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A rudimentar cidadania brasileira e a Constituição

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Agenda 01/08/1999 às 00:00

INTRODUÇÃO 

"Cidadania", palavra que, segundo alguns, seria originada de "Cidade" (Civitas - latim), na verdade, representa muito mais do que a fatalidade de nascer em determinado lugar no tempo e no espaço, sujeitando-se às regras impostas circunstancialmente. Como lembra o mestre De Plácido e Silva:

          "Cidadania. Segundo a teoria, que se firmou entre nós, a cidadania, palavra que se deriva de cidade, não indica somente a qualidade daquele que habita a cidade, mas, mostrando a efetividade dessa residência, o direito político que lhe é conferido, para que possa participar da vida política do país em que reside".
(In "Vocabulário Jurídico", V. I e II, De Plácido e Silva, 3ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1993, p. 427)

Ainda dentro do conceito sugerido pelo insigne jurisconsulto, constata-se que não é possível imaginar a cidadania como participação na vida política de um país, sem todo um "arsenal" efetivo de meios que a viabilizem. Para ser cidadão, não basta a investidura legal, mesmo que prevista no diploma maior, a Constituição Federal, a exemplo do disciplinado nos artigos 5º, 6º e seguintes. É necessário que o indivíduo receba um mínimo institucional para competir a partir de um ponto de partida comum, alcançando, com dignidade, seu espaço em sociedade, para só então ser capaz de agir politicamente, contribuindo no aperfeiçoamento do statu quo.

Na Antiga Grécia, é encontrado um modelo referencial de Democracia e Cidadania. Sabe-se, contudo, que, na verdade, a tão admirada Democracia Ateniense era um regime de proteção às classes privilegiadas (cidadãos atenienses) que gozavam de amplos e avançados direitos, apesar do sustentáculo do sistema estar na mão-de-obra escrava e semi-escrava, marginal e majoritária. O grande limitador da Democracia na Antigüidade Clássica era justamente o "Como?" conciliar cidadania para as massas com os interesses espoliadores das camadas mais favorecidas pelos antigos modos de produção.

Constatar que em países como o Brasil, já no final do século XX, o mesmo dilema, verificado nas antigas sociedades e retromencionado, sobrevive, é, no mínimo, intrigante. Como um país tão pujante economicamente pode ser tão desigual, tão iníquo? Por que a cidadania brasileira é ainda tão rudimentar? São perguntas antigas e que perseguem as consciências de muitos compatriotas há muitas décadas.

Não se pretende, no presente esforço, solucionar o "velho dilema", mas buscar compreender algumas raízes do problema, certas respostas dadas pela própria sociedade brasileira, sugerir alternativas e, na medida da consciência política individual e coletiva, alertar para os riscos do massacre e prostituição dos valores de cidadania em solo pátrio e a importância de um texto constitucional e de uma Constituição engajada, progressista e democrática.


1. Cidadania, Desigualdade e a Constituição.

Em busca de uma possibilidade de cidadania plena, não se pode esperar que esta só seja possível em uma sociedade imaginária e perfeita. Cidadania plena, como uma instituição de proteção e efetividade das garantias mínimas a cada indivíduo e à coletividade, deve ser construída mesmo em contextos de desigualdade social, econômica, ou cultural. É, na verdade, um grande esforço na superação das aludidas barreiras, fundada na melhoria da qualidade de vida de determinado povo.

O Brasil é um dos líderes de uma triste estatística: é um dos países que mais concentra renda em minoritários seguimentos sociais em todo o mundo, gerando uma desigualdade que separa milhões de brasileiros por um profundo abismo de semi-imobilidade social. Obviamente, tal ambiente representa um difícil obstáculo à eficácia das garantias asseguradas pelo ordenamento jurídico pátrio a todos os brasileiros. A desigualdade brasileira é a grande geradora da violação dos direitos humanos no país, até mesmo porque a vigente organização da economia nacional já impõe às massas a certeza de uma vida de miséria, sob condições abaixo do mínimo aceitável à dignidade humana.

O país está bastante distante do conceito de finalidade do Estado definido por pensadores como o genebrino Jean-Jacques Rousseau que, em sua obra "O Contrato Social", idealiza um cidadão revolucionário, em um Estado soberano. Tal soberania só seria plena se exercida em nome de um bem-estar coletivo efetivo. Se o Estado existe é justamente para garantir que a Cidadania será eficaz, sobrevivendo inclusive às mazelas oriundas do próprio convívio em sociedade.

Interessante referencial para a desigualdade brasileira é o chamado Coeficiente de Gini, uma representação gráfica da distribuição ideal de renda (ou mesmo de terra) em uma determinada sociedade. Tal índice foi construído por Corrado Gini (1884-1965), demógrafo italiano, sendo que o coeficiente varia de 0,0 a 1,0. Quanto mais próximo de 1,0, maior a concentração de renda. Assim, dentro das disparidades inerentes entre pessoas, famílias ou grupos, a renda estará razoavelmente distribuída até o nível 0,45. Acima dele, evidencia-se a perversão social de um sistema econômico. Em dados de 1.993, como informou Joelmir Beting em artigo publicado na Revista "Veja", em 25 de dezembro de 1996 (p.154), o Banco Mundial informou que o Brasil possuía um Gini de 0,60 (concentração de renda). O Zimbábue, república tribal, apareceu com 0,56. A Índia, sociedade de castas, possuía um coeficiente de 0,50. O Brasil, portanto, possui o mesmo Gini de países como Ruanda, Zaire ou Bósnia, caracterizados por guerras canibalescas e genocidas. Em síntese, o Gini brasileiro é o pior do mundo. Só a título de informação, a concentração de terras no Brasil é maior, por mais incrível que pareça, que a própria concentração de renda, ou seja, a metade das terras está nas mãos de 2% dos proprietários. O Gini da concentração de terras é de 0,83. Não há instituição idealizada em textos legais que sobreviva a tamanha disparidade, a exemplo da efetividade da cidadania brasileira, instituição esta cercada de supostas garantias asseguradas na Carta Magna vigente (art. 5º).

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Definitivamente, os representantes do Estado brasileiro, que sempre refletiram os interesses das camadas mais favorecidas da sociedade, ignoraram que, sem melhor distribuição da renda nacional, qualquer menção legal a direitos e garantias fundamentais é de eficácia extremamente limitada. Um Estado ausente nas majoritárias periferias das grandes cidades, onde ainda prevalece a "Lei do Cão", dificilmente formará um cidadão.

As ações por uma sociedade brasileira mais igualitária passam por várias vertentes. Primeiramente, já está historicamente demonstrado que, no campo da educação, pelo exemplo chinês, russo e cubano (revoluções culturais), os investimentos maciços, em todos os níveis, são imprescindíveis ao desenvolvimento individual e coletivo. Eles asseguram, a um contigente cada vez maior de pessoas, um mínimo de igualdade de condições para que os indivíduos possam competir por uma melhoria na qualidade de vida através do trabalho.

Sob o prisma econômico, um ajuste, como o observado a partir do "Plano Real", é medida salutar na diminuição da desigualdade, pois a estabilidade econômica diminui o impacto da corrosão monetária do processo inflacionário sobre aqueles brasileiros que não possuem condições de, através de aplicações financeiras, salvaguardarem o seu poder de compra. Afinal, para eles, resta apenas a garantia do próprio papel-moeda que só é possível se a unidade monetária está fortalecida. Apesar disso, tal conduta econômica é pouco eficaz à construção de uma cidadania plena se é isolada de um verdadeiro crescimento dos níveis de emprego e desenvolvimento da indústria local, como está se constatando no artificialismo das medidas do atual governo na manutenção do chamado "Plano Real".

Politicamente, o país é carente de lideranças legítimas e que postulem metas de superação das grandes desigualdades nacionais. É o vicioso ciclo da ausência de educação do brasileiro médio, de visão limitada pela miséria econômica e urgência de suas circunstâncias. Regiões inteiras, a exemplo do Nordeste, são mantidas no estado de imobilidade política com as mesmas "castas’ alternando-se no poder a várias gerações. É um misto de "dominação pela suposta legalidade" e "dominação pela tradição", como bem definiu o sociólogo alemão Max Weber (Teoria da Dominação), em consagrada obra do pensador Héctor L. Saint-Pierre:

          "O dominado pode legitimar o poder do dominador acreditando na legalidade das ordenações estatuídas e nos direitos de mando dos chamados por essas ordenações a exercer a autoridade, determinado por seu ato o tipo de dominação legal, chamada por Weber de dominação de caráter racional. Ou bem pode acreditar na santidade das tradições mantidas desde tempos antigos e na legitimidade dos indicados por essas tradições a exercer a autoridade, determinando com seu ato o tipo de dominação tradicional".
(In "Max Weber - entre a paixão e a razão", Héctor L. Saint-Pierre, Editora da Unicamp, 1991, p. 134)

Sob o aspecto constitucional, após anos de arbítrio, foi conferido ao país um novo ordenamento jurídico (Poder Constituinte Originário), oriundo de uma Constituição oposta aos ditames do regime anterior. Era a manifestação do "pêndulo da História", tão mencionado por Reale, fruto das contidas aspirações por um Estado Democrático de Direito.

Observa Ferdinand Lassalle, referido por José Afonso da Silva:

"Ferdinand Lassale as entende (as constituições) no sentido sociológico. Para ele, a constituição de um país é, em essência, a soma dos fatores reais do poder que regem nesse país, sendo esta a constituição real e efetiva, não passando a constituição escrita de uma ´folha de papel´ ".
(In "Curso de Direito Constitucional Positivo", José Afonso da Silva, 15ª ed. rev., Malheiros, São Paulo, 01-1998, p. 40)

Utilizando-se da rica e abrangente concepção sociológica de constituição, constata-se que, apesar da importância de se garantir um texto constitucional progressista e democrático, a "constituição real" brasileira é ainda muito distante da "folha de papel". O processo constituinte garantiu os direitos inerentes à cidadania, mas os meios de salvaguarda são ainda precários. Nada mais natural, pois como é possível, no curto intervalo histórico de 10 (dez) anos, contado a partir da promulgação de 5 de outubro de 1998, mudar a mentalidade dos homens componentes do aparelho estatal, especialmente aqueles ligados ao aparelho repressor do Estado, habituados, há mais de duas décadas, com a inobservância aos direitos humanos e garantias fundamentais inerentes à cidadania? Logo, no dia-a-dia, muito precisa ser conquistado.

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Para que o Brasil possa almejar uma cidadania mais efetiva, urge por um grande esforço nacional, não só estatal, mas dos diversos seguimentos organizados da sociedade. Sem uma diminuição do universo de desigualdades constatáveis facilmente na sociedade pátria, as garantias asseguradas pela Carta Magna, mesmo que na presença de um Estado Democrático de Direito, continuarão frágeis e inócuas à brutalidade do país real. Afinal, como avaliou Hans Kelsen, a democracia não se resume a apenas "direito de sufrágio".


2. Ética e Cidadania.

A Ética possui um conceito complexo, debatido por uma universalidade de correntes filosóficas, sendo mais cabível avaliá-la sob o prisma da Moral.

Como bem lembrou o jurista austríaco Hans Kelsen, não há falar-se em paradigma para os sistemas morais. Cada agrupamento humano que se organiza minimamente desenvolve padrões para a correlação entre a chamada moral autônoma e moral social do grupo. Logo, uma fanática e violenta torcida organizada possuirá "códigos morais" distintos de uma comunidade eclesiástica, ou seja, mesmo dentro de uma sociedade nacional, verificar-se-á concepções morais distintas a cada seguimento. Nos dois exemplos citados, não será possível estabelecer um paradigma para a moral. Lembra Kelsen:

          "Se, do ponto de vista de um conhecimento científico, se rejeita o suposto de valores absolutos em geral e de um valor moral absoluto em particular - pois um valor absoluto apenas pode ser admitido com base numa crença religiosa na autoridade absoluta e transcendente de uma divindade - e se aceita, por isso, que desse ponto de vista não há uma Moral absoluta, isto é, que seja a única válida, excluindo a possibilidade da validade de qualquer outra;".
(In "Teoria Pura do Direito", Hans Kelsen, Martins Fontes, 1991, p. 69)

Avaliando um conjunto de sistemas morais de uma sociedade específica, constatar-se-á a existência de referenciais que favorecem, ou ditam, uma certa homogeneidade na conduta dos indivíduos. Certos valores, como uma efetividade mínima da cidadania, apesar dos antagonismos inerentes a todo o fenômeno humano, sustentam-se, não se discutindo serem justos ou injustos se comparados a outra sociedade. O que dará eficácia a tais valores institucionais será o grau de confiabilidade social a eles atribuído. A partir do instante que as instituições perdem a credibilidade, os grupos, que se organizavam em torno das mesmas e de seus respectivos padrões de conduta moral, desvinculam-se, fomentando as contradições do próprio sistema, esvaziando a eficácia institucional. Tais grupos passam a sustentar valores cada vez mais desagregadores. É o fenômeno no qual o Estado perde seu poder de manutenção da chamada "ordem pública", podendo, em casos extremos, levar à destruição dos alicerces basilares da sociedade, dando origem a uma nova forma de organização.

Nota-se que o fenômeno de desagregação moral dos diversos grupos em torno do paternalista Estado brasileiro é uma realidade. Prova disso é o esforço governamental, especialmente do Executivo federal, em se adaptar, equivocando-se, ou não, a uma sociedade cada vez mais insatisfeita com a prestação dos deveres estatais que viriam a salvaguardar minimamente a cidadania pátria. A falta de articulação entre aqueles que ocupam o topo da pirâmide administrativa pública, orientados por uma ética de valores (Weber) e os servidores que atuam na área fim, orientados por uma ética da responsabilidade (idem), é evidente. Possivelmente, tal fato denota acontecimento mais grave, indicando que nunca o país conseguiu organizar um Estado capaz de favorecer uma maior homogeneidade das condutas a benefício da própria coletividade, ou seja, o Estado não foi ainda capaz de consolidar a cidadania, de fixar referências salutares à coletividade.

Em um país dotado de um aparelho estatal gigantesco como o brasileiro, que serve de nascedouro às referências, justas, ou não, é uma obviedade que os dirigidos, além das contradições inerentes a qualquer sociedade, desenvolverão mecanismos para enfrentar a incoerência do Estado. Sendo possível, os grupos sociais em desagregação criarão novos sistemas nocivos para sobreviver ao Estado, ou através das lacunas morais deste. Logo, entende-se a facilidade com que as barganhas ilícitas estatais e paraestatais avançam em sociedades como a brasileira, corroendo o mínimo institucional de proteção à cidadania.

O fenômeno de desagregação ética reflete mudanças comportamentais profundas. Tais modificações interferem em virtudes, antes consideradas necessárias, que cedem lugar a uma excessiva plasticidade de conceitos como honra, solidariedade, fidelidade, respeito, honestidade e cidadania. É o resultado da perniciosa inércia em relação aos novos sistemas desagregadores e que estão em desacordo com a ordem legal vigente.

No país, não se deveria estar em discussão o simplificado conceito de Ética difundido por entidades dos mais variados setores. Não se trata de um debate maniqueísta entre o "Bem" versus o "Mal". A questão central é como diminuir o impacto da pluralidade de sistemas morais nocivos que surgiram para preencher seculares lacunas da incredibilidade geral no Estado e nas demais instituições. Tal descrença generalizada sustenta, há décadas, as mazelas do Brasil. É uma guerra contra um Estado ainda mal articulado e confuso, na qual não há vencedores, há sobreviventes, perdendo, sempre, a cidadania.


3. Cidadania, Repressão e o Estado.

O Estado, como instituição criada para proteger e atender aos interesses da sociedade, deve contar com uma estrutura repressiva bem treinada e suficientemente preparada para fazer a distinção entre o marginal, nocivo à coletividade, e o cidadão, especialmente após os avanços conquistados no vigente texto constitucional. A polícia, em todos os níveis, é, portanto, necessária, porém, quando mal estruturada e mal remunerada, representa uma verdadeira ameaça à cidadania.

O país esteve chocado com as cenas brutais do espancamento e homicídio de homens do povo em Diadema-SP e na Cidade de Deus-RJ. É interessante notar que tal prática dos órgãos de repressão do Poder Público é antiga, até mesmo histórica.

O Brasil foi um dos últimos países do planeta a abolir a escravidão e só o fez por forte pressão das potências econômicas do século XIX, interessadas na expansão dos mercados consumidores nas ex-colônias. Primeira observação: é um forte traço de nossa cultura a brutalização das relações de poder, especialmente da relação cidadão-Estado. Exemplo da assertiva é a declaração do ex-presidente Ernesto Geisel, na obra "Ernesto Geisel", publicada pela Editora da Fundação Getúlio Vargas, conforme matéria publicada na Revista "Veja" de 22 de outubro de 1997 (p. 43), comprovando que a tortura policial é uma verdadeira instituição no Brasil:

          "Tortura: Acho que a tortura, em certos casos, torna-se necessária para obter confissões. O inglês, no seu serviço secreto, realiza com discrição. E o nosso pessoal, inexperiente e extrovertido, faz abertamente. Não justifico a tortura, mas reconheço que o indivíduo é impelido a praticá-la para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior!"

Ao contrário do que pensava o ex-presidente, o serviço secreto inglês, nos poucos casos conhecidos, foi duramente criticado na Inglaterra por tais práticas, como as verificadas no combate às ações do IRA (Irish Republican Army-Exército Republicano Irlandês). Naquele país, ao contrário do Brasil, a tortura é exceção, sendo repudiada por toda a sociedade. A polícia inglesa é mundialmente conhecida por sua perícia e profissionalismo no combate ao crime, sendo, por exemplo, as rondas londrinas realizadas por agentes desarmados, porém preparados para as emergências de uma metrópole.

O agente policial que tortura e mata um cidadão, na maioria das circunstâncias negro e pobre, sem qualquer justificativa, possui o mesmo elemento subjetivo do feitor que "punia" o escravo com mutilações e outras cruéis sevícias. A sensação de poder sobre a vida e a morte das pessoas é, para muitos agentes despreparados, agradável o suficiente para justificar a violência física e moral.

Importante é constatar que a vigente estrutura repressiva, altamente truculenta, reflete a perversão social pátria que mergulha na miséria milhões de compatriotas, fomentando a violência destes para com a sociedade e vice-versa. Ainda, a indiferença governamental com os baixos salários, responsáveis pela atração de profissionais desqualificados e que, fatalmente, prestarão um péssimo serviço público, é origem de muitas mazelas. Segunda observação: remuneração compatível com a idoneidade da função está diretamente relacionada com o interesse de possíveis bons candidatos à àrea de segurança pública.

O cerne das mazelas brasileiras, sendo a violência dos agentes policiais uma das mais revoltantes, está na ausência de um sério programa de distribuição de renda. O abismo social que separa pobres e ricos reflete-se na presença do Estado. Para as classes mais abastadas, o ente estatal concebe uma estrutura mínima e falha, mas existente. Para a base da pirâmide social brasileira, a presença do Estado não é sentida. Terceira observação: o agente público, especialmente o agente policial, que trata com duas e distintas realidades sociais, não se sente compromissado com o Brasil dos pobres, e, apesar de muitas vezes estar sujeito às mesmas dificuldades econômicas. Ele converte o descaso das elites em violência gratuita contra os excluídos. É o novo feitor realizando seu trabalho. No Brasil, infelizmente, cidadania está diretamente vinculada à posição social, ou influência nas estruturas organizacionais do aparato público.

Os tristes episódios, inicialmente mencionados, serviram para trazer em vivas cores uma realidade conhecida, institucionalizada e danosa a qualquer tentativa de consolidação da cidadania. Quarta observação: sem programas efetivos de distribuição de renda, educação e cultura que trabalhem a massacrada auto-estima do povo brasileiro, em pouco tempo, os aludidos incidentes estarão esquecidos e tais episódios serão apenas mais duas contas no rosário da impunidade e da violência institucionalizada.

A mudança na filosofia daqueles que trabalham diretamente com o aparelho de repressão estatal passa por profunda transformação cultural. Lideranças legítimas e combativas dos grupos marginalizados, a exemplo do constatado nos movimentos negros norte-americanos nas décadas de sessenta e setenta, são imprescindíveis. Cidadania é conquista e o texto constituicional, a partir de seus remédios (mandado de segurança, art. 5º, incisos LXIX e LXX; habeas corpus, art. 5º, inciso LXVIII; habeas data, art. 5º, inciso LXXII etc.), é mais um importante instrumento de proteção aos direitos e garantias fundamentais inerentes ao ser humano. Afinal, com o vigente texto constitucional, temos, ao menos, um conjunto de referências para a futura sociedade almejada, capaz de influenciar uma profunda reorganização do Estado, a partir de uma transformação cultural.

Vale transcrever texto do insigne mestre José Afonso da Silva que retrata os progressos e a importância da opção histórica, e também brasileira, por um Estado Democrático de Direito:

          "A democracia, como realização de valores (igualdade, liberdade e dignidade da pessoa) de convivência humana, é conceito mais abrangente do que o Estado de Direito, que surgiu como expressão jurídica da democracia liberal. A superação do liberalismo colocou em debate a questão da sintonia entre o Estado de Direito e a sociedade democrática. A evolução desvendou sua insuficiência e produziu o conceito de Estado Social de Direito, nem sempre de conteúdo democrático. Chega-se agora ao Estado Democrático de Direito que a Constituição acolhe no art. 1º como um conceito-chave do regime adotado, tanto quanto o são o conceito de Estado de Direito Democrático da Constituição da República Portuguesa (art. 2º) e o de Estado Social e Democrático de Direito da Constituição Espanhola (art. 10)".
(In "Curso de Direito Constitucional Positivo", José Afonso da Silva, 15ª ed. rev., Malheiros, São Paulo, 01-1998, p. 116)

Sobre o autor
Cristóvam do Espírito Santo Filho

advogado em Goiânia (GO), sócio do Escritório Marques Siqueira & Espírito Santo Assessoria Jurídica, pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Goiano de Direito Tributário e Universidade Católica de Goiás

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ESPÍRITO SANTO FILHO, Cristóvam. A rudimentar cidadania brasileira e a Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 34, 1 ago. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Trabalho elaborado para fins de avaliação na disciplina Direito Constitucional do Curso de Especialização em Direito Tributário - Convênio IGDT/UCG

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