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As transgressões disciplinares militares em face da Emenda Constitucional 45/2004

Transgressões disciplinares e Emenda Constitucional 45/2004.

Agenda 10/05/2020 às 17:42

A Emenda Constitucional 45/2004 estabeleceu uma nova competência para a Justiça Militar dos Estados e do Distrito Federal. Em face das alterações de natureza constitucional, a Justiça Militar passou a processar e julgar matéria de natureza cível.

A prática de um crime militar traz como consequência a submissão do infrator, militar, estadual, distrital, ou federal, a possibilidade de ser processado e julgado perante a Justiça Militar com base no Código Penal Militar, nas Leis Especiais em face da Lei Federal 13.491/2017, e no Código de Processo Penal Militar.

Deve-se observar, que o militar poderá no exercício de suas funções constitucionais cometer não apenas um ilícito penal, mas também um ilícito de natureza administrativa definido como transgressão disciplinar, ou adotando-se a denominação utilizada pela Marinha do Brasil em seu Regulamento Disciplinar que se encontra em vigência, uma contravenção militar.

Para um melhor entendimento desta questão que passou no âmbito dos Estados e do Distrito Federal a ser de competência da Justiça Militar, e não mais da Justiça Comum, se faz necessário entender melhor o conceito de transgressão disciplinar, que poderá inclusive ter repercussões nos vencimentos dos militares conforme se verifica do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo, e no Código de Ética e Disciplina dos Militares do Estado de Minas Gerais.

O art. 8º, do Regulamento Disciplinar da Aeronáutica, Força Aérea Brasileiro, FAB, Decreto n.º 76.322 de 22 de setembro de 1.975, define transgressão disciplinar como sendo, " toda ação ou omissão contrária ao dever militar, e como tal classificada nos termos do presente Regulamento. Distingue-se do crime militar que é ofensa mais grave a esse mesmo dever, segundo o preceituado na legislação penal militar ". Esta definição, em uma primeira análise e devido à ausência de outros elementos leva a conclusão de que o militar por suas faltas que não cheguem a constituir um crime estaria sujeito apenas e tão somente às transgressões previstas de forma taxativa no regulamento disciplinar a que pertence, respeitando-se o princípio da legalidade e o devido processo legal.

A definição apresentada fica sujeita a uma complementação que é feita pelo parágrafo único, do art. 10, do regulamento disciplinar mencionado, segundo o qual, "São consideradas, também, transgressões disciplinares, as ações ou omissões não especificadas no presente artigo e não qualificadas como crimes nas leis penais militares, contra os Símbolos Nacionais, contra a honra e o pundonor individual militar; contra o decoro da classe, contra os preceitos sociais e as normas da moral; contra os princípios de subordinação, regras e ordens de serviços, estabelecidas nas leis ou regulamentos, ou prescritas por autoridade competente".

O que se percebe com base na leitura do referido dispositivo legal é que esta norma de caráter geral e abrangente, que não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, encontra-se reproduzida quase que na íntegra em na maioria dos regulamentos disciplinares tanto das Forças Armadas, Marinha do Brasil, Exército Brasileiro e Força Aérea Brasileiro, como das Forças Auxiliares, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares dos Estados e do Distrito Federal, em flagrante desrespeito ao princípio da legalidade e ao artigo 5.º, inciso II, da Constituição Federal de 1988.

Desde o advento da Constituição Federal de 1988, Paulo Tadeu Rodrigues Rosa por meio do artigo denominado “Princípio da Legalidade na Transgressão Disciplinar Militar” , que foi publicado em dezembro de 1998, no site Jus.com.br, já defendia a efetiva aplicação do princípio da legalidade nas transgressões disciplinares sob o argumento de que os Regulamentos Disciplinares deveriam ser editados por meio de lei proveniente do Poder Legislativo, e não por meio de decreto editado pelo Poder Executivo, e que as transgressões disciplinares não poderiam ser de caráter geral, ou seja, assim como ocorre com o conceito de crime, a transgressão disciplinar seria nula sem a prévia definição legal e sem que fosse decorrente de uma lei editada pelo Poder Legislativo, princípio da reserva legal.

Na linha da teoria que foi defendida por Paulo Rodrigues Rosa, a Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais editou o Código de Ética e Disciplina dos Militares do Estado, por meio de uma Lei Estadual, a Lei 14.310 de 19 de junho de 2002, buscando estabelecer de forma expressa o que seria uma transgressão disciplinar de natureza leve, média e grave, afastando desta forma o conceito de transgressões disciplinares de natureza geral, como por exemplo, considera-se transgressão disciplinar tudo aquilo que contrariar a honra e o pundonor militar.

O Estado de São Paulo buscando respeitar o princípio da legalidade, e também o princípio da reserva legal, que foram estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, com o estabelecimento de critério objetivos referentes às normas de natureza disciplinar, editou por meio da Assembleia Legislativa Paulista, no ano de 2001, a Lei Complementar 893, de 09 de março de 2001, o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo, que alcança os integrantes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar.

O que se percebe é que o princípio da legalidade e o princípio da reserva legal que foram defendidos pela doutrina mencionada, acabou se refletindo na Lei Federal 13.967 de 26 de dezembro de 2019, que determinou que os Regulamentos Disciplinares e os Códigos de Ética e Disciplina das Forças Auxiliares, Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar, devem observar nestas normas de natureza disciplinar, que por força da Emenda Constitucional 45/2004, serão processadas e julgadas perante a Justiça Militar dos Estados e do Distrito Federal, os princípios da legalidade e do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, e ainda o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade.

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A Lei Federal não deixa dúvidas que o princípio da legalidade que foi defendido desde o início do advento da Constituição Federal de 1988, conforme se verifica do artigo, “Princípio da Legalidade na Transgressão Disciplinar” estava correto, e que o entendimento que foi apresentado era um a decorrência dos princípios constitucionais estabelecidos pelo legislador constituinte originário, e que devem ser observados pela Administração Pública Militar, afastando-se o entendido do in dubio pro administração, uma vez que o art. 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais do cidadão alcança tantos os civis, como os militares, que também são cidadãos na forma do estabelecido no texto constitucional de 1988.

Desta forma, a lição que era defendida por José da Silva Loureiro Neto segundo a qual, "o ilícito disciplinar, não está sujeito ao princípio da legalidade, pois seus dispositivos são até imprecisos, flexíveis, permitindo à autoridade militar maior discricionariedade no apreciar o comportamento do subordinado, a fim de melhor atender os princípios de oportunidade e conveniência da sanção a ser aplicada inspirada não só no interesse da disciplina, como também administrativo" , com o advento da Constituição de 1988 se tornou uma letra morta por contrariar os direitos e garantias fundamentais do cidadão, e até mesmo os tratados internacionais que foram subscritos pela República Federativa do Brasil, com a aprovação do Congresso Nacional.

Na realidade, em tema de liberdade que é um bem sagrado e tutelado pela Constituição Federal, que no art. 5º, caput, assegura que todos são iguais perante a lei, não se pode permitir ou aceitar que normas de caráter geral que não estavam previamente estabelecidas em lei proveniente do Poder Legislativo possam cercear o jus libertatis de uma pessoa, no caso o militar, estadual, distrital, ou mesmo o militar integrante das Forças Armadas.

As normas desta espécie, normas de caráter geral, previstas nos regulamentos disciplinares militares são inconstitucionais, como bem estabeleceu a Lei Federal 13.967/2019, pois permitem a existência do livre arbítrio que pode levar ao abuso e ao excesso de poder. Segundo Hely Lopes Meirelles, "discricionariedade não se confunde com poder arbitrário, sendo liberdade de ação dentro dos limites permitidos em lei".

Na República Federativa do Brasil por força da vigente Constituição Federal, ninguém pode ser punido sem que exista uma lei anterior que defina a conduta como ilícito (civil, criminal, ou mesmo administrativo) sob pena de violação das garantias constitucionais, e da Convenção Americana de Direitos Humanos. Segundo Luiz Flávio Gomes, "não existe diferença ontológica entre crime e infração administrativa ou entre sanção penal e sanção administrativa."

O processo administrativo (civil ou militar) deve respeitar os princípios constitucionais e todas as garantias do Direito Penal devem valer para as infrações administrativas, e os princípios como os da legalidade, tipicidade, proibição da retroatividade, da analogia, do no bis in idem, da proporcionalidade, da culpabilidade etc, valem integralmente inclusive no âmbito administrativo.

O Direito Militar (penal ou disciplinar) é um ramo especial da Ciência Jurídica com princípios e particularidades próprias, mas sujeitando-se as normas constitucionais, Por força da vigente Constituição não se permite que uma norma infraconstitucional se sobreponha ao texto fundamental.

Os regulamentos disciplinares foram impostos por meio de decretos federais (Forças Armadas), e por meio de decreto estaduais (Policias Militares e Corpos de Bombeiros Militares), e estes decretos não podem e não devem se sobrepor a Constituição Federal em respeito ao princípio denominado de hierarquia das leis.

Os princípios constitucionais não deixam dúvidas quanto à aplicação do princípio da legalidade nas transgressões disciplinares, mas ainda existem autoridades administrativas militares que não aceitam como regra a aplicação do princípio da legalidade nas transgressões disciplinares, pois entendem que a discricionariedade é necessária para a manutenção do respeito às instituições militares.

Deve-se registrar, que a observância da hierarquia e da disciplina não pressupõe o descumprimento dos direitos fundamentais assegurados ao cidadão. A Constituição em nenhum momento diferenciou no tocante as garantias fundamentais previstas no art. 5º, o cidadão militar do cidadão civil. Na realidade, a não observância destes princípios significa o desrespeito às regras do jogo, rules of the game, que em um Estado democrático de direito, como observa Luiz Flávio Gomes é previamente estabelecido , e se aplica a todos os cidadãos, sejam eles civis ou militares tanto na esfera judicial como na administrativa.

O processo administrativo pós 88 passou a ter todas as garantias previstas para o processo judicial em atendimento ao art. 5.º, inciso LV, da C.F. Com base neste dispositivo, para que a ampla defesa e o contraditório com todos os recursos a ela inerentes possam ser exercidos é preciso que o acusado tenha conhecimento do ilícito que em tese teria violado e que este já se encontre previsto em norma anterior de forma específica .

Desta forma, o militar estadual e o militar distrital que não concordar com a sanção disciplinar que lhe foi imposta após um regular processo administrativo poderá questionar o ato administrativo perante o Poder Judiciário, mas em razão do advento da Emenda Constitucional 45/2004 esse questionamento não será mais perante a Justiça Comum, e sim perante a Justiça Militar do Estado da Federação a qual pertence, ou do Distrito Federal no caso dos militares que integram a Polícia Militar ou Corpo de Bombeiros Militar daquela Unidade da Federação.

Por fim, com o advento da Lei Federal 13.967/2019, estabelecendo os princípios que devem ser observados nos Códigos de Ética e Disciplina das Forças Auxiliares, uma pá de cal foi colocada quanto a aplicação dos princípios constitucionais em um processo administrativo disciplinar. Desta forma, por força da lei federal, a não observância dos princípios constitucionais traz por consequência a possibilidade da sanção disciplinar imposta pela Administração Militar ser revista pelo Poder Judiciário, no caso o Poder Judiciário representado pela Justiça Militar dos Estados e do Distrito Federal em atendimento ao estabelecido no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988.

 

 

Sobre o autor
Paulo Tadeu Rodrigues Rosa

PAULO TADEU RODRIGUES ROSA é Juiz de Direito. Mestre em Direito pela UNESP, Campus de Franca, e Especialista em Direito Administrativo e Administração Pública Municipal pela UNIP. Autor do Livro Código Penal Militar Comentado Artigo por Artigo. 4ª ed. Editora Líder, Belo Horizonte, 2014.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O texto tem por objetivo analisar a nova competência da Justiça Militar dos Estados e do Distrito Federal para julgar matéria de natureza cível decorrente dos atos de natureza disciplinar praticados pela Administração Pública Militar em face das alterações decorrentes da Emenda Constitucional 45/2004.

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