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Crise do coronavírus e responsabilidade por perdas na renda fixa

A Instrução CVM nº 555/2014, o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil.

Agenda 11/05/2020 às 07:36

A atual crise decorrente da pandemia provocou prejuízos em uma minoria dos fundos de renda fixa (art. 109 da Instrução CVM 555, de 17-12-2014). Quem deve arcar esses prejuízos? As corretoras? Os administradores? Os próprios investidores?

A atual crise decorrente da pandemia provocou prejuízos em uma minoria dos fundos de renda fixa (art. 109 da Instrução CVM 555, de 17-12-2014). Quem deve arcar esses prejuízos? As corretoras? Os administradores? Os próprios investidores? Vamos analisar o tema de forma estritamente técnica, à luz da Instrução CVM nº 555/2014, do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil.

1.Introdução. Conceitos básicos: quem é quem e o que é o quê.

O advento da pandemia decorrente do novo Coronavírus impactou o mercado financeiro. Alguns fundos de renda fixa sofreram prejuízos.

O presente artigo trata de perdas decorrentes em fundos de renda fixa em decorrência do impacto da pandemia nos ativos financeiros. Não abrange outros tipos de perdas, nem outros tipos de fundos. Veremos que há vários tipos de fundos de renda fixa e iremos tratar de todos eles.

Antes de tratar do tema “responsabilidade perdas na renda fixa”, é preciso explicar o que é o quê e quem é quem. O tema é relativamente simples, com definições expressas no direito positivo.

1.1. Comissão de Valores Mobiliários (CVM)

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) é autarquia federal regida pela Lei n.º 6.385, de 7 de dezembro de 1976. Tem a competência (art. 8º, I) de regulamentar as matérias previstas nessa Lei, inclusive “normas a serem observadas pelos administradores na gestão de carteiras” (art. 23, § 2º). Veremos adiante quem são os “administradores” e o que são “carteiras”.

1.2. Definição de fundo de investimento.

Para fins da Instrução CVM nº 555, de 17-12-2014, norma que rege o tema, a definição de fundo de investimento está no art. 3º:

“Art. 3º O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros.”

De acordo com a leitura gramatical desse dispositivo, o fundo de investimento não é uma pessoa, mas sim um patrimônio. O titular desse patrimônio são os quotistas (ou seja, os investidores ou poupadores). Contudo, o fundo de investimento “adquire” ativos. Como isso é possível? O fundo, por meio do gestor (adiante veremos quem é o gestor e quem é o administrador) adquire os ativos. Juridicamente, portanto, é fundo de investimento é uma pessoa formal.

Pessoas formais são os órgãos, conjuntos de bens e uniões de pessoas que, sem personalidade jurídica, ostentam capacidade para a prática de certos atos. É saída doutrinária para explicar as hipóteses em que, nos termos da lei, não existe personalidade, mas existe capacidade para a prática de certos atos. Caso contrário, seria necessário que o espólio, a massa falida, o condomínio edilício, as sociedades irregulares (que são exemplos de pessoas formais) fossem registradas, o que levaria a inúmeros problemas.

Portanto, o fundo de investimento pode praticar atos, como se pessoa jurídica fosse. Por essa razão ele adquire ativos (exemplo: imóveis, títulos da dívida pública).

1.2.1. Classificação dos fundos de investimento.

O art. 108 da Instrução CVM nº 555/2014 dispõe que fundos de investimentos podem ser classificados, quanto à composição, em quatro tipos: 1) Fundo de Renda Fixa; 2) Fundo de Ações; 3) Fundo Multimercado; e 4) Fundo Cambial.

Essa classificação é taxativa e não meramente exemplificativa. Ela abrange os fundos de investimento em cotas de fundos de investimento (FIC), que são os fundos que aplicam recursos em outros fundos.

Neste artigo nos interessam apenas os fundos de renda fixa.

1.2.1.1. Tipos de fundos de investimentos de renda fixa.

As regras aplicáveis para os fundos de renda fixa estão nos arts. 109 a 114 da Instrução CVM nº 555/2014. Por óbvio, aplicam-se também aos fundos de renda fixa as regrais gerais positivadas para fundos de investimento.

O art. 109 estabelece que o principal fator de risco dos fundos de renda fixa deve ser a variação da taxa de juros, de índice de preços, ou ambos. O art. 110 dispõe que fundos de renda fixa devem conter, no mínimo, 80% (oitenta por cento) da carteira em ativos relacionados “ao fator de risco que dá nome à classe”.

Os fundos de renda fixa podem ser dos seguintes tipos ou terem os seguintes atributos:

Por uma razão de matemática financeira, os fundos de renda fixa de curto prazo (CP), devem apresentar menor volatilidade. Essa foi razão pela qual a Instrução CVM nº 375, de 14-8-2002, estabelecia critérios para que fundos com essas características pudessem efetuar a contabilidade sem as regras da marcação a mercado, exigidas a partir do advento da Instrução CVM nº 365, de 29-5-2002. Essas normas foram revogadas pela Instrução CVM nº 438, de 12-7-2006, que manteve a regra geral de contabilização dos ativos a preços de mercado.

Além disso, a teor do art. 118, os fundos de investimentos que mantiverem recursos em percentual superior a 50% de seu patrimônio líquido em ativos de emissores diferentes da União Federal devem incluir à sua denominação o sufixo “Crédito Privado”, razão pela qual esses fundos são vistos um sexto tipo de fundo de investimento de renda fixa.

1.3. Definição de administrador.

Não se confunde administrador do fundo com o gestor do fundo.

De acordo com a definição dada pelo art. 2º, I, da Instrução CVM nº 555/2014, administrador do fundo é a “pessoa jurídica autorizada pela CVM para o exercício profissional de administração de carteiras de valores mobiliários e responsável pela administração do fundo”. Essa definição são não explica exatamente quem é o administrador.

Vejamos, então, o que diz o art. 6º da Instrução CVM nº 555/2014:

“Art. 6º O fundo será constituído por deliberação de um administrador a quem incumbe aprovar, no mesmo ato, o regulamento do fundo.”

Agora está claro: administrador do fundo é a pessoa que cria o fundo de investimento.

A Instrução CVM nº 555/2014 estabelece uma série de regras e obrigações para o administrador. Por ora, vamos destacar o seguinte:

“Art. 78. A administração do fundo compreende o conjunto de serviços relacionados direta ou indiretamente ao funcionamento e à manutenção do fundo, que podem ser prestados pelo próprio administrador ou por terceiros por ele contratados, por escrito, em nome do fundo.”

Trataremos da questão da responsabilidade do administrador do fundo adiante. A Instrução CVM nº 555/2014 é clara a respeito.

Por enquanto vamos prosseguir com as definições básicas do tema.

1.4. Definição de gestor.

Na gíria do mercado financeiro, o gestor é chamado de “administrador da carteira”, exatamente para diferenciar do administrador do fundo.

O art. 2º, XXX, da Instrução CVM nº 555/2014 define quem é o gestor:

“Art. 2º (...) XXX – gestor: pessoa natural ou jurídica autorizada pela CVM para o exercício profissional de administração de carteiras de valores mobiliários, contratada pelo administrador em nome do fundo para realizar a gestão profissional de sua carteira.”

Vimos acima que o fundo, por ser pessoa formal, pode adquirir ativos. Por meio do gestor, pessoa contratada pelo administrador, o fundo irá praticar atos.

Vamos frisar: o gestor é pessoa contratada pelo administrador do fundo de investimento.

1.5. Definição de distribuidor.

O art. 2º, XX, da Instrução CVM nº 555/2014 define quem é o distribuidor:

“Art. 2º (...) XX – distribuidor: intermediário contratado pelo administrador em nome do fundo para realizar a distribuição de suas cotas.”

O inciso XX é bem claro: o distribuidor é contratado pelo administrador do fundo para vender quotas do fundo no mercado.

Os distribuidores podem ser corretoras ou distribuidoras de valores mobiliários, que são instituições financeiras, fiscalizadas pelo Banco Central e pela CVM.

Para simplificar: distribuidor é quem vende o produto financeiro (quotas do fundo de investimento) para o investidor.

1.6. Definição de investidor (“cotista”).

A definição de quotista (ou “cotista”, de acordo com a grafia empregada pela norma) está prevista no art. 2º, XIV, da Instrução CVM nº 555/2014:

“Art. 2º (...) XIV – cotista: aquele que detém cotas de um fundo de investimento, mediante sua inscrição no livro de cotistas do fundo, que pode se dar inclusive por meio de sistemas informatizados.”

Há uma imprecisão técnica nesse dispositivo: o quotista não é “detentor”, no sentido que se utiliza esse vocábulo no direito civil, mas sim proprietário de quotas do fundo de investimento.

Assim, o investidor, pessoa que aplica recursos de sua poupança em fundos de investimento, é tratado pelo nome de “cotista” pela Instrução CVM nº 555/2014.

1.7. Definição de termo de adesão e de ciência de risco.

O art. 2º, XLVII, da Instrução CVM nº 555/2014 não define exatamente o que é termo de adesão ou termo ciência de risco, mas sim remete ao art. 25. O caput do art. 25 e seus incisos dispõem que o quotista “deve atestar, mediante formalização de termo de adesão e ciência de risco, que: I – teve acesso ao inteiro teor: a) do regulamento; e b) da lâmina, se houver. II – tem ciência: a) dos fatores de risco relativos ao fundo; b) de que não há qualquer garantia contra eventuais perdas patrimoniais que possam ser incorridas pelo fundo; c) de que a concessão de registro para a venda de cotas do fundo não implica, por parte da CVM, garantia de veracidade das informações prestadas ou de adequação do regulamento do fundo à legislação vigente ou julgamento sobre a qualidade do fundo ou de seu administrador, gestor e demais prestadores de serviços; e d) se for o caso, de que as estratégias de investimento do fundo podem resultar em perdas superiores ao capital aplicado e a consequente obrigação do cotista de aportar recursos adicionais para cobrir o prejuízo do fundo”.

Na realidade, a norma não impõe “dever” ao quotista – pessoa protegida pela norma –, mas sim ônus (no exato sentido que esse termo tem no direito civil) ao administrador, como veremos adiante, quando trataremos das hipóteses de responsabilidade do administrador.

A Instrução CVM nº 555/2014 estabelece regras para o termo de adesão dos fundos de renda fixa:

Além disso, para os fundos de investimento qualificados como de crédito privado (art.118), deve o termo de adesão e ciência de risco “incluir os destaques necessários” (art. 118, I).

1.8. Definição de banco de varejo.

A definição de banco de varejo não está na Instrução CVM nº 555/2014.

Essa definição, porém, é bastante simples: banco de varejo (retail bank), banco comercial ou banco múltiplo com carteira comercial é aquilo que pessoas comuns entendem por banco. Essa definição nos será relevante nas seções 2, 3 e 4 deste trabalho.

2.Responsabilidade pelas perdas em fundos de renda fixa.

Antes de analisar o tema das perdas na renda fixa sob o prisma jurídico, é necessário analisar o que é risco sob o aspecto econômico. Veremos que a definição de risco na ciência econômica não é a mesma que no direito.

2.1. Crises econômicas à luz da história econômica. Análise de risco como atividade profissional.

Crises econômicas são recorrentes e fazem parte da história do capitalismo. Não se pode prever quando ou como será a próxima crise. Mas enquanto existir capitalismo, existirão crises. Qualquer pessoa que atue no mercado financeiro sabe disso. Aliás, qualquer calouro minimamente letrado do curso de ciências econômicas sabe que irá vivenciar algumas ao várias crises ao longo da carreira.

Estamos, neste momento, na crise do coronavírus.

Vejamos, rapidamente, as últimas crises internacionais.

A última crise internacional havia sido em 2010. Foi a Crise do Euro. Pode-se afirmar que o estopim dessa crise teria ocorrido em outubro de 2009, quando o então recém-eleito Primeiro Ministro da Grécia, George Papandreou, revelou que o déficit das contas públicas anuais do país era, na verdade, de 12,7% do PIB e não de apenas 6% como acreditava ou fingia acreditar o mercado. Com isso, a credibilidade de a Grécia de continuar honrando seus compromissos financeiros ficou seriamente abalada. O temor era que países como Portugal, Irlanda, Espanha e, pior, Itália não conseguissem pagar ou rolar suas dívidas.

Antes da Crise do Euro, havia ocorrido da Crise do Subprime em 2008. Há um certo consenso no sentido de que a existência dessa crise ficou visível por ocasião do pedido de falência do banco Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008. Pode parecer risível nos dias de hoje, mas na época muita gente pensou que seria o fim do capitalismo... O pânico tomou conta dos mercados e todos os ativos, inclusive o ouro (considerando a cotação em dólar), caíram de preço.

Antes disso houve em 2000, a Crise da Bolha da Internet (dot-com bubble crisis), a Crise da Moratória Russa (1998), a Crise da Ásia (1997)... e por aí vai, a lista é muito longa.

Isso para falar apenas em crises internacionais, já que o Brasil, além de afetado pelas crises internacionais, conta também com as crises econômicas próprias. Além do episódio protagonizado pelo inesquecível Fernando Collor de Melo, tivemos diversas crises causadas por fatos puramente domésticos. Para não adentrarmos no controvertido campo da política, vamos deixar de exemplificar as crises econômicas domésticas...

Enfim, crises econômicas fazem parte do quotidiano mundial... e do Brasil, de forma ainda mais intensa. Nesta crise de 2020 não há nada de novo, nada que fuja da normalidade histórica: apenas mais uma crise. Não é a primeira nem será a última crise da história do capitalismo.

Já era tempo, portanto, de uma nova crise internacional: entre a última (em 2010) e a presente (2020) decorreu tempo superior à média.

Uma crise econômica, tal como a decorrente da atual pandemia, pode ser considerada um “caso fortuito” ou um evento de “força maior” para o dono da lanchonete, para a costureira ou para o microempresário que não conseguirá pagar o aluguel. Para essas pessoas, a Crise do Coronavírus, como qualquer crise econômica, pode ser considerada – conforme o caso – um caso fortuito ou de força maior com efeitos inevitáveis a justificar mora ou inadimplemento contratual.

Não se pode dizer o mesmo, por óbvio, para as instituições financeiras ou para pessoas que exerçam algum tipo de atividade autorizada ou fiscalizada pelo Banco Central.

Ainda que fosse considerada caso fortuito e de força maior, veremos adiante se os efeitos da Crise do Coronavírus seriam ou não evitáveis, de modo a concluir pela incidência de eventual excludente de responsabilidade (art. 393 do Código Civil), bem como iremos verificar o que ocorreu na prática, mediante análise de todos fundos de renda fixa abertos à captação com informações disponíveis dos cinco maiores bancos de varejo brasileiros (seção 3 deste trabalho). Para profissionais do mercado financeiro, crises econômicas são eventos comuns: qualquer pessoa com grau superior de educação que atue na área financeira sabe que irá vivenciar ao longo da vida algumas (ou muitas) crises econômicas, sejam domésticas ou internacionais.

Profissionais do mercado financeiro trabalham com risco. É obrigação das instituições financeiras tomar cautelas contra riscos. Não é por acaso que, até no Brasil, gestão temerária de instituições financeiras é crime. A despeito de ser tipo penal aberto, o crime de gestão temerária de instituição financeira é constitucional. O sistema jurídico exige desses profissionais medidas de proteção contra riscos.

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É risível imaginar que uma instituição financeira poderá, sem sofrer consequências, deixar honrar compromissos em face de outra instituição financeira alegando que há uma “crise”. É claro que – em casos de crises econômicas ou não – instituições financeiras de cada país podem receber ajuda (bail-out) do banco central respectivo. Na verdade, uma das precípuas funções de um banco central é justamente funcionar como lender of last resort (“emprestador de último recurso”), exatamente para evitar rupturas no sistema financeiro. No mercado financeiro, risco é coisa séria e parte do dia a dia.

Pessoas comuns, porém, não têm essa consciência nem são obrigadas a tanto pela lei.

2.1.1. Definição de risco na ciência econômica e definição de risco no direito.

Risco, na economia, é um evento nocivo passível de cálculo.

Esse cálculo é feito tanto no que se refere à possibilidade de ocorrência do evento (em termos percentuais), como no tocante ao montante do prejuízo (dano potencial) na hipótese de ocorrência do evento nocivo.

Se um risco não pode ser calculado, há o que os economistas chamam de “incerteza”.

Há outros conceitos, na ciência econômica, relacionados a risco, como Tail Risk e Value at Risk (VaR).

A grosso modo, podemos dizer de uma forma simplificada que Tail Risk é a parcela do risco que, embora possa ser calculada, é desprezada em razão de probabilidade pífia de ocorrência. Vamos dizer que Value at Risk trabalha de forma semelhante: calcula, em um intervalo de tempo, o dano potencial máximo, em uma análise probabilística de ocorrência do evento nocivo. Por exemplo, em um modelo com VaR de 98%, é calculado o valor máximo de perda (dano potencial) na ocorrência de evento danoso (risco, em termos percentuais) para 98% do capital.

O tema é mais complexo, mas bastam essas definições simplificadas para se compreender o que vem a ser risco para os economistas.

Em direito, risco não é nada disso.

Risco, juridicamente, é o evento futuro e incerto com consequências danosas. Se o evento futuro for certo, trata-se de termo. Se o evento for presente, trata-se de fato conhecido.

Risco, para juristas, é algo imponderável, com consequências imprevisíveis.

O direito pode estabelecer quais os riscos (eventos) serão arcados por cada parte. É o que ocorre, por exemplo, em um contrato de seguro: os riscos X, Y e Z estarão cobertos pelo seguro.

2.1.2. História recente da aplicação do direito em perdas sofridas por investidores.

A existência de perdas em fundos de renda fixa não é inédita. Em um caso diferente do atual, em 2002, a CVM determinou mudança na forma de contabilidade dos ativos do que era, à época, chamados de fundos de investimento financeiro. Os fundos passaram a contabilizar o valor dos ativos pelos preços de mercado (marcação a mercado) e não por meio de atualização dos preços unitários (marcação pela curva). A aplicação dessa determinação, contida na Instrução CVM nº 365, de 29-5-2002, provocou decréscimo no valor das quotas de vários fundos de renda fixa.

Muitos investidores recorreram ao Judiciário brasileiro pretendendo ressarcimento pelos prejuízos sofridos. Não se tratava do que, em direito administrativo, é chamado de “ato do príncipe” (no caso, da CVM), pois a marcação a mercado já constava de normas do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central.

Houve decisões do STJ favoráveis (ex. AgRg no AREsp 658.608) e desfavoráveis (ex. AgInt no REsp 1.455.407) aos investidores. Essas decisões não apreciaram a questão à luz da Instrução CVM nº 555/2014, que simplesmente não existia na época.

A questão era distinta e na época estava em vigor o Código Civil de 1916, que estabelecia a responsabilidade fundada na culpa. A jurisprudência foi errática: ora desfavorável, ora favorável aos investidores.

É possível que, em defesa, venham agora as instituições financeiras a apontar as decisões desfavoráveis aos investidores e a omitir as favoráveis. Isso não é, no sistema de países de tradição romana, considerado litigância de má-fé.

Por ocasião das crises de 2008 e 2010, a Instrução CVM nº 555/2014 não estava em vigor. A Instrução CVM nº 555/2014 prevê a possibilidade de fundos de renda fixa aplicar parte dos recursos em ativos de risco – mas estabelece um amplo rol de obrigações que devem ser cumpridas pelo administrador, pelo gestor e pelo distribuidor. Por isso se diz que no mercado financeiro “pode até vender peixe podre, desde que informe que está a vender peixe podre”...

Seria interessante se, à luz do Securities Act of 1933 dos Estados Unidos da América, o Judiciário americano entendesse, por exemplo, inaplicáveis as exceções contidas nas Seções 5 e 27-A (Regulation “S” Safe Harbor) para investidores americanos que investiram nos fundos brasileiros. A regra geral do direito americano é no sentido de que, salvo exceções expressas, qualquer oferta pública de valores mobiliários (como é o caso de quotas de fundos de investimento) deve ser registrada nos EUA. Nessa hipótese, as chances de condenação do administrador ao ressarcimento das perdas em fundo de renda fixa seriam muito altas, caso se concluísse pela aplicação da legislação brasileira, exatamente pelas diversas razões expostas neste trabalho. Um juiz americano simplesmente cotejaria as normas com os fatos e, verificando o descumprimento da norma, condenaria o administrador, o gestor e o distribuidor, conforme o caso, ao ressarcimento dos prejuízos sofridos pelos investidores.

Já no Brasil as possibilidades são incertas, dado que o Judiciário brasileiro não aplica o disposto na legislação e nos contratos da mesma forma que o Judiciário americano. A tão falada “falta de segurança jurídica” decorre precipuamente disto: nos EUA, as leis e contratos são cumpridos; no Brasil, o cumprimento é incerto, contando com a usual morosidade e imprevisibilidade do Judiciário. Por isso se diz que, “no Brasil, até o passado é incerto”.

O notório episódio alcunhado de “Petrolão” foi emblemático: o Judiciário americano condenou a Petrobras a ressarcir investidores americanos, uma vez apurados certos fatos pela também notória investigação “Lava Jato”, aplicando a lei do país que entendeu cabível. No Brasil, o mesmo inocorreu.

Seriam as leis brasileiras mais permissivas?

No que se refere aos fundos de investimento de renda fixa, A Instrução CVM nº 555/2014 é muito detalhada, descrevendo condutas e estabelecendo expressamente a responsabilidade do administrador, inclusive solidária com o gestor e com o administrador. Não bastasse, há o Código de Defesa do Consumidor, com regras protetivas, e o Código Civil, que estabelece a teoria do risco e prevê excludentes da responsabilidade.

Para fundos de investimento, portanto, a legislação brasileira é muito robusta.

Modelos econômicos sempre calculam riscos. Esse cálculo é inerente à atividade dos profissionais do mercado financeiro. Mas, e o direito? O que diz o direito?

2.2. Aplicação do direito positivo brasileiro às perdas em fundos de renda fixa

Vamos tratar da responsabilidade pelas perdas nos fundos de renda fixa à luz do direito. Vamos tratar do tema à luz do direito positivo, uma vez que não é necessário recorrer a teorias estapafúrdias, a “pirotecnias” jurídicas ou a qualquer subterfúgio, tão a gosto dos maus juristas, para que se obtenha uma conclusão lógica. Se a norma existe, ela deve ser aplicada. Simples assim.

É isto que nos importa: o que diz o direito brasileiro a respeito da responsabilidade pelos danos causados às pessoas que investiram em fundos de renda fixa?

Vamos dividir questão em três partes: 1) responsabilidade decorrente da Instrução CVM nº

 555/2014; 2) responsabilidade decorrente do Código de Defesa do Consumidor; 3) responsabilidade decorrente do Código Civil.

2.2.1. Responsabilidade decorrente da Instrução CVM nº 555/2014.

Antes de descrevermos as atividades do administrador, do gestor e do distribuidor potencialmente sujeitas à responsabilidade civil por perdas em fundos de renda fixa, é adequado, desde logo, transcrever o dispositivo da Instrução CVM nº 555/2014 que trata da responsabilidade solidária de todos eles:

“Art. 79. A contratação de terceiros devidamente habilitados ou autorizados para a prestação dos serviços de administração, conforme mencionado no art. 78, é faculdade do fundo, sendo obrigatória a contratação dos serviços de auditoria independente referida no art. 65 e, quando não estiver o administrador devidamente autorizado ou credenciado para a sua prestação, os serviços previstos nos incisos III, IV, V e VI do § 2º do art. 78.

§ 1º Compete ao administrador, na qualidade de representante do fundo, efetuar as contratações dos prestadores de serviços, mediante prévia e criteriosa análise e seleção do contratado, devendo, ainda, figurar no contrato como interveniente anuente.

§ 2º Os contratos firmados na forma do § 1º, referentes aos serviços prestados nos incisos I, III e V do § 2º do art. 78, devem conter cláusula que estipule a responsabilidade solidária entre o administrador do fundo e os terceiros contratados pelo fundo por eventuais prejuízos causados aos cotistas em virtude de condutas contrárias à lei, ao regulamento ou aos atos normativos expedidos pela CVM.

§ 3º Independente da responsabilidade solidária a que se refere o § 2º, o administrador responde por prejuízos decorrentes de atos e omissões próprios a que der causa, sempre que agir de forma contrária à lei, ao regulamento ou aos atos normativos expedidos pela CVM.” (original sem destaques)

O dispositivo é de clareza solar: o administrador responderá de forma solidária com o gestor e com o distribuidor pelos danos causados às pessoas que adquiriram quotas de fundos sempre que existir violação à lei, ao regulamento do fundo ou aos atos normativos da CVM.

2.2.1.1. Hipóteses de responsabilidade do administrador previstas na Instrução CVM nº 555/2014.

A Instrução CVM nº 555/2014 estabelece uma série de condutas e atos que devem ser praticadas pelo administrador. A violação do estabelecido pelas normas, seja por ação ou por omissão, sujeita o administrador às sanções disciplinares no âmbito administrativo, sem prejuízo da responsabilidade pelos prejuízos causados (art. 79, § 3º).

Além disso, o administrador também responde por quaisquer infrações ou irregularidades que venham a ser cometidas sob sua administração (art. 92, I).

Não vamos tratar dos aspectos do processo administrativo sancionador de competência da CVM ou do Banco Central, muito menos dos aspectos penais. Interessa-nos aqui apenas a questão da responsabilidade por prejuízos em fundos de renda fixa. O § 3º do art. 79 é claro ao estabelecer que o administrador responde por prejuízos sempre que agir de forma contrária aos atos normativos da CVM.

Obviamente isso não se confunde com o disposto em outras normas que também podem ensejar a responsabilidade do administrador, como o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil.

Assim, neste item vamos listar, de forma exemplificativa, ações e omissões que violam regras estabelecidas pela Instrução CVM nº 555/2014 e podem ensejar responsabilidade do administrador do fundo de investimento por prejuízos causados aos quotistas, que são as pessoas protegidas pela norma:

Não basta apenas disponibilizar a lâmina: o art. 43 estabelece que o administrador deve assegurar que potenciais investidores tenham acesso à lâmina antes de seu ingresso no fundo. Trata-se de obrigação de resultado e não apenas de atividade.

O material de divulgação aludido no art. 17, I, da Instrução CVM nº 555/2014 deve atender ao disposto nos arts. 49 a 54. Obviamente, a existência de advertência contra os riscos contida na lâmina, no regulamento ou em site na internet não basta: é preciso que a advertência exista em todos os materiais de divulgação.

Também não é suficiente que o material de divulgação simplesmente afirme que “existe risco”: é preciso, ainda que minimamente, que ele descreva quais seriam os riscos (ex. aumento das taxas de juros, insolvência dos emissores de ativos da carteira), bem como que essa descrição seja compatível com a política de investimentos estabelecida no regulamento do fundo. Lista exemplificativa ou exaustiva de riscos existentes para todo e qualquer tipo de investimento existente no mundo não atende ao exigido pela norma.

Ao mesmo tempo em que a Instrução CVM nº 555/2014 permite que os fundos de investimento de renda fixa apliquem percentuais dos recursos em ativos de risco, exige que os materiais de divulgação explicitem quais são os riscos.

Para que se tenha absoluta certeza de que o investidor sabia dos riscos, o art. 144, I, da Instrução CVM nº 555/2014 exige que o administrador mantenha pelo prazo mínimo de cinco anos o termo de adesão e ciência de riscos devidamente assinado pelo investidor.

Pergunta-se: poderia esse documento existir na forma eletrônica? A norma não diz. Com efeito, o inciso I do art. 144 da Instrução CVM nº 555/2014 exige que o termo de adesão e ciência de riscos esteja assinado pelo investidor.

Caso se admita que termo de adesão e ciência de riscos possa ser mantido em forma eletrônica, deverá ser observado o art. 10 da Medida Provisória nº 2.200-2/2001, que estabelece os critérios para a validade dos documentos e da assinatura eletrônica. Isso significa que o termo de adesão e ciência de riscos deverá estar certificado, bem como que o administrador deverá exigir que o investidor esteja apto a assinar eletronicamente. Ausente um desses requisitos, o art. 144, I, da Instrução CVM nº 555/2014 não estará atendido.

O § 2º do art. 10 da Medida Provisória nº 2.200-2/2001 até abre espaço para outras entidades certificadoras fora do âmbito da Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), desde “desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento”. O § 2º do art. 10 se refere a entidades certificadoras fora do âmbito da ICP-Brasil.

Obviamente, documentos eletrônicos mantidos por uma das partes envolvidas ou por empresa sob controle ou contratada por apenas uma das partes não atendem sequer ao disposto no § 2º do art. 10. É preciso que o certificado (ainda que fora da ICP-Brasil) provenha que uma empresa ou entidade minimamente imparcial. Caso assim não o fosse, o documento pode ser facilmente alterado pela parte que controla o processo de produção e manutenção do documento eletrônico.

Como se vê, não há falha da norma quanto à ciência dos riscos: ou o investidor estava ciente e correu os riscos ou o administrador não cumpriu as obrigações e deve indenizar o investidor.

Por fim, o fato de administrador cumprir o disposto no inciso V do art. 89 da Instrução CVM nº 555/2014 (“É vedado ao administrador (...) prometer rendimento predeterminado aos cotistas”) não é uma “carta branca” para descumprir o restante da norma.

2.2.1.2. Hipóteses de responsabilidade do gestor previstas na Instrução CVM nº 555/2014.

Também o gestor tem responsabilidades. Ele é a pessoa que escolherá, dentro do que lhe é permitido, os ativos que irão compor a carteira do fundo.

Ao contrário do que pensam os leigos, o mercado financeiro é mais matemática do que qualquer outra coisa. No cinema aparecem eufóricos profissionais do mercado financeiro bebendo, usando drogas e se divertindo com prostitutas em ambientes luxuosos, simplesmente porque um filme com um nerd coletando dados e trabalhando durante horas em planilhas de Excel seria muito chato. Inviável, em termos comerciais.

Voltemos ao que nos interessa, que é a questão jurídica. Vamos ver alguns dos possíveis casos em que pode existir responsabilidade do gestor do fundo de investimento nos termos da Instrução CVM nº 555/2014. Novamente não iremos tratar de eventuais responsabilidades perante a CVM muito menos dos aspectos criminais. Interessa-nos aqui apenas condutas que podem ensejar, nos termos da Instrução CVM nº 555/2014, responsabilidade civil por perdas nos fundos de renda fixa.

Há regras de conduta impostas ao gestor que se aplicam a apenas determinados tipos. Vejamos, inicialmente, alguns exemplos de hipóteses aplicáveis a todos os tipos de fundos de renda fixa:

As hipóteses gerais de responsabilidade civil do gestor são menos numerosas que as do administrador.

Para fundos de investimento de renda fixa “simples”, enseja responsabilidade civil o gestor que deixar de adotar estratégia de investimento que proteja o fundo de riscos de perdas e volatilidade (art. 113, § 3º). Também enseja responsabilidade erro de avaliação quanto ao risco de títulos emitidos por instituições financeiras: a expressão utilizada pela Instrução CVM nº 555/2014 é “classificação de risco atribuída pelo gestor, no mínimo, equivalente àqueles atribuídos aos títulos da dívida pública federal” (art. 113, I, “b”).

Para fundos de “curto prazo” e para fundos de renda fixa “referenciados”, a responsabilidade também decorre de erro de avaliação quanto ao risco: a Instrução CVM nº 555/2014, referindo-se a ativos que podem ser objeto do fundo, utiliza a expressão “sejam considerados de baixo risco de crédito pelo gestor” (art. 111, I, “b”, para fundos de “curto prazo”; art. 112, II, “b”, para fundos de renda fixa “referenciados”)

Como se vê, a Instrução CVM nº 555/2014 concede ao gestor flexibilidade para a escolha dos ativos que irão compor a carteira do fundo. E é assim exatamente porque a função do gestor é fazer essas escolhas.

Isso não significa que o gestor não responde por escolhas erradas, pois a captação de poupança popular não é um “cassino” em que pessoas fazem “apostas”. Ao revés, a captação de poupança popular é regulada – e bem regulada. Pessoas comuns podem torrar recursos próprios como bem entenderem, mas pessoas que captam poupança são responsáveis pelo escolhas e investimentos efetuados. O gestor é um profissional qualificado e, como ocorre em qualquer profissão, responde civilmente pelos erros cometidos nos termos da legislação própria.

Assim, ao mesmo tempo em que há flexibilidade para o gestor decidir a respeito dos riscos dos ativos que irão compor a carteira do fundo, há responsabilidade por falhas ou erros cometidos no processo decisório.

2.2.1.3. Hipóteses de responsabilidade do distribuidor previstas na Instrução CVM nº 555/2014.

O distribuidor, como vimos no item 1.5 deste trabalho são normalmente corretoras ou distribuidoras de valores mobiliários, que são instituições financeiras, fiscalizadas pelo Banco Central e pela CVM.

O distribuidor vende o produto financeiro ao investidor.

A despeito da plena aplicabilidade do Código de Defesa também ao distribuidor, tal como veremos adiante, a Instrução CVM nº 555/2014 estabelece hipóteses de responsabilidade civil decorrentes da atuação do distribuidor. Algumas condutas exigidas cujo descumprimento ensejam responsabilidade civil estão elencadas no art. 33. Podemos dar como exemplos deixar o distribuidor de fornecer ao cliente lâmina, regulamento do fundo ou termo de adesão e ciência de riscos (inciso I do art. 33) e deixar de zelar que o investidor final tenha pleno acesso a todos os documentos e informações previstos na Instrução CVM nº 555/2014 (inciso IX do art. 33).

A preocupação da Instrução CVM nº 555/2014 com a efetiva informação dos investidores é constada em vários dispositivos. Assim, deve o distribuidor, inclusive na internet, as informações devem ser “verdadeiras, completas, consistentes e não induzir o investidor a erro” (art. 40, § 1º, I).

Outro exemplo está no art. 49, que se refere a materiais de divulgação do fundo de investimento. Destaca-se a exigência de expressa advertência contra os riscos do investimento:

"Art. 49. Qualquer material de divulgação do fundo deve: (...) II – ser elaborado em linguagem serena e moderada, advertindo seus leitores para os riscos do investimento; (...)"

Não basta a existência de advertência contra os riscos contida na lâmina, no regulamento ou em site na internet. É preciso que a advertência exista no material de divulgação que chega ao público. Mais: todos os materiais de divulgação devem atender ao disposto no art. 49. A expressão “qualquer material” não deixa dúvidas quanto a isso.

Corretoras e distribuidoras de valores mobiliários captam poupança popular, podendo praticar atos que são negados a outras pessoas.

A questão é de clareza solar: a mesma legislação que proíbe o exercício de determinadas atividades a pessoas comuns e permite a prática dessas atividades a distribuidores impõe regras de conduta e sanções pelo descumprimento dessas regras.

2.2.2. Responsabilidade decorrente do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Vamos, inicialmente, tratar do cabimento em abstrato do Código de Defesa do Consumidor para as relações jurídicas mantidas entre instituições financeiras e seus clientes. Ultrapassada essa etapa, trataremos da responsabilidade civil de administradores e distribuidores de fundos de investimento à luz da legislação consumerista.

2.2.2.1. Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor (CDC) às instituições financeiras.

A aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor (CDC) nas relações jurídicas entre instituição financeira e cliente é objeto de enunciado da jurisprudência majoritária do Superior Tribunal de Justiça (STJ):

 “Súmula nº 297. O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.”

A questão é um tanto evidente, mas os bancos sustentaram durante largo período que apenas serviços bancários e não operações bancárias estariam regidos pelo CDC. O argumento era no sentido de que o cliente não seria o destinatário final do crédito.

Seja como for, no caso ora tratado – perdas em fundos de renda fixa – a questão é de um serviço bancário. A atuação de um administrador, de um gestor, de um distribuidor, tal como descrita na seção 1 deste trabalho demonstra que se trata de um serviço e não de uma concessão de crédito.

É de clareza solar que o investidor, ao adquirir quotas de um fundo de investimento ofertado por uma corretora ou distribuidora de valores mobiliários, não está recebendo um crédito. A corretora ou distribuidora lhe vende um produto.

No mesmo sentido, após a criação do fundo de investimento por parte do administrador, há a contratação de um gestor (que prestará serviços de aquisição deste ou daquele ativo, por exemplo), há venda de suas quotas, há (ou deve haver) o cumprimento de todas as regras da CVM para a existência e disponibilidade do fundo no mercado, tudo isso são serviços prestados ao consumidor final. A própria Instrução CVM nº 555/2014 é expressa no art. 78 sentido de que a “administração do fundo compreende o conjunto de serviços relacionados direta ou indiretamente ao funcionamento e à manutenção do fundo” (original sem destaques).

Assim, mesmo que se aceite a tese de que o cliente das instituições financeiras que obtém crédito não conta com a proteção do CDC, a conclusão é no sentido de que, no que se refere ao tema deste artigo – perda em fundos de renda fixa –, o CDC deve ser aplicado: tratamos de serviços financeiros.

Toda essa matéria, na verdade, foi superada por julgamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) que julgou improcedente o pedido formulado pela Confederação Nacional das Instituições Financeiras (Consif) por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) nº 2.591 em 7 de junho de 2006. Restou pacificado, por óbvio, que o CDC é aplicável nas relações entre instituições financeiras e clientes (consumidores).

2.2.2.2. Responsabilidade do banco, do administrador e do distribuidor de fundos de investimento à luz do Código de Defesa do Consumidor.

Dispõe o Código de Defesa do Consumidor (CDC):

“Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.”

Como se vê, em razão das atividades realizadas (vide itens 1.3, 1.5 e 1.8 deste trabalho), o banco de varejo, o administrador do fundo de investimento e o distribuidor são tratados pelo CDC como fornecedor.

O tema é por demais conhecido, mas vejamos algumas das regras aplicáveis aos bancos, aos administradores e distribuidores de fundos de investimento (fornecedores) pelo CDC:

Além disso, as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor (art. 47) e pode existir inversão do ônus da prova, a critério do juiz, em benefício do consumidor (art. 6º, VIII).

A jurisprudência tem aplicado as regras do CDC em inúmeros contratos, de forma a garantir a efetivamente da legislação consumerista.

Um exemplo interessante é a Súmula nº 308 do Superior Tribunal de Justiça (STJ): não é eficaz em favor do agente financeiro contra o consumidor a hipoteca efetuada em incorporação imobiliária. Assim, ainda que conste do contrato de compra de imóvel a possibilidade de a incorporadora hipotecar o imóvel como garantia do financiamento para sua construção, não pode essa hipoteca atingir os compradores do imóvel.[1]

Como se vê, mesmo que o consumidor tenha assinado contrato em que previa, de forma expressa, que o imóvel estava hipotecado ou poderia ser objeto de hipoteca, o STJ protege o consumidor. Para dar efetividade ao CDC, o STJ afirma que o direito real (hipoteca) simplesmente não pode ser oposto ao consumidor nem mesmo se ele autorizar. Nem mesmo se a autorização for feita por escrito. Nem mesmo se a autorização feita por escrito estiver assinada de próprio punho pelo consumidor. Nem mesmo se a autorização feita por escrito ser assinada com houver reconhecimento por autenticidade dessa assinatura por tabelião. Não vale, a autorização não vale, independentemente do cumprimento de qualquer formalidade, a autorização simplesmente não vale. É o entendimento que o STJ dá ao CDC.

Há outros exemplos. O sentido é sempre o mesmo: as famosas “letras miúdas”, os contratos redigidos de forma confusa, a necessidade de algum conhecimento técnico, a manifestação de suposta ciência e concordância com termos efetuada mediante simples “tickagem” em “box” de formulários eletrônicos, enfim, tudo aquilo que deixa, na prática, o consumidor em desvantagem não pode ser válido.

Não se pode admitir a validade de um arquivo ou documento eletrônico que esteja sob controle de uma das partes. Ele poderia ser facilmente modificado. Documento eletrônico pode ser válido se mantido por entidade certificadora no âmbito da ICP-Brasil (art. 10, § 1º, da Medida Provisória nº 2.200-2/2001) ou por entidade certificadora aceita pelas partes (art. 10, § 2º, da Medida Provisória nº 2.200-2/2001).

O entendimento da aplicabilidade da legislação consumerista se aplica a qualquer pessoa que seja consumidor. No exemplo dado, a Súmula nº 308 protege até mesmo um juiz de direito que tenha celebrado contrato com incorporadora. Convenhamos: qualquer juiz de direito sabe muito bem o que é uma hipoteca... No entanto, não há exceção no sentido de não ser aplicada a jurisprudência protetiva do consumidor caso ele seja um advogado, promotor ou juiz de direito.

Portanto, as regras do CDC são aplicáveis mesmo nos casos em que o investimento em fundo de renda fixa foi feito por pessoa escolarizada e que poderia, em tese, saber dos riscos.

Na hipótese tratada neste trabalho, deve o administrador e o distribuidor responder, à luz do CDC, pelos prejuízos sofridos pelos investidores em fundos de renda fixa.

2.2.3. Responsabilidade dos administradores e gestores dos fundos de renda fixa decorrente do Código Civil.

O Código Civil de 2002 alterou o regime jurídico da indenização decorrente de dano, até então dependente não só da conduta, do dano e do nexo causal, mas também da existência de culpa ou dolo.

Dispõe o parágrafo único do art. 927 do Código Civil:

“Art. 927 (...) Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”

Trata-se da positivação da teoria do risco.

Como bem nos ensina o Prof. Hercules Alexandre da Costa Benício, desde o final do século XIX já se nota significativa insatisfação com a teoria da responsabilidade civil fundada unicamente na culpa, especialmente em face do impulso desenvolvimentista. A tendência moderna é no sentido do alargamento da responsabilidade, por diversos motivos elencados pelo Professor, dentre os quais destaco o número significativo de ações em que a vítima não obtém provimento favorável à míngua de elementos probatórios suficientes.[2]

Mediante aplicação da responsabilidade civil em razão da teoria do risco, não se analisa culpa do agente causador do dano, mas apenas o nexo de causalidade entre a atividade realizada e o dano causado. Desse modo, uma vez que as empresas recebem os benefícios decorrente do exercício da atividade econômica, devem também sofrer os ônus dos riscos por elas produzidos.[3] 

Haveria alguma excludente da responsabilidade?

Vamos pensar nas hipóteses de caso fortuito ou força maior. O art. 393 do Código Civil não é hipótese de exclusão de responsabilidade civil decorrente da positivação da teoria do risco, uma vez que versa sobre inadimplemento de obrigações, mas vamos analisá-lo assim mesmo:

“Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.” (original sem destaques)

Vimos que, para profissionais do mercado financeiro, crises econômicas são fatos ordinários. Não se pode dizer que crises econômicas sejam “fato necessário”. Mas vamos imaginar que crises econômicas seja um fato necessário, algo “imprevisível”... Seria o caso de ausência de responsabilidade civil em razão do disposto do art. 393 do Código Civil?

A resposta é negativa: os efeitos da crise atual poderiam ser facilmente evitados para os fundos de renda fixa (a prova cabal dessa afirmação está na seção 3 deste trabalho). Não só porque o bonus pater familiae deve ser diligente e cauteloso, mas sobretudo porque não havia a obrigação dos fundos de renda fixa em aplicar recursos em ativos de maior volatilidade. Para juristas, isso pode não parecer tão óbvio, mas pessoas do mercado financeiro sabem que existem investimentos isentos de riscos (risk free investments).

Não se discute, neste momento, a liberdade com responsabilidade conferida a administradores e gestores dos fundos pelas normas reguladoras da atividade. Isso foi visto anteriormente. Tratamos nesta seção da responsabilidade civil tal como prevista no Código Civil, uma vez que houve dano (prejuízo decorrente da desvalorização das quotas do fundo), a conduta (aplicação dos recursos do fundo em ativos de maior volatilidade) e o nexo causal (a desvalorização das quotas decorreu da aplicação em ativos que perderam valor).

Aos administradores e gestores que optaram por ativos que se desvalorizaram não socorre o disposto no art. 393, mesmo que se admita que esse dispositivo legal poderia hipoteticamente ser aplicável às perdas decorrentes dos fundos de renda fixa. O parágrafo único exige que as consequências do caso fortuito ou de força maior sejam inevitáveis. No caso concreto, as perdas eram evitáveis. Prova disso é que a maior parte dos fundos de renda fixa não registrou perda. Os fundos de renda fixa que registraram perdas foram apenas os que decidiram por tomar mais risco. Veremos isso no item 3 deste trabalho, ocasião em que apresentaremos números para que não reste dúvida a respeito.

Também não pode ser alegada “onerosidade excessiva” como excludente do dever de indenizar, seja porque esse instituto não se aplica em sede de indenização por ato ilícito, seja por inexistir “extrema vantagem” para o investidor, que é requisito previsto no art. 478 do Código Civil para caracterização da onerosidade excessiva

Por fim, vamos analisar o seguinte dispositivo do Código Civil:

“Art. 868. O gestor responde pelo caso fortuito quando fizer operações arriscadas, ainda que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesse deste em proveito de interesses seus.

Parágrafo único. Querendo o dono aproveitar-se da gestão, será obrigado a indenizar o gestor das despesas necessárias, que tiver feito, e dos prejuízos, que por motivo da gestão, houver sofrido.”

Esse dispositivo também não ajuda os administradores e gestores de fundos de renda fixa. Pelo contrário: afirma a responsabilidade mesmo por caso fortuito e “ainda que o dono” (no caso, a pessoa que adquiriu as quotas dos fundos) tenha o costume de fazer operações de risco.

A questão é, portanto, de clareza solar: existe a norma que estabelece a responsabilidade (art. 927, parágrafo único, do Código Civil) e não há excludentes de responsabilidade a beneficiar administradores e gestores de fundos de renda fixa que apresentaram perdas.

3. Análise prática: qual o percentual de fundos com perdas em razão da Crise do Coronavírus?

Um aspecto importante para o desenrolar da questão dos efeitos da Crise do Coronavírus consiste em verificar se as perdas verificadas pelos fundos de renda fixa eram evitáveis ou não.

Vimos que a regulamentação permitia – mas não obrigava – a alocação de parte dos recursos dos fundos em ativos de maior risco. Havia, como há, uma opção do gestor em tomar maior risco.

Vamos sair da análise abstrata das normas jurídicas e verificar se, na prática, era possível aos gestores dos fundos de renda fixa ter adotado medidas que teriam evitados as perdas. Vamos analisar a rentabilidade dos fundos de renda fixa dos grupos econômicos dos cinco maiores bancos comerciais em operação no Brasil: Banco Itaú, Banco do Brasil, Bradesco, Santander e Caixa Econômica Federal.

Em pesquisa realizada no dia 3 de maio de 2020, obtivemos os resultados a seguir.

3.1. Fundos do Banco Itaú.

De acordo com informações obtidas no endereço da internet <https://www.itau.com.br/empresas/investimentos/fundos/rentabilidade/>, o Banco Itaú oferecia aos seus clientes 23 (vinte e oito) fundos de renda fixa por ele considerados como de risco baixo. A rentabilidade tomava por base o dia 30 de abril de 2020.

Vamos analisar, portanto, apenas fundos de renda fixa abertos à captação considerados de risco baixo pelo Banco Itaú.

Do total desses fundos, apresentaram variação negativa (desvalorização no valor das quotas) no mês corrente e no mês anterior os seguintes fundos:

Portanto, apenas 2 do total de 23 fundos apresentaram perdas. Em termos percentuais, 8,7% apresentaram perdas e 91,3% não apresentaram perdas em dois meses consecutivos.

Vamos mudar a variável: vamos analisar quais os fundos apresentaram variação negativa no mês corrente ou no mês anterior. Apresentaram variação negativa os seguintes fundos:

Somados esses 4 fundos que apresentaram variação negativa no mês corrente ou no mês anterior com os fundos que apresentaram variação negativa em ambos os meses, temos um total de 6 fundos. Em termos percentuais, 26,09% dos fundos apresentaram perdas e 73,91% não apresentaram perdas.

No que se refere ao ano de 2020, apresentaram perdas os seguintes fundos:

Portanto, dos 23 fundos, apenas 3 fundos apresentaram variação negativa em 2020. Em termos percentuais, isso significa que 13,04% dos fundos apresentaram perdas e 86,96% não apresentaram perdas.

3.2. Fundos do Banco do Brasil.

De acordo com informações obtidas no <http://www37.bb.com.br/portalbb/tabelaRentabilidade/rentabilidade/gfi7,802,9085,9089,1.bbx>, o Banco do Brasil oferecia aos seus clientes 15 (quinze) fundos de renda fixa.

Do total desses fundos, nenhum deles apresentou variação negativa (desvalorização no valor das quotas) no mês de abril. Considerando a variação no ano de 2020, apresentaram variação negativa os seguintes fundos:

Portanto, apenas 4 fundos apresentaram variação negativa no ano de 2020. Em termos percentuais, 0% dos fundos apresentaram perdas em abril, 26,67% dos fundos apresentaram perdas em 2020, 100% dos fundos não apresentaram perdas em abril e 73,33% não apresentaram perdas em 2020.

3.3. Fundos do Banco Bradesco.

De acordo com informações obtidas no <https://banco.bradesco/html/classic/produtos-servicos/investimentos/fundos/tabela-de-rentabilidade.shtm>, o Banco Bradesco oferecia aos seus clientes 36 (trinta e seis) fundos de renda fixa por ele considerado de risco baixo.

Do total desses fundos, apresentaram variação negativa em 2020 (considerando os meses de janeiro a abril), os seguintes fundos:

Portanto, dos 36 fundos, apenas 6 fundos apresentaram variação negativa no período de janeiro a abril de 2020. Em termos percentuais, 16,67% dos fundos apresentaram perdas e 83,33% não apresentaram perdas.

3.4. Fundos do Banco Santander.

De acordo com informações obtidas no <https://www.santander.com.br/portal/pam/script/rentabilidade/RentabilidadeFundosAsset.do?codSegMercado=23>, o Banco Santander oferecia aos seus clientes 16 (dezesseis) fundos de renda fixa abertos à captação.

Do total desses fundos, apresentaram variação negativa em 2020, os seguintes fundos:

Portanto, dos 16 fundos, apenas 6 fundos apresentaram variação negativa no período de janeiro a abril de 2020. Em termos percentuais, 37,5% dos fundos apresentaram perdas e 62,5% não apresentaram perdas.

3.5. Fundos da Caixa Econômica Federal.

De acordo com informações obtidas no <http://www.fundos.caixa.gov.br/sipii/pages/public/listar-fundos-internet.jsf>, a Caixa Econômica Federal oferecia aos seus clientes 43 (quarenta e três) fundos de renda fixa.

Do total desses 43 fundos, apresentaram variação negativa em 2020, os seguintes fundos:

Portanto, dos 43 fundos, apenas 9 fundos apresentaram variação negativa no período de janeiro a abril de 2020. Em termos percentuais, 20,93% dos fundos apresentaram perdas e 79,07% não apresentaram perdas.

3.6. A maior parte dos fundos de renda fixa não registrou perdas, exatamente porque elas eram evitáveis.

As perdas eram evitáveis: a maior parte dos fundos de renda fixa não apresentou perdas (a maior parte apresentou variação positiva).

Os percentuais são expressivos: considerando a performance em 2020, o pior cenário é o do Santander, com 37,5% dos fundos apresentando perdas, e o melhor cenário é o do Itaú, com apenas 13,04% dos fundos com perdas.

Mais: para quatro dos cinco bancos analisados, a parcela de fundos com variação negativa é inferior a um terço. Não fosse o Santander, em que o percentual de fundos com perdas foi levemente superior a um terço, poderíamos dizer que para todos os bancos analisados a parcela de fundos sem perdas (com ganho) é superior a dois terços.

Na verdade, para demonstrar que as perdas eram evitáveis, bastaria que houvesse um único fundo de renda fixa sem variação negativa. Não seria sequer necessário que a maior parte tivesse apresentado variação positiva, tal como ocorreu.

Portanto, os efeitos da pandemia (Crise do Covid-19), no que se refere às perdas em fundos de investimento, era evitáveis – e o foram para a maior parte dos fundos de renda fixa de cada um dos cinco maiores bancos de varejo do Brasil.

4. Conclusões.

A regra geral para indenização decorrente de ato ilícito está no art. 927 do Código Civil: havendo ato ilícito e dano decorrente desse ato, surge a obrigação de indenizar. É necessário que exista nexo de causalidade entre o ato ilícito e o dano causado, bem como não exista excludente de responsabilidade: consequência inevitável decorrente de caso fortuito ou de força maior (art. 393, parágrafo único, do Código Civil) ou culpa exclusiva do consumidor (art. 14, § 3º, II do Código de Defesa do Consumidor).

Vimos que a Instrução CVM nº 555/2014 estabelece uma série de regras que devem ser cumpridas pelo administrador, pelo gestor e pelo distribuidor dos fundos de renda fixa.

O art. 79, §§ 2º e 3º, da Instrução CVM nº 555/2014 é de clareza solar: descumprida regra imposta pela norma, surge o dever de o administrador indenizar o investidor pelos prejuízos sofridos.

Vimos que o gestor e o distribuidor respondem em solidariedade com o administrador, assim como o administrador responde por descumprimento das normas por parte do gestor e do distribuidor.

Há plena sintonia entre a Instrução CVM nº 555/2014 e o disposto no Código de Defesa do Consumidor.

Em uma ação judicial em que se pleiteia ressarcimento por perdas em fundos de renda fixa, cabe ao autor da ação provar a ocorrência do dano (prejuízo, redução do valor das quotas), bem como a prática de ato ilícito cometido pelo réu (ex. descumprimento do art. 49, II, da Instrução CVM nº 555/2014). O nexo de causalidade é um tanto óbvio: o prejuízo deve ter decorrido de investimento no fundo de renda fixa criado pelo administrador e não, por exemplo, decorrente de um acidente de carro. Não há necessidade em discutir se houve culpa ou dolo por parte do réu. A prova da excludente de responsabilidade é ônus do réu (ex. provar que o investidor, que sofreu o prejuízo, determinou que o gestor alocasse recursos em ativos de risco), sendo de difícil configuração no tema tratado.

A despeito disso, não se pode prever se, em cada caso concreto, o Judiciário brasileiro aplicará as regras da Instrução CVM nº

 555/2014, do Código do Consumidor e do Código Civil. Não é possível prever se o Judiciário deixará de apreciar o mérito da questão ou irá considerar que não existe o dever de indenizar, mediante um pretexto (“fundamento jurídico”) qualquer ou mesmo sem apresentar qualquer justificativa plausível.

Por exemplo, “pode” o Judiciário brasileiro vir a afirmar que o investidor “estava ciente dos riscos” por não ter ele, investidor, feito a prova negativa (!) de que não sabia dos riscos, a despeito do ônus dessa prova ser do réu e esse elemento não ser excludente de responsabilidade do administrador nem nos termos da Instrução CVM nº 555/2014 nem no Código Civil.

Também “pode” o Judiciário simplesmente vir a dizer que não há o dever de indenizar porque não houve promessa de rendimento aos quotistas, por mais absurdo que possa parecer afirmar que o cumprimento do disposto no art. 89, V, da Instrução CVM nº 555/2014 elide a necessidade de cumprimento das demais obrigações contidas nessa mesma norma.

Enfim, o Judiciário brasileiro “pode” tudo.

Toda a lógica dos sistemas jurídicos dos países de tradição liberal (tomada essa palavra no sentido da língua inglesa) está baseada na concessão de direitos com os correspondentes cumprimentos de deveres.

No caso concreto, ao mesmo tempo em que se permitiu ao administrador dos fundos de renda fixa captar poupança popular e aplicar licitamente parte dos recursos em ativos de risco, a legislação exigiu que esse mesmo administrador praticasse diversos atos para que restar comprovado que o investidor realmente estivesse ciente dos riscos e desejasse assumi-los. Esses atos não são “meras formalidades” ou “burocracia de origem lusitana”, cuja exigência de cumprimento não deve ser dispensada pela vontade despótica de quem julga ou julga estar acima das leis.

Correto é o Judiciário brasileiro analisar os fatos, em cada caso concreto, e verificar se todas as obrigações previstas nas normas foram cumpridas. Se houver obrigação descumprida pelo administrador em determinado fundo de investimento e prejuízo do investidor nesse fundo de investimento, há ato ilícito a ensejar responsabilidade civil. É que o está disposto na legislação analisada neste trabalho.

 

[1] Mais informações a respeito dessa súmula e da jurisprudência que lhe deu origem pode ser obtida no nosso livro Compra de Imóveis: aspectos jurídicos, cautelas devidas, análise de riscos, atualmente na 12ª edição.

[2] BENÍCIO, Hercules Alexandre da Costa. Responsabilidade civil do estado decorrente de atos notariais e de registro. São Paulo: IRIB e Revista dos Tribunais, 2005, p. 190.

[3] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: responsabilidade civil. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p.25-26. GAGLIANO, Pablo Stolze et al. Novo curso de direito civilresponsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 157.

Sobre o autor
Bruno Mattos e Silva

Bacharel em Direito pela USP. Mestre em Direito e Finanças pela Universidade de Frankfurt (Alemanha). Foi advogado de empresas em São Paulo, Procurador-chefe do INSS nos tribunais superiores, Procurador Federal da CVM e Assessor Especial de Ministro de Estado. Desde 2006 é Consultor Legislativo do Senado Federal, na área de direito empresarial, de regulação, econômico e do consumidor. Autor dos livros Direito de Empresa (Ed. Atlas) e Compra de Imóveis (Edi. Atlas/GEN).

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