RESUMO
O presente artigo tem por intuito analisar, através da autonomia do sujeito, e também diante de princípios basilares da Constituição Federal de 1988, as relações patrimoniais advindas do regime de separação obrigatória para os pessoas com mais de 70 anos. Tal causa de obrigatoriedade do regime de separação de bens é objeto de diversas críticas por parte da doutrina, entre as quais a ofensa aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da liberdade; a restrição à capacidade civil de pessoas absolutamente capazes e a discriminação por idade. Nessa perspectiva, também parte do Poder Judiciário e do Poder Legislativo tem se manifestado no sentido da inconstitucionalidade e da necessidade de revogação da referida causa de obrigatoriedade do regime de separação de bens, tanto que o STJ já decidiu favoravelmente quanto a outro regime de bens em caso de união estável anterior ao casamento aos maiores de 70 anos. Assim, através de pesquisa bibliográfica em doutrinas, artigos científicos, legislação e jurisprudência, foi realizado este estudo.
Palavras-chave: Separação obrigatória. Regime de bens. Maiores de 70 anos.
Súmula 377 do STF.
1INTRODUÇÃO
O casamento estabelece uma comunhão plena de vida entre os cônjuges, tornando-os consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família. Na visão atual do Direito de Família, visualiza-se o casamento, assim como as demais entidades familiares. Além disso, o casamento, por sua natureza e objetivo, desencadeia diversos efeitos econômicos, tais como a necessidade de contribuírem os cônjuges para o sustento do lar, para as despesas comuns, para atender aos encargos da família, educação dos filhos etc. Por isso, se faz necessário o regime de bens.
No ordenamento jurídico brasileiro, adota-se, como regra geral, a liberdade de escolha do regime de bens pelos cônjuges, conforme insculpido no art. 1.639 do atual Código Civil. Assim, através de um pacto antenupcial, os nubentes podem escolher entre os regimes de comunhão universal, comunhão parcial, separação de bens e participação final nos aquestos, ou, se preferirem, podem fundir ou criar seu próprio regime de bens. Na ausência de pacto antenupcial, presume-se que os nubentes optaram pelo regime da comunhão parcial.
Em algumas hipóteses, entretanto, a lei impõe o regime de separação, excepcionando a regra da autonomia de escolha. Tratando-se de norma cogente, afasta-se a livre deliberação quanto ao regime de bens, prevalecendo a imposição legal.
Tais hipóteses se encontram elencadas no art. 1.641 do Código Civil de 2002, tornando obrigatório o regime de separação de bens ao casamento das pessoas que o contraíram com sem observar as causas suspensivas da celebração do casamento, dos maiores de 70 (setenta) anos e dos que dependerem para se casar, de suprimento judicial.
No presente trabalho, tem-se por escopo analisar o regime da separação obrigatória de bens para os maiores de 70 (setenta) anos, conforme atualmente previsto no inciso II do art. 1.641 do Código Civil.
O tema em análise se revela de especial importância, vez que envolve os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da liberdade, bem como a capacidade para os atos da vida civil e a discriminação contra os idosos, devido à autonomia da vontade e da capacidade civil.
O artigo 1641, II do CC, neste sentido, ao instituir como obrigatório este regime para os maiores de 70 anos, tendo em vista o aumento de vida da população, o desenvolvimento social, a terceira idade mais pró-ativa, e por ser esta uma limitação do Estado à autonomia da vontade, o problema deste artigo é: a imposição da separação obrigatória de bens para os nubentes maiores de 70 anos viola os princípios basilares da dignidade, liberdade e igualdade?
Ademais, com o aumento da expectativa de vida e o consequente crescimento do número de idosos no Brasil, essa causa de obrigatoriedade do regime de separação de bens tende a afetar a cada dia uma maior parcela da população. Dessa forma, tendo-se em vista o atual cenário – que tende a se intensificar nos próximos anos – de uma terceira idade cada vez mais significativa e participativa, há que se questionar uma previsão normativa que cerceia o seu direito de escolha.
2A CAPACIDADE JURÍDICA E OS PRINCÍPIOS QUE REGEM O TEMA
A concepção de personalidade está diretamente ligada ao de pessoa, conforme afirma Caio Mário (2004, p. 213) “a ideia de personalidade está intimamente ligada à de pessoa, pois exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair deveres. Esta aptidão é hoje reconhecida a todo ser humano”.
Nesse sentido, conforme Gonçalves (2010), é certo dizer que todo aquele que nasce com vida torna-se uma pessoa, adquirindo personalidade. Enquanto a característica de pessoa expressa a condição para ser parte do ambiente social e jurídico, para fins de direitos e deveres, a personalidade vem intimamente ligada para afirmar sua natureza em exercer esta finalidade jurídica.
Ao afirmar em seu art. 1º que toda “pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil, nosso Código Civil relaciona o conceito de capacidade ao de personalidade, em que aquele é a medida deste, ou seja, a capacidade pode ser plena para uns ou restrita para outros, ela, de certa forma, limita o exercer da personalidade.
Esta competência, de adquirir direitos e deveres de ordem civil, que advém da personalidade, trata-se da capacidade de direito. A ela podemos dar sentido como sendo a aptidão da pessoa em ser titular de direitos, deveres ou obrigações, tendo o seu início no nascimento e mantendo-se até a morte.
Nesse sentido, para Venosa (2011) podemos dizer que todos nós possuímos a capacidade de direito, visto que, mesmo o recém-nascido ou doente mental possuem esse potencial, derivado da aquisição de personalidade, porém, ser potencial não significa exercer de fato este poder. Para isso existe a concepção da capacidade de fato, chamada também de capacidade de ação ou de exercício, onde efetiva a nossa capacidade plena para a prática de atos da vida civil.
Assim, o artigo 1º do Código Civil dispõe que: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres”. Esta capacidade pode ocorrer de várias formas.
Atingindo a maior idade (18 anos) prevista em nossa legislação, no art. 5º, parágrafo único, do Código Civil, como a aquisição da capacidade de fato pelo indivíduo, que até então, apenas possuía a capacidade de direito, reflete-se atingida a plenitude da capacidade, desde que não se encaixe em nenhuma das possibilidades do rol de incapacidade, tanto absoluta quanto relativa, elencadas nos artigos 3º e 4º do Código Civil vigente.
Percebe-se que, do ponto eminentemente jurídico, conforme Gonçalves (2010):
(...) a plena capacidade leva em conta o critério unicamente etário, em que o indivíduo atingirá sua plenitude apenas ao completar os dezoito anos de vida, independentemente, se há maturidade precoce, anterior à idade estipulada. O que gera dúvida e insegurança quanto a determinação da plena capacidade é que não se pode confundir a incapacidade e capacidade civis com maioridade e menoridade. A maioridade não implica em automaticamente conceder a plena capacidade, pois, podemos ter um indivíduo com mais de dezoito anos de idade, porém deficiente mental, resultando em incapacidade. Enquanto pode ocorrer também de um indivíduo ter menos de dezoito anos e já possuir a capacidade plena através do instituto da emancipação. (GONÇALVES, 2010, p. 67).
Venosa (2011) explica que:
Tratando-se da incapacidade são destacados inicialmente pela nossa legislação, aqueles sujeitos dotados de atividades civis, que adquiriram direitos, porém, não podem exercê-los de forma autônoma, direta ou pessoalmente. A estes, o Código Civil refere-se como absolutamente incapazes e indica quais serão os seus representantes para o exercício dos atos jurídicos que lhes couberem. Cabe salientar, que essa representação pode se dar de forma automática, devido a força da relação de parentesco ou, através de uma nomeação judicial, advinda da autoridade judiciária que legitima a qualidade do representante em assim o ser. Destarte, os efeitos advindos de atos praticados por um indivíduo inserido como absolutamente incapaz serão respaldados de nulidade. (VENOSA, 2011, p. 102).
Com relação aos princípios, cabe destacar que estes são as bases fundamentais de qualquer ciência. São as diretrizes básicas que irão guiar o caminho a ser trilhado por aquela ciência.
É importante destacar também, conforme explica Dias (2011, p. 55) que “os princípios são normas jurídicas diferentes das regras, porque eles consagram valores generalizantes e servem para balizar todas as regras, as quais não podem afrontar as diretrizes contidas nos princípios”.
Com relação ao tema em questão, os princípios que predominam são:
princípio da autonomia e da liberdade.
Para Lenza (2012):
(...) a autonomia é a expressão em que, refere-se à capacidade das pessoas em realizar as suas tomadas de decisões frente à prática dos seus atos. Considera-se autônomo o indivíduo que consegue expressar a sua vontade, que age conforme suas crenças e valores morais, que possui a faculdade de analisar e se responsabilizar sobre seus atos e as consequências que deles resultarem. (LENZA, 2012, p. 243).
Dias (2011) explica que:
(...) a liberdade e a igualdade foram os primeiros princípios reconhecidos como direitos humanos fundamentais, integrando a primeira geração de direitos a garantir o respeito à dignidade da pessoa humana. O papel do direito, que tem como finalidade assegurar a liberdade, é coordenar, organizar e limitar as liberdades, justamente para garantir a liberdade individual. (DIAS, 2011, p. 60).
Neste sentido, cabe agora demonstrar a ofensa aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade, diante da imposição do regime de bens simplesmente em razão do critério da idade.
3A OFENSA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DA LIBERDADE E DA IGUALDADE
A Constituição Federal de 1988, logo em seu preâmbulo, elege a liberdade e a igualdade entre os valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, conforme mencionado acima.
No artigo 1º, inciso III, a Carta Magna prevê como um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, e, no artigo 3º, estabelece como um dos objetivos fundamentais da República “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Ao tratar dos direitos e das garantias fundamentais, a Constituição determina, no caput do seu art. 5º, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e assegura a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Diante disso, Dias (2011) observa que a Constituição Brasileira de 1988 é considerada uma das mais avançadas do mundo, pois “impõe como valor maior o respeito à dignidade humana baseada nos princípios fundamentais da liberdade e da igualdade. Considera a família a base da sociedade e veda qualquer espécie de discriminação”.
De acordo com Maria Berenice Dias (2011, p. 61), o princípio da dignidade da pessoa humana é o princípio maior, base do Estado Democrático de Direito. Nas palavras da autora, “a preocupação com a promoção dos direitos humanos e da justiça social levou o constituinte a consagrar a dignidade da pessoa humana como valor nuclear da ordem constitucional”.
Segundo Luís Roberto Barroso (2010), a dignidade da pessoa humana é o pilar fundamental dos direitos humanos, e apresenta três aspectos essenciais: valor intrínseco, autonomia da vontade e valor social da pessoa humana. Neste sentido, tem-se a autonomia, como elemento da dignidade que envolve a capacidade de autodeterminação, o direito de escolha dos rumos da própria vida e de desenvolver livremente sua personalidade.
No caso da imposição do regime de separação de bens em razão da idade, visualiza-se clara ofensa aos planos da dignidade da pessoa humana, na medida em que retira da pessoa maior de 70 (setenta) anos a autonomia de escolher o regime de bens que reputar mais adequado para reger seu casamento, tratando-a como se incapaz fosse, ainda que não esteja abarcada por nenhuma das hipóteses de incapacidade civil, apenas em virtude de uma circunstância pessoal sua – a idade. Nesse sentido, Paulo Lôbo (2011) defende que essa hipótese atenta contra o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, uma vez que reduz a autonomia do individuo maior de 70 (setenta) anos como pessoa e o constrange a uma tutela reducionista, além de estabelecer a ele uma restrição à liberdade de contrair matrimônio, o que a nossa Constituição não faz.
Diante da nova realidade social, toda pessoa deve ter o direito de escolher a forma de constituição de sua família, haja vista que a atual Constituição consagra diversas espécies de entidades familiares, tendo como elemento fundante o afeto, de modo a promover a dignidade humana no grupo familiar. Optando-se pelo casamento, deve ele refletir a vontade das partes, com o fim de cumprir sua função social: a comunhão plena de vidas.
A restrição à vontade do nubente maior de 70 (setenta) anos, no tocante a um dos aspectos da constituição de família através do casamento, longe de constituir uma medida protetiva, como querem alguns, reflete a persistência de traços de uma postura patrimonialista no Código Civil, fugindo à atual concepção personalista do Direito Civil, e violando o princípio da dignidade da pessoa humana. Maria Berenice Dias (2011) destaca que
A Constituição, ao instaurar o regime democrático, preocupou-se em banir discriminações de qualquer ordem, conferindo especial atenção à liberdade e à igualdade, e neste particular cita a imposição do regime de separação de bens como um dos mais flagrantes exemplos de afronta ao princípio da liberdade. (DIAS, 2011, p. 63).
Além de ofender a Constituição da República, o regime de separação obrigatória de bens se contradiz também com o próprio Código Civil, no tocante à regulação da capacidade civil.
O Código Civil prevê que a capacidade de fato é adquirida, em regra, com a maioridade, habilitando-se a pessoa à prática de todos os atos da vida civil a partir dos dezoito anos. A capacidade de exercício pode surgir, também, para os menores, nas situações especificadas pela lei civil.
Por outro lado, a lei estabelece as hipóteses de incapacidade, listando-as em rol taxativo. Como aponta Pereira (2007, p. 279), a regra é a capacidade, e a incapacidade é exceção. “Em outras palavras, a capacidade de fato é presumida, e apenas por exceção, expressamente decorrente de lei, é possível conceber a incapacidade para o exercício pessoal e direto dos atos da vida civil”.
Uma vez adquirida a capacidade civil plena, ela só pode ser afastada nas situações previstas em lei, e através do processo judicial de interdição, observadas as regras especiais a ele pertinentes. Aliás, tão delicada é a questão da capacidade civil que o processo de interdição é revestido de diversos requisitos formais.
Pronunciado o decreto judicial de interdição, ao interdito recusa-se a capacidade de exercício, sendo nomeado um curador que o represente nos atos da vida civil.
Entre as hipóteses de incapacidade civil absoluta e relativa, previstas nos artigos 3º e 4º do Código Civil, não se verifica nenhuma relativa aos maiores de 70 (setenta) anos de idade, do que se infere que não se perde a capacidade de fato com o implemento da idade. A respeito desse ponto, Caio Mário da Silva Pereira observa que:
A senilidade, por si só, não é causa de restrição da capacidade de fato, porque não se deve considerar equivalente a um estado psicopatológico, por maior que seja a longevidade. Dar-se-á a interdição se a senectude vier a gerar um estado patológico, como a arteriosclerose ou a doença de alzheimer, de que resulte o prejuízo das faculdades mentais. Em tal caso, a incapacidade será o resultado do estado psíquico, e não da velhice. (PEREIRA, 2007, p. 279).
No mesmo sentido são os ensinamentos de Paulo Lôbo:
A idade avançada não é por si deficiência ou enfermidade mental. A pessoa pode viver muito tempo como idosa, sem qualquer comprometimento de sua higidez mental. Todos os órgãos da pessoa, inclusive o cérebro, sofrem mutações com o passar dos anos, reduzindo-se as habilidades antes desenvolvidas. Mas essa circunstância natural não é suficiente para suprimir ou reduzir a capacidade de exercício da pessoa, se permanece nela a faculdade de discernir. (LÔBO, 2010, p. 124).
O autor destaca, ainda, que o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) tem por objetivo proteger a pessoa idosa, e não reduzir a sua capacidade de exercício, pois, como prevê o art. 8º do mencionado diploma, “o envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção um direito social”.
Como se percebe, os idosos detêm capacidade civil plena, haja vista que a idade avançada não se enquadra em nenhuma das hipóteses de incapacidade civil. A capacidade de exercício apenas lhes é recusada em caso de superveniência de alguma enfermidade que prejudique seu discernimento, ou por enquadramento em alguma das demais hipóteses de incapacidade civil previstas na lei.
Ainda assim, subsiste no Código Civil Brasileiro a regra que impõe o regime de separação de bens aos maiores de 70 anos, usurpando-lhes a liberdade de escolha do regime de bens que julguem mais apropriado para reger as relações patrimoniais decorrentes de seu casamento, e, dessa forma, tratando-os como se incapazes fossem.
Mesmo que não esteja configurada nenhuma das causas de incapacidade civil legalmente previstas, a capacidade civil do maior de 70 (setenta) anos é diminuída relativamente ao casamento, apenas em virtude de sua idade. Descumprindo a exigência do processo de interdição, e até mesmo na ausência de qualquer das situações estabelecidas pelos artigos 3º e 4º do Código Civil, o próprio Estado, através do inciso II do art. 1.641, limita a capacidade civil do indivíduo, tomando por justificativa tão-somente o implemento da idade.
Nesse dispositivo, segundo Venosa (2011):
(...) equipara-se os maiores de 70 anos às pessoas dotadas de capacidade diminuída, sujeitas à proteção do Estado, porém, dispensando-se a exigência legal do processo de interdição. Frise-se, inclusive, que, não sendo necessária a interdição, a diminuição da capacidade civil instituída pelo art. 1.641, inciso II, do código aparenta ser ainda mais gravosa que as hipóteses estabelecidas pelos artigos 3º e 4º, o que não há como não se questionar. (VENOSA, 2011, p. 104).
A pretexto de uma suposta proteção, o legislador acabou por instituir uma presunção jure et de jure de incapacidade mental, de forma aleatória e sem buscar sequer algum subsídio probatório, como observa Maria Berenice Dias (2011).
Isso porque a imposição do regime de separação de bens, nesse caso, é absoluta, não comportando nenhuma possibilidade de ser afastada essa cominação legal, diferentemente do que ocorre nas demais hipóteses de regime de separação de bens obrigatório. (DIAS, 2011, p. 65).
Outro ponto que merece ser destacado é que a obrigatoriedade do regime de separação de bens, para os maiores de 70 (setenta) anos, subsiste ainda que não tenham família a qual deixar seus bens. Essa observação desconstitui os argumentos de alguns dos defensores da imposição, segundo os quais ela constituiria uma proteção ao idoso e à sua família.
Isso significa presumir uma diminuição do discernimento da pessoa em razão do implemento da idade, sem sequer admitir prova em contrário. Suposição que, inclusive, não condiz com a realidade atual, em que a elevação da qualidade e da expectativa de vida permitem ao idoso uma vida ativa, conforme já foi destacado no capítulo inicial do presente trabalho.
Pereira (2010), neste sentido, salienta ainda que:
Se é certo que podem ocorrer esses matrimônios por interesse nestas faixas etárias, certo também que em todas as idades o mesmo pode existir, de modo que a regra da obrigatoriedade do regime de separação de bens em razão da idade não encontra justificativa econômica ou moral, pois a desconfiança contra o casamento dessas pessoas não tem razão para subsistir. (PEREIRA, 2010, p. 281).
Por fim, que, se um dos objetivos é proteger a família do idoso, a imposição não deveria persistir, no caso de não haver família a ser protegida. Ademais, ainda que o idoso tenha família, deve-se lembrar que no ordenamento jurídico brasileiro não se cogita de herança de pessoa viva. Logo, não deveria ser admitido como fim de uma regra legal a proteção de uma eventual futura herança, quando viva a pessoa.
Acrescente-se que é assegurada à pessoa a livre disposição de seus próprios bens, à vista de seu direito de propriedade, previsto no art. 5º, XXII da Carta Magna como garantia fundamental. Da mesma forma, prevê o art. 1.228, caput, do Código
Civil que “o proprietário tem o direito de usar, gozar e dispor da coisa”.
É no mínimo injusto que a pessoa não possa dispor como bem entender do patrimônio que construiu durante toda sua vida, a pretexto de uma proteção aos interesses de seus eventuais futuros herdeiros. Inadmissível a limitação à liberdade de escolha com tais objetivos.
4REGIME DE BENS – DIFERENÇA ENTRE OS REGIMES
A distinção entre os diversos regimes se percebe identificando o número de conjuntos ou massas que cada um deles compreende. Pela comunhão universal de bens forma-se um único conjunto. Todo o acervo patrimonial, tanto o preexistente ao casamento e pertencente a qualquer dos cônjuges, como tudo o que for adquirido durante a sua vigência, compõe uma só universalidade patrimonial, a ser dividida igualmente entre os cônjuges, no final do casamento.
No regime de separação total, há dois conjuntos patrimoniais: a) os bens do marido; b) os bens da mulher. Cada um é titular do seu próprio patrimônio, quer tenha sido adquirido antes ou na constância do casamento. Quando da separação, o que se não há o que se dividir, e cada um fica com os bens que lhe pertence. Já no regime da comunhão parcial de bens, conforme Dias (2011), são três os blocos: os particulares de cada um, ou seja, a) os bens do marido, b) os da mulher, adquiridos por cada um antes do casamento; e c) os aquestos, bens comuns adquiridos após o enlace matrimonial por ambos ou qualquer dos cônjuges. Solvido o casamento, cada um ficará com seus bens particulares e mais a metade do patrimônio comum.
No regime da participação final nos aquestos, segundo Dias (2011):
Existem cinco universalidade de bens: os particulares que cada um possuía antes de casar, ou seja, a) os bens do homem e b) os da mulher. Depois do casamento, surgem mais três conjuntos: c) o patrimônio próprio do marido; d) o adquirido pela mulher em seu nome; e e) os bens comuns adquiridos pelo casal durante o casamento. No caso de dissolução do vínculo, cada cônjuge ficará com seus bens particulares e com a metade dos comuns. Com relação aos bens próprios de cada um, adquiridos durante o casamento, serão compensados os respectivos valores. No caso de desequilíbrio, fica um com crédito junto ao outro. (DIAS, 2011, p. 69).
Demonstrada a questão da diferença entre regime de bens, cabe, no próximo tópico, adentrar no tema referente à separação obrigatória de bens, objeto deste artigo.
5A SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS
A escolha do regime de bens, feita por ocasião do casamento, rege a situação patrimonial do casal durante sua vigência, mas tem maior significado quando de sua dissolução. Podem os noivos adotar qualquer dos regimes de bens previstos na lei ou gerar um regime próprio. Mantendo-se silenciosos, ou seja, não firmando pacto antenupcial, vigora o regime da comunhão parcial. Hipóteses há, no entanto, em que a vontade dos nubentes não é respeitada. Impõe a lei o regime da separação obrigatória:
Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
- - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
- – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010)
- - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial. (BRASIL, CC, 2002).
Segundo Dias (2011), trata-se de mera tentativa de limitar o desejo dos nubentes mediante verdadeira ameaça.
A forma encontrada pelo legislador para evidenciar sua insatisfação frente à teimosia de quem desobedece ao conselho legal e insiste em realizar o sonho de casar é impor sanções patrimoniais. Os cônjuges casados sob o regime de separação obrigatória não podem contratar sociedade entre si ou com terceiros. Parece que a intenção do legislador é evitar qualquer possibilidade de entrelaçamento de patrimônios. (DIAS, 2011, p. 89).
Nas hipóteses em que a lei impõe esse regime de bens, pode o juiz excluir esta “sanção” (CC, artigo 1523, parágrafo único). Mas, no caso dos idosos, isso não ocorre.
5.1A súmula 377 do STF
A tentativa do Estado em reger a vida e os afetos das pessoas, se verifica, pois é imposta uma idade mínima e uma idade máxima para se casar. No caso da súmula 377 do STF, o legislador, segundo Dias (2011), limitou-se a reproduzir dispositivo que já existia no CC anterior, não atentado que a justiça já o havia alterado. A restrição à autonomia da vontade, não admitindo sequer a comunhão dos bens adquiridos durante a vida em comum, levou à edição de tal súmula. Assim, justifica-se seu enunciado: a interpretação exata no sentido de que, no regime da separação legal, os aquestos se comunicam pelo simples fato de terem sido adquiridos na constância do casamento, não importando se resultaram ou não, de comunhão de esforços.
Súmula 377 do STF: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.
A jurisprudência, considerando que a convivência leva à presunção do esforço comum na aquisição de bens, procedeu à alteração do dispositivo legal que impunha o regime da separação obrigatória. Determinou a adoção do regime da comunhão parcial para impedir o locupletamento ilícito de um dos cônjuges em detrimento do outro.
Dias (2011) explica que:
É imperioso reconhecer que, em qualquer das hipóteses de imposição do regime legal, a separação diz respeito aos bens presentes, e não aos futuros obtidos na vigência do casamento. Esta foi a lógica que inspirou a súmula. O casamento gera plena comunhão de vidas. Em decorrência do dever de mútua assistência os cônjuges adquirem a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família. O casamento faz surgir verdadeiro vínculo de solidariedade, não justificando a vedação legal, sob pena de se fomentar o locupletamento indevido de um em detrimento do outro. (DIAS, 2011, p. 87).
5.2A união estável entre pessoas com mais de 70 anos
Em decisão do ano de 2016, o STJ definiu que separação de bens não é obrigatória para idosos quando casamento é precedido de união estável. O regime de separação de bens deixa de ser obrigatório no casamento de idosos se o casal já vivia um relacionamento em união estável, iniciado quando os cônjuges não tinham restrição legal à escolha do regime de bens, segundo decisão unânime da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ)[1].
Os Ministros do STJ entenderam, neste caso, que não há necessidade de se proteger o idoso de relacionamentos fugazes dos interesses econômicos, porque ele já vivia em união estável, e a lei deve facilitar a conversão desta união em casamento, conforme a Constituição Federal.
A decisão colegiada foi tomada no julgamento de processo que envolvia um casal que viveu em união estável por 15 anos, até 1999, quando se casaram pelo regime de comunhão total de bens. Na época do matrimônio, o marido tinha 61 anos e filhos de outro relacionamento.
Após o falecimento do pai, um dos filhos do primeiro relacionamento foi à Justiça para anular o regime de comunhão universal, sob a alegação de que o artigo 258 do Código Civil de 1916, vigente à época, obrigava o regime de separação total de bens quando o casamento envolvesse noivo maior de 60 ou noiva maior de 50 anos. A relatora do caso no STJ, ministra Isabel Gallotti, ressaltou no voto que essa restrição também foi incluída no artigo 1.641 do atual Código Civil para nubentes de ambos os sexos maiores de 60 anos, posteriormente alterada para alcançar apenas os maiores de 70 anos.
Como sabido, a intenção do legislador foi proteger o idoso e seus herdeiros necessários dos casamentos realizados por interesse estritamente econômico”, disse a ministra, ao ressaltar que, no caso em julgamento, o casal já vivia em união estável por 15 anos, “não havendo que se falar, portanto, na necessidade de proteção do idoso em relação a relacionamentos havidos de última hora por interesse exclusivamente econômico[2].
A relatora destacou ainda que aceitar os argumentos do recurso acarretaria “incoerência jurídica”. Isso porque, durante a união estável, o regime era o de comunhão parcial. Ao optar pelo casamento, “não faria sentido impor regime mais gravoso”, ou seja, o da separação, “sob pena de estimular a permanência na relação informal e penalizar aqueles que buscassem maior reconhecimento e proteção por parte do Estado, impossibilitando a oficialização do matrimônio”. A relatora ressaltou que a lei ordinária deve merecer interpretação compatível com a Constituição. “No caso, decidir de modo diverso contrariaria o sentido da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, parágrafo 3°, a qual privilegia, incentiva e, principalmente, facilita a conversão da união estável em casamento”, concluiu[3].
6CONCLUSÃO
A regra da obrigatoriedade do regime de separação entende que a idade (maiores de 70 anos) diminui o discernimento da pessoa para alguns atos da vida civil e o deixa mais suscetível de ser enganado, por exemplo. No caso de herança, onde envolve patrimônio, este argumento se torna mais fácil de ser visualizado, principalmente quando se tem herdeiros.
Todavia, conforme foi visto neste artigo, o artigo que rege este regime de bens, fere alguns princípios fundamentais da Constituição Federal, como o da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da razoabilidade. É uma discriminação em face da idade e desrespeita as normas que protegem o idoso, entendendo-o como incapaz neste caso. A idade não pode ser estipulada para interpretar um ato de vontade da pessoa no caso de um regime de bens, pois a pessoa não deixa de possuir discernimento apenas porque completou 70 anos de idade.
Além disso, as pessoas, atualmente estão com a expectativa de vida mais elevada, com mais qualidade de vida, o que permite que vivam a terceira idade com mais saúde e capacidade de discernimento, o que comprova o atentado à dignidade da pessoa humana, à liberdade e à proporcionalidade deste artigo em questão.
Isso mostra que o artigo 1642, inciso II do Código Civil afronta os princípios constitucionais aqui mencionados, e também aos valores do Direito de Família, pois não condizem nem mesmo com a realidade atual da nossa sociedade.