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Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET): Projeto de Lei nº 1.179/2020

Agenda 15/05/2020 às 15:48

O artigo trata do Projeto de Lei nº 1.179/2020, que cria o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19).

O Projeto de Lei nº 1.179/2020, de autoria do Senado Federal, cuida do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19).

O Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) trata de diversas categorias jurídicas do Direito Civil e Empresarial.

Em linhas gerais, são abordados os seguintes temas: i) suspensão e impedimento de prazos prescricionais e decadenciais; ii) realização de deliberações remotas por pessoas jurídicas de direito privado, mediante assembleia geral virtual; iii) (ir)retroatividade dos efeitos jurídicos da pandemia do Covid-19 sobre negócios jurídicos privados;  iv) suspensão da concessão de medidas judiciais liminares nas demandas que versam sobre desocupação de imóveis urbanos; v) suspensão dos prazos da prescrição aquisitiva de bens (usucapião); e vi) restrição da utilização das áreas comuns em condomínio e realização de assembleias por meio remoto.

São disciplinados também alguns pontos do Direito do Consumidor, do Direito Concorrencial e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Com relação à prescrição, o RJET prevê a suspensão e o impedimento da fluência de prazos a partir da vigência da lei, até 30 de outubro de 2020. A medida procura preservar o exercício dos direitos, sobretudo de pretensão, nessa fase de restrição da circulação de pessoa[1]. Assim, indivíduos não seriam prejudicados pela perda da pretensão, no caso da prescrição[2], ou do próprio direito, no caso de decadência[3], pela inércia.

Sobre as deliberações das pessoas jurídicas de Direito Privado, indicadas no art. 44 do Código Civil, o RJET autoriza a realização por meio eletrônico de assembléias e reuniões. Nesse sentido, a manifestação da vontade ocorrerá por meio eletrônico, produzindo todos os efeitos legais da assinatura presencial.

As pessoas jurídicas de direito privado estão apontadas no artigo 44 do Código Civil.  São pessoas jurídicas de direito privado: i) as associações; ii) as sociedades; iii) as fundações; iv) as organizações religiosas; v) os partidos políticos; e vi) as empresas individuais de responsabilidade limitada. 

As sociedades são pessoas jurídicas, compostas por pessoas que se aproximam para exercer atividades com fins lucrativos. As sociedades podem ser empresárias ou simples. Serão sociedades empresárias as que exercem atividade empresarial, ou se adotarem a forma de sociedades anônimas. Serão sociedades simples as que não exercem atividade empresarial ou que adotam forma de cooperativas. De acordo com o artigo 982, do Código Civil, salvo exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro.  As demais sociedades, por exclusão, serão consideradas sociedades simples. O parágrafo único, do citado artigo, por sua vez, prevê que, independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações, e, simples, a cooperativa. Nessa acepção, o enunciado número 207 das Jornadas de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal prevê que a natureza de sociedade simples da cooperativa, por força legal, não a impede de ser sócia de qualquer tipo societário, tampouco de praticar ato de empresa.

A propósito da resilição, resolução e revisão dos contratos, o RJET assinala que os efeitos da pandemia do Covid-19 projetados sobre os contratos, incluídos os mencionados no art. 393 do Código Civil, não poderão ter efeitos jurídicos retroativos.

De acordo com o mencionado art. 393, do Código Civil, o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, exceto nos casos em que houver assumido a responsabilidade por eles. O mesmo dispositivo, no parágrafo único, define caso fortuito ou de força maior como fatos necessários, cujos efeitos não eram possíveis evitar ou impedir.

A extinção do contrato pode ocorrer pelas seguintes causas: i) cumprimento ou esgotamento do objeto do contrato; ii) fatos anteriores à celebração do contrato, como invalidade, cláusula de arrependimento ou cláusula resolutiva expressa; iii) morte dos contratantes nos contratos de caráter pessoal; iv) fatos posteriores à celebração do contrato, como resolução e resilição. A resolução é espécie de rescisão que gera a extinção do contrato por descumprimento. Nessa hipótese, o descumprimento pode ocorrer por inexecução voluntária, inexecução involuntária, por onerosidade excessiva ou por previsão de cláusula resolutiva tácita. Já a resilição é espécie de rescisão que provoca a dissolução do contrato por vontade das partes, quando autorizado por lei. Cuida-se do exercício de um direito potestativo. A resilição pode ser unilateral ou bilateral.

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O RJET também prevê que, exceto nos casos de revisão de contratos de consumo, não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos art. 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário.

O artigo 478 do Código Civil cuida da resolução dos contratos de execução continuada ou diferida, nas hipóteses em que as prestações das partes se tornem excessivamente onerosas, com extrema vantagem para as outras outra, por causa de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. O Enunciado nº 175 III Jornada de Direito Civil do CJF assinala que “A menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no art. 478 do Código Civil, deve ser interpretada não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às consequências que ele produz.”

Já o artigo 479 do Código Civil, assentado no princípio da preservação dos negócios jurídicos privados, recomenda que a resolução do contrato seja evitada pela modificação equitativa das condições do ajuste.

 O art. 480 do Código Civil, por seu turno, autoriza a redução ou modificação da prestação nos contratos unilaterais, para evitar a configuração de onerosidade excessiva para alguma das partes.

O Enunciado nº 176 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal - CJF estipula que, “Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual."

O Enunciado nº 365 da IV Jornada de Direito Civil do CJF, ainda reconhece que "A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração de circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena”. O entendimento é reforçado pelo Enunciado nº 366 da IV Jornada de Direito Civil do CJF reconhece que “o fato extraordinário e imprevisível causador de onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação. ”

É relevante, ainda, lembrar o teor do art. 317 do Código Civil, que autoriza a correção judicial das prestações para assegurar o valor real, quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação, considerados o momento da contratação e o momento do cumprimento.

Sobre esse tema, o Enunciado nº 17 da I Jornada de Direito Civil do CJF recomenda que “A interpretação da expressão ‘motivos imprevisíveis’, constante do art. 317 do Código Civil, deve abarcar tantas causas de desproporção não previsíveis como também causas previsíveis, mas de resultado imprevisíveis”. 

A propósito dos efeitos do caso fortuito e da força maior nos contratos de transporte, vale lembrar que o Substitutivo ao Projeto de Lei do Senado Federal nº 487/2013, que reforma o Código Comercial, no art. 463, prevê que o transportador somente não é responsável por: i) ato ou fato imputável ao contratante ou ao destinatário da carga; ii) inadequação da embalagem, quando imputável ao expedidor da carga; iii) vício próprio ou oculto da carga; iv) manuseio, embarque, estiva ou descarga executados diretamente pelo expedidor, destinatário ou consignatário da carga, ou, ainda, pelos seus agentes ou prepostos; e v) força maior ou caso fortuito.

No que se refere às locações de imóveis urbanos, o RJET também trata da concessão de liminares em ação de despejo.

Salvo algumas exceções, preenchidos os requisitos legais, nos termos do art. 59 da Lei de Locações, após a propositura da demanda de despejo, o juiz poderá determinar liminarmente a desocupação do imóvel no prazo de quinze dias, independentemente da audiência da parte contrária. A desocupação liminar, com regra, estará condicionada à garantia do juízo, mediante oferta de caução no valor de três meses de aluguel.

O RJET, no entanto, garante que não será concedida medida liminar para desocupação de imóvel urbano, nas ações de despejo fundadas no art. 59 da Lei nº 8.245/1991, propostas a partir 20 de março de 2020. A vedação da concessão de liminar, nessas hipóteses, ocorrerá até 31 de dezembro de 2020.

Também há previsão de suspensão total ou parcial do pagamento de aluguéis de imóveis residenciais, cujo vencimento se dê a partir de 20 de março de 2020, até 30 de outubro de 2020. A suspensão será autorizada nos casos em que os locatários tenham sofrido alteração econômico-financeira, decorrente de demissão, redução de carga horária ou diminuição de remuneração. Os aluguéis vencidos deverão ser pagos parceladamente, a partir de 30 de outubro de 2020, na data do vencimento, somando-se à prestação dos alugueres vincendos o percentual mensal de 20% dos alugueres vencidos.

Ainda sobre as relações de consumo, o RJET prevê a suspensão da aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor, que cuida do direito de arrependimento, na hipótese de produto ou serviço adquiridos por entrega domiciliar (delivery). De acordo com o mencionado art. 49, nos contratos de fornecimento de produtos e serviços ajustados fora do estabelecimento do fornecedor, o consumidor tem o direito de desistir do negócio, prazo de 7 dias, a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço. O exercício do direito de arrependimento implica a devolução imediata de valores eventualmente já pagos pelo consumidor. Essa previsão é positivamente importante, sobretudo nesse momento de intensa ampliação das relações negociais por meio remoto.

No plano concorrencial o RJET suspende a aplicação dos efeitos de algumas normas da Lei nº 12.529/2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica. Em síntese, são abordados os seguintes pontos: i) natureza de concentração de negócios jurídicos associativos, como consórcios ou joint ventures, envolvendo sociedades empresárias; ii) descaracterização temporária da natureza infracional de algumas condutas unilaterais que, em tese, representariam agravo à ordem econômica. A aludida descaracterização temporária recai sobre condutas como venda de produtos abaixo do preço de custo, sem justificativa evidente, ou cessação total ou parcial de atividades empresariais sem justa causa.

 O RJET também recomenda que as autoridades responsáveis pela repressão às infrações contra a ordem econômica considerem as circunstâncias extraordinárias da pandemia da Covid-19 para avaliar condutas supostamente ofensivas à ordem econômica, previstas no art. 36 da Lei nº 12.529/2011 e praticadas durante o período de 20 de março a 30 de outubro. Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; III - aumentar arbitrariamente os lucros; e IV - exercer de forma abusiva posição dominante.”A mencionada suspensão do RJET, contudo, não exclui a avaliação posterior das condutas, inclusive para reconhecer prática de violação da ordem econômica passível de sanção.

A respeito dos transportes  privados e individuais de passageiros, o RJET sugere a redução de 15% (quinze por cento) dos valores  retidos em favor do empresário explorador da atividade, além de proibir a acompensação de perdas pelo repasse dos prejuízos ao consumidor, mediante aumento dos preços dos serviços. 

Sobre a circulação de veículos automotores terrestres, o RJET autoriza também que o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) edite normas com caráter excepcional para relativizar algumas disposições do Código de Transito Brasileiro, notadamente as previstas nos artigos 99[4] e 100[5], que tratam de questões relacionadas ao peso, dimensão e número de passageiros de veículos automotores terrestres.

Por fim, o RJET prorroga a entrada em vigor da Lei nº 13.709/2018 - Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), para 1º de janeiro de 2021.

Esses são os aspectos gerais do  Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET), contemplado no Projeto de Lei nº 1.179/2020.

 


[1]Código Civil: Art. 197. Não corre a prescrição:  I - entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal;

II - entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar; III - entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores, durante a tutela ou curatela; Art. 198. Também não corre a prescrição: I - contra os incapazes de que trata o art. 3º; II - contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos Municípios; III - contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra; Art. 199. Não corre igualmente a prescrição: I - pendendo condição suspensiva; II - não estando vencido o prazo; III - pendendo ação de evicção; Art. 200. Quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva; Art. 201. Suspensa a prescrição em favor de um dos credores solidários, só aproveitam os outros se a obrigação for indivisível.

[2] Código Civil: Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.

[3]  Código Civil: Art. 207. Salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição.

[4] Art. 99. Somente poderá transitar pelas vias terrestres o veículo cujo peso e dimensões atenderem aos limites estabelecidos pelo CONTRAN. § 1º O excesso de peso será aferido por equipamento de pesagem ou pela verificação de documento fiscal, na forma estabelecida pelo CONTRAN § 2º Será tolerado um percentual sobre os limites de peso bruto total e peso bruto transmitido por eixo de veículos à superfície das vias, quando aferido por equipamento, na forma estabelecida pelo CONTRAN. § 3º Os equipamentos fixos ou móveis utilizados na pesagem de veículos serão aferidos de acordo com a metodologia e na periodicidade estabelecidas pelo CONTRAN, ouvido o órgão ou entidade de metrologia legal.

[5]  Art. 100. Nenhum veículo ou combinação de veículos poderá transitar com lotação de passageiros, com peso bruto total, ou com peso bruto total combinado com peso por eixo, superior ao fixado pelo fabricante, nem ultrapassar a capacidade máxima de tração da unidade tratora. 1º Os veículos de transporte coletivo de passageiros poderão ser dotados de pneus extralargos. §2º O Contran regulamentará o uso de pneus extralargos para os demais veículos.§ 3º  É permitida a fabricação de veículos de transporte de passageiros de até 15 m (quinze metros) de comprimento na configuração de chassi 8x2.

 

Sobre o autor
Antonio Evangelista de Souza Netto

Juiz de Direito de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Pós-doutor em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutor em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2014). Mestre em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2008). Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM. Professor da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo - EMES. Professor da Escola da Magistratura do TJ/PR - EMAP.

Informações sobre o texto

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