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Não cabe ao Judiciário formular políticas públicas

Agenda 18/05/2020 às 09:05

Caberá aos administradores ouvir os especialistas na área de saúde e traçar o caminho das medidas de prevenção à covid-19, sob pena de responsabilização subjetiva.

1. O FATO

A imprensa relata diversos pedidos apresentados por entes públicos, sindicatos, associações, pelo Ministério Público, dentre outros, com relação ao lockdown em época de pandemia no Brasil.

"Lockdown" é uma expressão em inglês que, na tradução literal, significa confinamento ou fechamento total. Ela vem sendo usada frequentemente desde o agravamento da pandemia da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2).

Embora não tenha uma definição única, o "lockdown" é, na prática, a medida mais radical imposta por governos para que haja distanciamento social – uma espécie de bloqueio total em que as pessoas devem, de modo geral, ficar em casa.

Cada país ou região define de que forma este fechamento será feito e quais são os serviços considerados essenciais, que continuam funcionando.

É problema que, num país de dimensão continental como o Brasil, deverá ser discutido, levando em conta as peculiaridades de cada Estado, de cada Município, de cada conjunto de municípios. Os Estados membros e o Distrito Federal, no âmbito de seus interesses regionais, e os municípios, no campo de seus peculiares interesses locais, terão a legitimidade para agir.

Penso que será caso de cogitar da possibilidade processual dessas ações coletivas na Justiça.


2. A FORMULAÇÃO DE POLÍTICA PÚBLICA

Dir-se-á, como revela Luíza Cristina F. Frischeisen (Políticas Públicas – A responsabilidade do administrador e do Ministério Público, Max Limonad, 2000, pág. 146 a 150), as normas constitucionais da ordem social constitucional delimitam políticas públicas, vinculantes para o administrador, que visam o efetivo exercício dos direitos sociais para a realização dos objetivos daquela: o bem-estar social e a justiça social, sendo que o seu descumprimento gera responsabilidade para a Administração, pois tal conduta é ilegal e inconstitucional.

Parece-me, na linha de Eduardo Talamini (Tutela relativa aos deveres de fazer de não fazer – art. 461, do CPC e art. 84 do CDC) deve-se distinguir entre as hipóteses normativas constitucionais de que se extrai apenas o dever de o Estado realizar políticas públicas de caráter social e aquelas que, mais do que a imposição de diretrizes objetivas estatais, embasam verdadeiros direitos subjetivos públicos. No caso de exigência quanto a formulação de políticas públicas, dir-se-á que há restrições à tutela jurisdicional.

No segundo caso, seria viável o ingresso no Judiciário para a fruição completa do direito assegurado no texto constitucional. Dir-se-á que o administrador público tem discricionariedade quanto a essa atuação. Mas, há limites implícitos e explícitos. Tem o administrador público o dever constitucional de respeitar os limites mínimos de destinação de recursos públicos para manutenção e desenvolvimento do ensino. O não oferecimento e a oferta irregular do ensino obrigatório importam responsabilidade da autoridade competente (art. 208, § 2º, da Constituição Federal).

Data venia, não cabe ao Judiciário formular política pública, judicializando temas que não a ele próprios.

Trata-se de governar através do ajuizamento de ações civis públicas.

A formulação de políticas públicas é dada aos políticos. Não a mais que eles.

Disse J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional, 4ª ed., pg. 912, Portugal, Livraria Almedina) que os juÍzes não se podem transformar em conformadores sociais nem é possível, em termos democráticos processuais, obrigar jurisdicionalmente os órgãos políticos a cumprir um determinado programa de ação.

No entendimento de Konder Komparato (Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas, 1997) a política deliberativa sobre as políticas da República pertence à Política e não à Justiça. Dir-se-ia, outrossim, que as normas constitucionais sobre direitos sociais dependeriam de acolhida pelo legislador, e aí poderiam ser alegadas em juízo (art. 53.3 da Constituição Espanhola).

Realmente, não cabe ao Judiciário a formulação de políticas públicas de caráter social. Não se trata aqui de direito subjetivo público, mas de algo que envolve a adoção clara de políticas econômicas voltadas, globalmente, para o atendimento à saúde, educação, habitação. A formulação de programas nacionais de saúde, por exemplo, com suas estratégias de combate a endemias, é problema do Executivo e do Legislativo, observando as necessárias carências sociais.

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Aliás, no REsp 169.876/SP, relator Min. José Delgado, de 16.06.98, DJU de 21.09.98, p.70, já se decidiu que a realização de políticas dependeria de prévia disponibilidade de recursos orçamentários, não cabendo ao Judiciário imiscuir-se fora desses limites.

Caberá à Administração tal tarefa.

As medidas serão tomadas através de decretos seja das prefeituras ou dos municípios.


3. A AUTOEXECUTORIEDADE DOS ATOS DA ADMINISTRAÇÃO

Atende-se aos casos de relevância e urgência na aplicação do modelo legislativo no que concerne ao exercício da autoexecutoriedade do ato administrativo para que se possa ter o poder de polícia.

Para o caso há o atendimento do principio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, razão pela qual fala-se da executoriedade dos atos administrativos.

Como lecionou Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de direito administrativo, 17ª edição, pág. 87), como expressão dessa supremacia, a Administração, por representar o interesse público, tem a possibilidade, nos termos da lei, de constituir terceiros em obrigações mediante atos unilaterais. tais atos são imperativos como quaisquer atos do Estado. Demais disso, como disse Celso Antônio Bandeira de Mello, trazem consigo a decorrente exigibilidade, traduzida na previsão leal de sanções ou providências indiretas que induzam o administrado a acatá-los. Bastas vezes ensejam, ainda, que a própria Administração possa, por si mesma, executar a pretensão traduzida no ato, sem necessidade de recorrer previamente às vias judiciais para obtê-la. É a chamada autoexecutoriedade dos atos administrativos. Essa ocorre nas seguintes hipóteses: a) quando a lei expressamente preveja tal comportamento; b) quando a providência for urgente ao ponto de demandá-la de imediato, por não haver outra via de igual eficácia e existir sério risco de perecimento do interesse público se não for adotada.

Também por força desta posição de supremacia do interesse público e de quem o representa na esfera administrativa, reconhece-se à Administração a possibilidade de revogar os próprios atos inconvenientes ou inoportunos, conquanto dentro de certos limites, assim como o dever de anular os atos inválidos que haja praticado. É o princípio da autotutela dos atos administrativos.

Trata-se de executoriedade dos atos administrativos unilaterais. Através dele a Administração pode modificar, por sua única vontade, situações jurídicas, sem o consentimento dos atingidos pelo ato.

É a chamada execução forçada na via administrativa, que consiste em uma via jurídica especial, própria do ato administrativo, fazendo a Administração prescindir da declaratio iuris do Poder Judiciário.

A executoriedade, pois, por sua importância, é a manifestação do poder de autotutela da Administração Pública, pelo qual esta tem a possibilidade de realizar, de forma coativa, o provimento no caso de oposição do sujeito passivo.

Pois a executoriedade dos atos administrativos tem fundamental importância no exercício do poder de polícia administrativo, na faculdade que tem a Administração Pública de disciplinar e limitar, em prol de interesse público adequado, os direitos e liberdades individuais, como já ensinou Caio Tácito (O poder de polícia e seus limites. in Rev. De Dir. Adm., volume 27, páginas 1 e seguintes).

Por certo, a execução forçada por via administrativa pode ser precedida de autorização legal expressa, como ensinou Miguel Seabra Fagundes (O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 1957, páginas 248 e 249) e ainda Flávio Bauer Noveli (Eficácia do ato administrativo, in Revista de Direito Administrativo, volume 61, páginas 38 a 40) ou implícita como disse Machado Guimarães (Comentários ao código de processo civil , 1942, pág. 214).

Assim, considerando-se o poder discricionário da Administração Pública que faculta à mesma certas opções, quando sua atividade não estiver vinculada por lei; tendo-se em vista que a Administração age segundo um regime de liberdade vigiada, podendo fazer tudo aquilo que não esteja proibido em lei, ou por esta previsto de forma diversa, Sérgio de Andréa Ferreira (Lições de direito administrativo, 1972, pág. 99) entendeu que sempre que não esteja legalmente estabelecido o recurso ao Judiciário, pode a Administração recorrer a execução forçada, mormente quando for indeclinável e premente a obtenção do resultado.

Aliás, Machado Guimarães (obra citada) acentuou que "desde que o conteúdo do ato administrativo consista em uma obrigação de fazer ou de não fazer, pode, em regra, o próprio órgão administrativo promover a respectiva execução direta, sem necessidade de acertamento prévio da obrigação, de acordo com as normas do processo civil".

O processo executório poderá ser efetuado por meios diretos.

Os meios diretos de coerção administrativa visam a obter a própria prestação exigida do administrado, ou, se isto for impossível, outra equivalente. Caso não seja cumprida essa obrigação pelo administrado, caberá à Administração aplicar sanções administrativas como a multa, o fechamento de estabelecimentos etc, tudo aplicado dentro da devida proporcionalidade, proibindo-se o excesso.

Há de se considerar uma razoabilidade interna, que se referencia com a existência de uma relação racional e proporcional entre motivos, meios e fins da medida, e, ainda, uma razoabilidade externa, que trata da adequação de meios e fins.

Tais ilações foram essencialmente de cogitação do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, como bem ensinou o ministro Luís Roberto Barroso (Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo, ed. Saraiva, 2003, pág. 228), ao externar um outro qualificador da razoabilidade-proporcionalidade, que é o da exigibilidade ou da necessidade da medida. Conhecido ainda como princípio da menor ingerência possível, consiste no imperativo de que os meios utilizados para consecução dos fins visados sejam os menos onerosos para o cidadão. É o que conhecemos como proibição do excesso.

Há ainda o que se chama de proporcionalidade em sentido estrito, que se cuida de uma verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Pesam-se as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.

Em resumo, do que se tem da doutrina no Brasil, em Portugal, dos ensinamentos oriundos da doutrina e jurisprudência na Alemanha, extraímos do princípio da proporcionalidade, que tanto nos será de valia para adoção dessas medidas não prisionais, os seguintes requisitos: a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento de fins visados; c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos.

Repita-se que não cabe seja ao Parquet ou ao Judiciário a tarefa de formulação de política pública. À Administração caberá, no exercício do poder de polícia, tomar as devidas providências.

À Administração caberá executar medidas no exercício do poder de polícia como ainda aplicar providências visando à sua correta adoção, seja monitorando, seja disciplinando a sua atuação e a correta obediência pelos administrados.

Caberá aos administradores, ouvidos os especialistas na área de saúde, no contexto de uma discricionariedade administrativa, de oportunidade e conveniência, traçar o caminho das medidas em prol do interesse da sociedade, sob pena de em caso de dolo ou culpa serem responsabilizados.

Não será correto administrar o Estado-membro, Distrito Federal ou Município, através de ações civis públicas, no âmbito da tutela de direitos difusos. A Administração Pública fará justiça por si mesma.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

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