenas um suspeito que se enquadre nas características previamente elencadas pela vítima ou testemunha favorece – e muito – a (de)formação de uma ilusão mental baseada em mera semelhança e, não, em efetiva certeza do reconhecimento. Neste sentido, a brilhante doutrina de dois Mestres do direito penal brasileiro: De todas as provas previstas no nosso diploma processual penal, esta é a mais falha, a mais precária. A ação do tempo, o disfarce, más condições de observação, erros por semelhança, a vontade de reconhecer, tudo, absolutamente tudo, torna o reconhecimento uma prova altamente precária. (TOURINHO FILHO, Fernando, Código de Processo PenalComentado, Ed. Saraiva, 12º Edição, ano 2009, Tomo I, pag. 645). Observa-se, entretanto, na prática forense, há décadas, a completa inobservância do disposto nesse artigo, significando autêntico desprezo à forma legalmente estabelecida. Pode-se dizer que, raramente, nas salas de audiência, a testemunha ou vítima reconhece o acusado nos termos preceituados pelo Código de Processo Penal. (NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no Processo Penal. 2ª ed. Rev., atual. E ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. Pg. 183). Desta maneira, o entendimento atual, e o claro desrespeito ao art. 226 do Código de Processo Penal, causa não a suposta identificação do réu, mas na verdade, uma indicação da autoridade policial de quem seria o “criminoso”, o que coloca em risco o cidadão comum pela “preguiça” do Estado em respeitar uma norma tão clara e indispensável a presunção de inocência. Alex Siqueira Ripamonte OAB/SP 284.810
O RECONHECIMENTO DE SUSPEITOS NA FASE POLICIAL
ATÉ QUANDO NÃO HAVERÁ RESPEITO AO ART. 226 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
08/05/2020 às 14:43
O atual desrespeito a aplicação do artigos 226 do Código de Processo Penal na fase policial, assim como sua aceitação pelos Tribunais, põe em risco não só a presunção de inocência, mas gera dano real ao devido processo legal.
Alex Siqueira Ripamonte
Advogado atuante nas áreas criminal, cível, consumerista e administrativa desde 2009.
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