Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

“HOUVE PREJUÍZO PARA O ACUSADO?”: um ensaio sobre a aplicação do princípio “pas de nullité sans grief” ao processo disciplinar

Agenda 14/05/2020 às 21:50

Trata-se de artigo em que é trabalhado o "pás de nullité sans grief" enquanto princípio processual. No artigo são apresentadas, rapidamente, posições jurisprudenciais e doutrinárias acerca do tema, além do posicionamento do autor.

Não é raro nós, advogados, quando em defesa dos nossos clientes, nos depararmos com a situação em que, no bojo da defesa ou oralmente, indicamos nulidades processuais as quais, reputamos insanáveis e pedimos a declaração de nulidade de vários atos do processo, e daí nascer o, incomum e (talvez) pouco garantista, questionamento: “Mas, Doutor, houve prejuízo para a parte?”.

 

Quando ocorre essa interrogação, estamos diante da aplicação daquilo que se convencionou chamar de “pás de nullité sans grief”, ou seja, “não há nulidade sem prejuízo”, ou ainda princípio do prejuízo.

 

Esse princípio tem natureza processual – sem considerar, é claro, a época em que o estudo do processo era tema de direito material, e a sua concepção remonta à idéia de instrumentalidade das formas, noção que nasce para mitigar o formalismo exagerado que outrora existiu no processo, num determinado momento historio do direito.

 

Aliás, é bom registrar que antes da concepção do princípio do prejuízo, o formalismo era tido como algo intangível, um verdadeiro procedimento rígido, no qual não se admitiam erros, simples ou grosseiros, de modo que bastava praticar o ato equivocadamente para atrair a nulidade dele e dos subsequentes, e isso se não fosse tido como nulo todo o processo.

 

Sobre o tema, Daniel Zaclis{C}[1] dissertou que:

 

Havia um tempo em que um mínimo deslize da forma, por mais insignificante que fosse, maculava o processo. É que, à época, o formalismo estava atrelado, inclusive no Direito Romano, ao misticismo, ao místico, decorrendo daí que o defeito processual significava na realidade o desrespeito à vontade dos deuses.

 

Certo é que o princípio do prejuízo, hoje em dia, é amplamente aplicado por nosso ordenamento jurídico, não existindo mais a figura do “processo intangível”, hígido, a ponto de não aceitar a convalidação, ou seja, a absorção de atos nulos que não tenham, de fato, prejudicado a parte – esse, o posicionamento majoritário.

 

Nesse sentido, a Lei nº 9.784/99, aplicável ao processo disciplinar do servidor público federal, dispõe que:

 

Art. 55. Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração.

 

No direito disciplinar mineiro, verifica-se que o princípio do prejuízo é considerado tanto no processo administrativo do servidor civil quanto do servidor militar.

 

A Lei nº 14.184/2002, que trata do processo administrativo no âmbito do Estado de Minas Gerais, e é aplicável ao servidor civil juntamente com a Lei nº 869/69, fixa que:

 

Art. 31 – Quando a matéria do processo envolver assunto de interesse geral, o órgão competente poderá, mediante despacho motivado, antes da decisão do pedido, promover consulta pública para manifestação de terceiros, se não houver prejuízo para a parte interessada.

 

 

Art. 66 – Na hipótese de a decisão não acarretar lesão do interesse público nem prejuízo para terceiros, os atos que apresentarem defeito sanável serão convalidados pela Administração.

 

Já a Resolução Conjunta nº 4.220/2012, que traz o Manual de Processos e Procedimentos Administrativos das Instituições Militares do Estado de Minas Gerais – MAPPA, é mais incisiva, estabelecendo que:

 

Art. 533. Os atos processuais serão válidos sempre que preencherem as finalidades para as quais foram realizados, não se pronunciando, em regra, nulidade sem que tenha havido prejuízo para a acusação ou para a defesa.

 

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, já há algum tempo, vem se posicionando nesse sentido de só declarar a nulidade do ato quanto ficar cabalmente demonstrado o prejuízo que a parte sofreu em decorrência dele. Vários são os julgados que podem ser citados daquela Corte Superior[2]:

 

AgRg no REsp 1186672/DF, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/09/2013, DJe 13/09/2013; REsp 1225426/SC, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 27/08/2013, DJe 11/09/2013; MS 19823/DF, Rel. Ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/08/2013, DJe 23/08/2013; MS 17518/DF, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26/06/2013, DJe 02/08/2013; MS 15859/DF, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/05/2013, DJe 05/06/2013; MS 17333/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/05/2013, DJe 31/05/2013; MS 17485/DF, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 08/05/2013, DJe 14/05/2013; AREsp 321531/PE (decisão monocrática), Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, julgado em 28/05/2013, DJe 06/06/2013.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

 

A doutrina também é uníssona nesse sentido, acrescentando que o ato será nulo não por apresentar erro formal, mas, ao revés, por apresentar erro que, embora formal, afete substancialmente a esfera jurídica da parte, a ponto de prejudicá-la. A propósito, DINAMARCO[3] ensina que:

 

[...] o ato não será nulo porque formalmente defeituoso. Nulo é o ato que, cumulativamente, se afaste do modelo formal indicado em lei, deixe de realizar o escopo ao qual se destina e, por esse motivo, cause prejuízo a uma das partes.

[...] quis o legislador apoiar-se no binômio escopo-prejuízo, deixando bem claro que nada se anula quando o primeiro houver sido obtido e, consequentemente, este não existir.

 

Não obstante o posicionamento, tanto da jurisprudência quanto da doutrina majoritária, ouso discordar desse entendimento engessado, com toda vênia, quando se falar em nulidade absoluta.

 

Tudo bem que tenhamos que ter um freio ao formalismo exarcebado, até para evitar que o acusado, de má-fé, utilize a alegação de nulidade como um subterfúgio no processo acusatório, porém, temos que lembrar que a estratégia e o erro processual decorrem de atos totalmente distintos, na maioria das vezes.

 

Ora, se houve qualquer ato formalmente equivocado no processo, as “regras do jogo” foram violadas, independentemente da demonstração de prejuízo. Aliás, o processo é, por excelência, uma forma de garantia do acusado de que ele terá o seu caso analisado com base em procedimento previamente estipulado, onde lhe serão preservadas todas as suas garantias. Como, então, não imaginar que a violação da “regra do jogo” não gera, por si só, prejuízo ao acusado?

 

Com esse raciocínio, entendo desnecessária a “prova do prejuízo” que, atualmente, se exige do acusado quanto à nulidade absoluta. Senhoras e Senhores, existe maior prejuízo que a “regra do jogo” ser violada com ele em andamento, e nada ser feito para anular esse ato?

 

“Há, Doutor...mas é só um errinho, dá pra convalidar, não houve prejuízo mesmo!”. Não dá para admitir que esse entendimento prevaleça diante de um sistema tão garantista quanto o nosso. Isso é um “tapa na cara” do acusado, que, se já se sente pressionado só por estar sendo processado, imagina quando for tirado dele e de seu defensor a possibilidade de utilizar a alegação de nulidade como estratégia? É o fim! “Acolho a acusação e aplico a penalidade ao acusado!”

 

E, por favor, não estou, aqui, me referindo a todas as nulidades que possam ocorrer em um processo. Estou fazendo alusão apenas àquela nulidade absoluta que não é criada pelo acusado, mas pela própria acusação ou pelo sistema de julgamento, sem qualquer ato de má-fé do acusado.

 

Ao continuar aceitando a aplicação do “pás de nullité sans grief” da maneira como vem acontecendo, iremos continuar fomentando um ato decisório (sobre a declaração, ou não, da nulidade) que parte de um princípio, que, por sua vez, tem variadas possibilidades semânticas, afinal, o que pode ser tido como prejuízo para o acusado, pode não ser para a acusação, e vice-versa. A incerteza é muito grande, contribuindo para a insegurança jurídica.

 

O sistema de garantias não pode ser “mitigado” dessa maneira, afetando, como visto, até mesmo o direito do acusado e de seu defensor à utilização da nulidade (criada pelos outros sujeitos do processo) como estratégia. Alegar nulidade absoluta (não criada pelo acusado) após o transcurso de grande parte do processo, não é má-fé, mas, essencialmente, ato de defesa, e, diga-se de passagem, bem trabalhada, na maioria dos casos.

 

Frise-se, afastar a possibilidade dessa técnica de defesa em prol da busca pela decisão de mérito, contribui muito mais com um cenário de “caça às bruxas” do que com a preservação das garantias de defesa do acusado.

 

Em interessantíssimo artigo sobre o tema das garantias, Edson Vieira da Silva Filho[4], de maneira muito didática, e, prestem bem atenção – porque é muito interessante, disse o seguinte:

 

Uma metáfora final: Em um dos jogos da copa do mundo de 2014 ouvi algo que me interessou. Um comentarista esportivo narrando uma partida mais violenta, após fazer uma profunda análise do que se passava afirma que o juiz estaria administrando o jogo e que para isso economizava cartões amarelos. Na verdade, só os distribuía quando um dos jogadores era impedido de prosseguir com a jogada pelo adversário que o segurava pela camisa.

O narrador diz em seguida que naquele jogo tudo era permitido, menos segurar o adversário pela camisa. Foi assim, que o juiz resolveu agir ao sancionar. Controlar o volume e as condutas dignas de sanção para ter o jogo sob seu domínio.

[...] pensei que o jogador, ao ser parado pelo adversário poderia olhar para o juiz e ver que nenhuma infração foi marcada. Perplexo se dirige ao capitão do time e pergunta o que aconteceu, porque as regras mudaram e ele não foi avisado? Mais perplexo ainda o capitão dirige-se ao técnico e pergunta: Professor, por que não fui avisado das mudanças nas regras do jogo para que pudesse repassar as novas informações para o time? Aflito o técnico folheia o regulamento e não vê alterações nas regras do jogo. O jogo sai do controle, pois sem entender muito bem o que se deu os participantes entendem que naquele jogo novas regras valiam, ou que aquilo que praticavam não era mais o mesmo jogo. [...]

O juiz de futebol não podia ter feito, – nem ele – mas fez uma escolha, avaliou as conveniências daquele jogo, e, a partir de suas perspectivas decidiu como administrar as garantias regulamentares. Relativizando-as na verdade rompeu com elas, o jogo manteve o nome original, mas na verdade agora era outro jogo, um jogo no qual não queremos e nem podemos participar. (grifei)

 

Portanto, respeitando os posicionados citados, compreendo que o caminho da advocacia, dos defensores de acusados em geral, e, especialmente, em processos disciplinares, deve ser no sentido de sempre pugnar pela manutenção das garantias do acusado, lutando pela preservação das “regras do jogo” da forma prevista quando ele foi iniciado. Só assim, o acusado terá garantido o seu direito à estratégia, à ampla defesa, e, em verdade, ao devido processo legal.

 

E quanto a quem possa imaginar que estou indo, de maneira incoerente, na contramão do entendimento majoritário, citado anteriormente, afirmo, como certa vez presenciei, e por aqui termino: o que seria a jurisprudência e os atos decisórios em geral, senão uma luta incansável do advogado na defesa de seu cliente?

 


{C}[1]{C} Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2137/tde-09112015-143036/publico/DANIEL_ZACLIS_DISSERTACAO_INTEGRAL.pdf. Acesso em: 12maio2020.

{C}[2] Vide Jurisprudência em tese, Item 8. Disponível em https://scon.stj.jus.br/docs_internet/jurisprudencia/jurisprudenciaemteses/Jurisprudencia%20em%20Teses%2001%20-%20Pad%20I.pdf Acesso em: 13maio2020.

{C}[3] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, v. 2, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 599/601.

{C}[4] In A Discricionariedade nos sistemas jurídicos contemporâneos. Editora JusPodvim: Salvador, 2019. Pág. 133.

Sobre o autor
Cesar Augusto Godinho da Silva Assis

Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce – FADIVALE. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito de Vitória - FDV, com área de concentração em Direitos e Garantias Fundamentais (Conceito: CAPES 5). Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq): Hermenêutica Jurídica e Jurisdição Constitucional, coordenado pelos Professores Doutores Américo Bedê Freire Junior, Alexandre Castro Coura, e Cássius Guimarães Chai. Pós-graduado em Direito Administrativo, com ênfase em gestão pública, pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce – FADIVALE. Pós-graduado em Direito Eleitoral pela Faculdade Verbo Educacional. Pós-graduado em Processo Civil pela Faculdade Verbo Educacional. Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Damásio. Pós-graduado em Direito Penal Comum e Militar pela Faculdade de Tecnologia e Educação de Goiás – FATEG.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!