O “desmonte” do trabalhador: concisas anotações sobre a reforma trabalhista brasileira e suas consequências nas relações sociais do trabalho
Resumo: A história do trabalho, quiçá, se confunde com a história da própria humanidade, pois, desde o princípio, o homem necessitou trabalhar, muito embora o trabalho tenha significado também, ao longo dos séculos, miséria, exploração e opressão, necessitando assim de instituições e institutos que amenizassem estas condições em todas as sociedades, inclusive no Brasil. Este texto visa fazer algumas observações sobre estas condições, bem como da importância da necessidade das leis trabalhistas, justas, e do Poder Judiciário (Justiça do trabalho), instituições estas que estão procurando, ou tentando, extinguir, ou enfraquecer, gradualmente. Usando-se, para tanto, de pesquisas bibliográficas – livros, leis, jurisprudência e outras publicações, quando cabíveis.
Palavras-chaves: Operários. Empregador. Direitos. Reforma trabalhista. Perdas de direitos.
Abstract: The history of labor, perhaps, is confused with the history of mankind itself, since, from the beginning, man needed to work, although work has also meant, to centuries, misery, exploitation and oppression, thus necessitating institutions and institutes that would soften these conditions in all societies, including in Brazil. This text aims to make some observations about these conditions, as well as the importance of the need for labor laws, just and the Judiciary (Labor Justice), institutions that are looking for, or trying, extinguish or weaken gradually. For that, using bibliographical research - books, laws, jurisprudence, when applicable.
Keywords: Workers. Employer. Rights. Labor reform. Loss of rights.
Introdução
Os seres humanos, isto é fato, assim como todos os demais animais necessitam realizar alguma atividade produtiva (trabalho) que lhes permitam adquirir o mínimo possível para sua sobrevivência e, quem sabe, de sua linhagem, condição esta imposta ou por força de leis naturais, ou por ordenações humanas. Com uma diferença: os animais – livres na natureza – não estão sujeitos a processos de excessos de trabalho e exploração por parte do que têm poder para fazer isto. Como ocorreu em todo modo de produção engendrado pelos homens, desde o modo de produção escravista ao capitalista. Escravos, servos e operários são termos distintos, com significados distintos, contudo com condições de vida e relações trabalhistas análogas ou iguais, conforme o caso. Até 1934, operários daquela época e os escravos dos Brasil escravista vivam em realidades sociais e econômicas equivalentes.
Tal situação foi alterada com o advento da Consolidação das Leis do Trabalho, Lei nº 5.452, de 1º de maior de 1943, na qual vários direitos foram estabelecidos em favor dos mais impotentes nas relações trabalhistas, chamados hipossuficientes nos tratados de Direito do Trabalho, pois não conseguem fazer frente aos poderes e influências daqueles que possuem os meios de produção - mesma coisa que ocorria na relação escravo e escravista, servo e senhor. Além da CLT o governo Vargas também instituiu a Justiça do Trabalho, com seus tribunais e juízes especializados para procurarem promover mais paridade e Justiça nas aberrantes discrepâncias nos conflitos instaurados entre operário (quase escravo) e empregador, este possuidor inclusive de riquezas para comprar os melhores advogados.
Após mais 70 anos passados, acredita-se, trabalhadores brasileiros estão retornando ao status quo de outrora, pois direitos ou vantagens existentes na antiga lei trabalhista foram suplantados, à revelia dos interesses de quem de fato trabalha para multiplicar as riquezas da nação (ou dos mais opulentos, na verdade), desta forma sendo minguado “o poder de negociação” da classe trabalhadora.
1. As relações de trabalho no contexto do modo de produção
Depois das relações familiares, as primeiras que todos os indivíduos estarão sujeitos, outra relação social marcante e duradoura – ou não – que os homens constroem são as relações de emprego ou trabalho, com as mais variadas consequências, conforme o caso, inclusive as jurídicas.
É fato que desde os grupos sociais mais primitivos, existem pessoas vinculadas umas as outras em virtude de atividades trabalhistas e de consumo, para supressão de suas necessidades, com maior ou menor complexidade, segundo o processo de evolução social e construção de bens e valores materiais e imateriais, ou espirituais. E estas atividades, consoante os vínculos e a maior ou menor relação de dominação, exploração, bens produzidos, produtividade e forma de compensação vai gerar um ou outro modo de produção (escravista, asiático, feudal, comunal). E de acordo com a forma de se produzir, distribuir e consumir o que é produzido relacionamentos de grupos e indivíduos vão surgindo para além da convivência de pais e filhos, avós e netos, tios e sobrinhos etc. De modo que a coisa principal – ou uma das mais importantes – na relação vai ser o trabalho e capacidade de produzir e ser compensado, já que nas ligações trabalhistas escravos, servos ou operários todos trabalham porque necessitam de algum bem ou valor que os possibilitem sobreviver. O escravo transformado em gladiador (para o seu senhor), o servo que cultivava a terra e protegia os rebanhos, o bancário, o metroviário, rodoviário e o cobrador, todos só se relacionam com seus senhores por causa de suas condições de sobrevivência; de suas necessidades vitais, individuais e coletivas. O douto professor e jurista Maurício Godinho Delgado, no seu “Curso de Direito do Trabalho” leciona o seguinte:
Cabe acrescer-se, por fim, a função civilizatória e democrática, que é própria ao Direito do Trabalho. Esse ramo jurídico especializado tornou-se, na História do Capitalismo Ocidental, um dos instrumentos mais relevantes de inserção na sociedade econômica de parte significativa dos segmentos sociais despossuídos de riqueza material acumulada, e que, por isso mesmo, vivem essencialmente de seu próprio trabalho. Nesta linha, ele adquiriu o caráter, ao longo dos últimos 150/200 anos, de um dos principais mecanismos de controle e atenuação das distorções socioeconômicas inevitáveis do mercado e sistema capitalistas. Ao lado disso, também dentro de sua função democrática e civilizatória, o Direito do Trabalho consumou-se como um dos mais eficazes instrumentos de gestão e moderação de uma das mais importantes relações de poder existentes na sociedade contemporânea, a relação de emprego.[1]
Daí, em virtude das desigualdades nas relações sociais laborais, como consequência, surgiu o Direito do Trabalho com o propósito de mitigar os conflitos de interesses, o processo de desumanização trabalhista e exploração demasiada do processo produtivo realizado pelos trabalhadores em favor dos seus patrões, em todos os modos de produções, inclusive no capitalismo, desde o seu nascedouro até os dias atuais.
2. Uma possível discussão sobre as relações de trabalho no processamento de dominação social
Os chamados teóricos das ciências sociais foram vários, muito embora a sociologia ou os sociólogos tenha como destaque Augusto Comte, Emile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. Estes cientistas sociais discutiram as relações sociais por vários prismas e com metodologias diferentes, conforme o foco ou objeto de estudo. Karl Marx, tratando de analisar os relacionamentos sociais – mesmos que muitas vezes desumanos – com foco voltado para as relações de trabalho e de produção, vai perceber e afirmar que as relações sociais, no contexto histórico do modo de produção, sempre foram e serão de relações de exploração e dominação social, pois quem possui riquezas não trabalha, mas impõe todas as formas de trabalho e espoliação àqueles que trabalham e necessitam de meios (bens materiais e dinheiro) para viver; ou mesmo que venham a trabalhar suas condições de trabalho são incomparáveis com as daqueles que trabalham de sol a sol, a preço de pão e água.
A estrutura lógica do pensamento de Marx foi que em dados momentos da humanidade, quando os indivíduos em sociedade passaram a estabelecer bens e valores, uns se apoderando e acumulando bens mais do que outros, surgiram também os processos de expropriação de bem alheio (a força de trabalho) e imposição de prestação de trabalho desvalorizado pelo seu tomador.
As análises, os métodos, os resultados e consequências dos estudos sociais de Marx e, posteriormente, seus seguidores levaram a uma preocupação de parte da sociedade, os cientistas sociais e os juristas sobremaneira, trazendo como resultado a criação do Direito do Trabalho, dos juízes trabalhistas e dos Tribunais do Trabalho, que se espalharam pelo mundo ocidental, com o propósito de suavizar as misérias resultantes das ligações trabalhistas entre empregador e empregado, que pode se traduzir também por patrão e operário; ou quem sabe, ainda nos dias modernos, senhor e servo.
Diz o texto da Carta da República brasileira, acerca da valorosa Justiça do Trabalho (que parecem estar tentando enfraquecê-la ou neutralizá-la na nova ordem jurídica pátria, com a reforma trabalhista):
Art. 111. São órgãos da Justiça do Trabalho:
I - o Tribunal Superior do Trabalho;
II - os Tribunais Regionais do Trabalho;
III - Juizes do Trabalho.
[...]
Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
II as ações que envolvam exercício do direito de greve;
III as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;
IV os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;
V os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o;
VI as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;
VII as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;
VIII a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir;
IX outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.
Parece que, apesar dos ocidentais se declararem cristãos, misericórdia ou clemência e Justiça são atributos ou qualidades que poucos conhecem, uma vez que exploração de força trabalho, imposição de condições insalubres ou desumanas de trabalho, salários esquálidos etc. são características que foram passando de um modo de produção para o outro, até chegar ao capitalista. Fatos estes que levaram necessariamente a instituição dos juízes e tribunais trabalhistas, apesar destes órgãos da Justiça do trabalho não conseguirem solucionar todas as questões demandas em juízo, como é o caso das fraudes contra credores (no caso, créditos trabalhistas) praticadas por empregadores, quando estes omitem bens, transferem propriedades, negão existência de horas extras trabalhadas etc. etc. Questões estas que se já não eram tão fáceis de serem resolvidas, mesmo com a existência da Justiça do trabalho (desde o TST aos juízes singulares), da Constituição Federal e da antiga Consolidação das Leis do Trabalho, agora tende da ficar pior com a reforma trazida pela lei nº 13.467/17, que modificou a CLT em mais ou menos duzentos artigos, possivelmente para favorecer, como outrora favoreceu, aos mais possuidores ou proprietários de bens e valores; e até quem sabe possuidores de pessoas, pois despersonalizadas, ou desumanizadas.
Na avaliação de Vólia Bomfim, professora da LFG, doutora em Direito e desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região/RJ, as alterações feitas pela reforma trabalhista favorecem o empresário, suprimem ou reduzem os direitos dos empregados, autorizam a ampla flexibilização por norma coletiva e a terceirização.[2]
3. A necessidade da existência das leis para proteger as relações trabalhistas entre empregador versus operário
É fato certo e incontroverso que os salários famélicos, a exploração da mão-de-obra e as condições de miseráveis de trabalho e produtividade das massas de operários, em todas as partes do mundo ocidental levaram à criação de institutos jurídico-trabalhistas que pudessem reduzir os infortúnios de trabalhadores da indústria, do comércio, da pecuária e outros setores produtivos; ou atividades laborais. Também é fato que os donos das riquezas multiplicadas por cada grupo ou nível de operário específico – do gerente do banco ao apertador de parafusos da fábrica – são forçados a aceitaram a legislação trabalhista, de forma que, aqui, ali e alhures, as regras legais das normas do trabalho são violadas ou descumpridas, diuturnamente, levando as massas operárias a recorrem ao Poder Judiciário (juízes e tribunais do trabalho) para haverem diversas formas de garantias e direitos sonegados mesmo na presença da lei – um conjunto delas, ignoradas todos os dias.
Ora, se existindo uma regra, ou conjuntos delas, que os grandes possuidores de riquezas alegavam ser muito favorável aos amontoados de operários (ou escravos modernos) os tribunais da Justiça do Trabalho eram abarrotados de demandas nessa área do Direito, por abusos dos mais variados – trabalho extraordinário sem remuneração, trabalho noturno sem adicional, férias não pagas, redução de horário de almoço sem compensação etc. etc. – imagine o que ocorrerá com a nova ordem trabalhista pátria com o fortalecimento do poder de imposição do proprietário e enfraquecimento do operário, com os novos dispositivos da CLT. Um destes dispositivos é o art. 134, §º, que expressa: “Desde que haja concordância do empregado, as férias poderão ser usufruídas em até três períodos, sendo que um deles não poderá ser inferior a quatorze dias corridos e os demais não poderão ser inferiores a cinco dias corridos, cada um” (grifo do autor). Note-se que as férias que agora podem ser fragmentadas, necessitam, para isto, da aprovação do empregado. Mas num país no qual o desemprego permanece em alta, na cifra dos milhões e mais milhões – gerando um “exército” de esfomeados e desesperados à espreita por um posto de trabalho com venda de mão de obra barata – nem operário vai opor resistência aos mandamentos de seus patrões, senhores ou exploradores. É como se o rodoviário, o vendedor, o cobrador, a balconista, a estoquista, o carregador, entregador, a telefonista tivessem poder de debater, barganhar, impor ou negociar com os empresários que os submete, impondo como querem gozar suas férias.
A lei, semelhante a uma espada de dois gumes, pode trazer graves derrotas para muitos, pois pode ser usada como arma política para favorecer a todos os tipos de proprietários apatacados, aumentando o que estes já possuem, e retirando o pouco que resta das mãos de famulentos e “famintos” produtores de riquezas na nova ordem econômica e jurídica. Usada desta forma no passado ou no presente, o propósito pode ser o mesmo: explorar e encurralar a quem já tem muito pouco. A sociedade, os cidadãos, os trabalhadores, todos precisam procurar identificar e saber a serviço de quem a lei vai está.
Assim diz um antigo texto, de um valoroso estudioso e pensador social, sobre as condições humanas de trabalho da sociedade ao longo dos séculos:
Eduardo VI – Uma lei do primeiro ano do seu governo, 1547, estabelece que, se alguém se recusa a trabalhar, será condenado como escravo da pessoa que o tenha denunciado como vadio. O dono deve alimentar seu escravo com pão e água, bebidas fracas e restos de carne, conforme achar conveniente. Tem o direito de forçá-lo a executar qualquer trabalho por mais repugnante que seja, flagelando-o e pondo a ferros. [...] O dono pode vendê-lo, legá-lo, alugá-lo, como qualquer bem móvel ou gado. Se o escravo tentar qualquer coisa contra seu senhor será enforcado.[3]
Afirma ainda, mais adiante, aquele que foi um dos grandes pensadores da filosofia moderna, sobre leis que foram usadas contra todo tipo de trabalhador ao longo da História:
[...] em 1799, uma lei do parlamento estabeleceu que os salários do trabalhadores das minas na Escócia continuava a ser regulado por uma lei de Elizabeth e por duas leis escocesas de 1661 e 1671. Mas, a situação tinha mudado muito. É o que demonstra um acontecimento inaudito na Câmara dos Comuns. Aí, onde há mais de 400 anos se fabricavam leis fixando o máximo que o salário em nenhuma hipótese podia ultrapassar, propôs Whitbread, em 1796, um salário mínimo legal para o jornaleiro agrícola. Pitt opôs-se, embora reconhecesse “ser cruel a situação dos pobres”. Em 1813, foram abolidas finalmente as leis que regulavam os salários. Eram uma anomalia ridícula, uma vez que o capitalista passara a decretar nas fábricas sua legislação particular e recorria à taxa de assistência aos pobres para reduzir o salário do trabalhador agrícola ao mínimo indispensável. As disposições dos Estatutos dos Trabalhadores, relativas a contratos entre patrões e assalariados, a aviso prévio e matérias análogas, e que, por quebra contratual, permitem ação criminal contra o trabalhador em falta e apenas uma ação civil contra o patrão que viola o contrato, continuam até hoje em pleno vigor.[4]
No ideal construído pela Filosofia do Direito, pela Sociologia Jurídica e pelo próprio Direito, como Ciência Social, pelos jurisconsultos e doutrinadores em geral, a lei – como ferramenta ou instrumento social que recairá sobre a sociedade – deveria expressar duas coisas principais: a justiça e a melhor vontade popular; ou anseio popular, no tracejo e condução das mais diversas relações sociais, promovendo melhores realidades de vida cotidiana. Nas relações de consumo, de contratos, de vizinhança, nas relações trabalhistas, nas relações conjugais, nas de sucessão etc., de forma que se busquem os melhores caminhos para os governados e destinatários da lei. Isto muitas vezes não será observado ou valorizado pelo legislador, em países como o Brasil, já que o povo, a população, ou os cidadãos como todo não serão sequer bem orientados ou bem instruídos sobre o que o poder legislativo – em tese seu representante constitucional e político – está elaborando, debatendo e aprovando para eles.
Tal episódio pode ser constatado tempos atrás, quando das discussões, debates, elaboração e aprovação da reforma trabalhista, a qual o trabalhador brasileiro (operários da iniciativa privada em geral), certamente, não expressou interesse algum nela, sem desejá-la, logo não legitimando e aceitando aquilo que lhes foi imposto por seus “representantes” e legisladores.
A legalidade, em uma palavra, é a conformidade de uma ação à lei. O legalismo à observância literal da lei; sem cogitações valorativas a respeito do conteúdo da lei (aspecto meramente ideal) teremos a legalidade analisada estritamente. Os Estados no período anterior à legalidade faziam as leis, mas não as respeitavam, não se submetiam a elas, surge então a legalidade como noção jurídica clara de limitação do poder à vontade popular. É dizer, somente os homens, os cidadãos podem determinar seus destinos, por sua vontade que, em última análise deve ser a vontade expressa da lei. Nesse sentido todo comportamento do Estado igualmente deve amoldar-se à lei porquanto o Estado deve (como todos nós) atendimento à vontade legal.
[...]
Se efetivamente considerarmos presente na legalidade o consentimento pleno dos cidadãos, teremos forte conteúdo de legitimidade a emoldurar a legalidade. [...][5]
4. Os interesses que recaem, ou podem recair, sobre os dispositivos de textos de uma lei trabalhista
Na idealização originária do pensamento aristotélico, no qual a política era “a arte, ou ciência, de administrar para o bem comum de todos, ou da maioria” e no bojo do poder político existiria, necessariamente, o poder legislativo – posteriormente melhor definido ou detalhado por Montesquieu. Este com o propósito de debater e editar as melhores normas possíveis – as mais justas – para a condução da sociedade grega. E isto foi disseminado para o restante mundo, através da multiplicação ou reprodução de suas obras; das revoluções (a francesa, v. g.), das Constituições etc. Está função da política e do poder legislativo com o passar do tempo declinou, de modo que o legislativo tornou-se um instrumento de poder a serviço destes ou daqueles interessados, ou interesses; com as devidas exceções, conforme o processo de consciência política e evolução social.
No Brasil, nos idos anos de 2016, quando o poder político estava decidido a impor a reforma trabalhista a qualquer custo, a câmara do deputados estava fatiada em 11 principais bancadas, cada uma delas vinculadas àquele ou a este grupo “político”, ou econômico; ou as duas coisas simultaneamente. E as maiores bancadas legislativas eram, ou estavam, ao lado de proprietários dos mais diversos ramos da economia, não existindo quase representatividade nenhuma a favor de quem trabalhava em relação aos blocos dos proprietários que estavam buscando – quiçá a qualquer preço – aumentar seus lucros, diminuir seus gatos e evitar responsabilidades empregatícias em detrimento as piores condições de trabalho e salários que a reforma trabalhista trará, possivelmente, ou certamente, há longo ou curto prazo. Como destaques, estavam, de um lado, com 223 deputados a bancada das empreiteiras e construtoras; com 208 deputados a bancada empresarial; com 207 deputados a bancada da agropecuária e a bancada da mineração com 23 defensores (deputados), do outro, tínhamos apenas 43 deputados federais representando os sindicatos das massas trabalhadores, numa completa desproporção de interesses e representatividade parlamentar em questões trabalhistas.[6] Outra bancada considerável, à época, na casa baixa do congresso nacional, era a evangélica, com 197 parlamentares, contudo, talvez, só queira saber de discussões afetas às suas ideologias e valores, não se atendo aos interesses e direitos trabalhistas, que já não se garantem mais.
Alguns estudiosos, pesquisadores e doutrinadores ilustres do Direito do Trabalho, tratando das questões da reforma trabalhista, suas consequências e novidades – o trabalho intermitente, e. g. – afirmam, de forma explícita:
As garantias sociais e trabalhistas são resultado das lutas da classe trabalhadora. Historicamente, a legislação protetora do trabalho foi, desde o século XIX, conquistada para enfrentar a barbárie que dominava as relações entre capital e trabalho. Essa permanece sua razão de ser. Os sindicatos, como instrumento de luta coletiva, sempre estiveram na linha de frente dessa disputa para fazer com que as relações de trabalho não se subordinassem à dinâmica do capital.
O desmonte da legislação trabalhista, aprovado pelo Congresso brasileiro neste momento, representa um retrocesso de mais de 150 anos nas relações de trabalho. Reduz a classe trabalhadora a uma mercadoria sem direitos: salários, jornada, férias, descanso, intervalos, adicionais, horas extras, contratos intermitentes poderão ser adotados livremente pelo empregador. A reforma é parte do processo de reorganização da acumulação capitalista, em que o trabalho é continua a ser visto como o componente flexível a ser moldado para produzir mais com menor apropriação da riqueza por quem produz.
A possibilidade de renúncia de direitos pela via da flexibilização que a supremacia do negociado sobre o legislado pode significar, ao contrário do propalado pelos defensores da ideia, fragmenta a organização dos trabalhadores e a própria luta sindical.[7]
A Constituição da República – aqui e ali sendo burlada ou violada – traz nas suas disposições algumas regras e princípios jurídicos acerca do trabalho humano e do Direito do Trabalho que deve servir de norte para o legislador ordinário (poder político), o julgador dos litígios trabalhistas e os detentores do poder econômico. Vejamos alguns destes artigos relevantes que tutelam direitos operários – aqueles que realmente multiplicam as riquezas do patronato. Inicialmente o Art. 1º da CR/88 assegurava: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] “IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (grifo do autor). Quanto ao art. 7º, IV, este estabelece lucidamente:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] IV–salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim [...][8] (grifo do autor).
Também, prestando determinada valorização da mão-de-obra do trabalhador, a fim de mitigar as misérias do trabalho da maior parte da sociedade brasileira, a mesma Constituição da República dispõe em seu texto:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego [...][9] (grifos do autor).
Tudo leva a crer as garantias de direitos expressos na Norma Mãe, como, por exemplo, valores sociais do trabalho; salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas [...]; redução das desigualdades e busca do pleno emprego tenham se tornado – ou venham a se tornar – apenas promessas constitucionais (letras mortas), por imposição legislativa infraconstitucional da reforma trabalhista, deformada, pois, fortalecedora dos proprietários dos meios produções em detrimento daqueles que a única propriedade que possui é sua força de trabalho, vendida – ou trocada – por minguados salários.
No entanto, a despeito dos avanços no mercado de trabalho, é ainda bastante elevada a informalidade e muitos dos empregos criados na última década respondem a regimes de trabalho que, embora formais, fazem uso amplo e diverso do trabalho temporário, inseguro, de baixos salários. Embora o espaço político seja mais aberto, a exemplo dos diversos fóruns constituídos nos governos Lula, com participação das entidades que representam os trabalhadores e diversos segmentos sociais para discussão das políticas sociais e do emprego, pouco se avançou na proposição de uma reforma efetivamente democrática na legislação trabalhista e, contrariamente, houve até mesmo avanço de medidas pontuais no sentido de permitir mais flexibilização do trabalho [...]. Ainda que a economia cresça e que haja uma ampliação do emprego regulado, como vem sendo registrado nos últimos anos, embora com notável instabilidade, sem reformas estruturais profundas e democráticas no sistema de relações de trabalho e na estrutura fundiária, muito dificilmente o Brasil reduzirá seu vergonhoso quadro de desigualdades econômicas e sociais.[10]
Infelizmente, para alcançar seu propósito, o legislador ordinário celetista, com apoio da categoria dos empresários – do campo, da indústria e do comércio, sobretudo – convenceu os grandes rebanhos de operários que a reforma trabalhista seria a salvação de suas vidas, pois isto possibilitaria mais tempo disponível, possibilidade de mais vínculos trabalhistas e, consequentemente, melhor remuneração e geração de mais posto de trabalho. O discurso dos interessados na reforma da CLT é que esta seria a grande benesse para os mais impotentes ou explorados na atual conjuntura social do labor. Talvez, o passar do tempo venha a comprovar que as alterações da principal lei trabalhista, de fato, seria uma verdadeira mudança nas relações laborais em favor dos anseios dos grandes proprietários.
5. Conclusão
O interesse salutar e mais humanizador da instituição da Consolidação das Leis do Trabalho (Lei 5.452/43) foram dos mais valiosos para a sociedade trabalhadora de outrora, que visada, precipuamente, combater a exploração da mão de obra remunerada com valores degradantes, reduzir e melhorar as jornadas de trabalhos excessivas ou desumanas, refrear abusos e omissões em registros trabalhistas por parte do empregador etc. etc., promovendo assim uma melhor distribuição de renda, redução dos níveis de miséria das massas operárias, minimizar as diferenças ou desigualdades sociais e econômicas entre os proprietários de capitais e os produtores de capitais, dentre outras situações.
Além da CLT, a própria Constituição da República de 1988, em alguns dispositivos, tratou de instituir normas para proteção dos “rebanhos” de operários frente ao poder econômico do empregador, bem como do poder político – já que este interfere ou influencia o Poder Legislativo, na elaboração da norma laboral mais favorável à sua situação de empresário ou empregador, pois isto é o que nos leva a acreditar a formação das bancadas da câmara dos deputados.
Lamentavelmente, muitas das garantias e direitos atribuídos pela antiga redação da CLT, e até mesmo valores e normas constitucionais, adquiridos a duras penas ou pelejas, foram, ou serão, denegados pela Lei 13.467/17 sem se levar em consideração as lutas das massas trabalhadoras, as regras da CR/88 – valor social do trabalho (Art. 1º, IV), busca do pleno emprego (Art. 170, VIII) e dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III), v. g. – e a promessa da promoção da Justiça social e da melhoria da condição humana, no processo de produção de bens e riquezas, mas com dignas condições de trabalho e qualidade de vida para quem trabalha.
Referências bibliográficas
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Publicações eletrônicas
Reforma trabalhista: 'Foi um equívoco alguém um dia dizer que lei ia criar empregos', diz presidente do TST. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2019/07/03/reforma-trabalhista-foi-um-equivoco-alguem-um-dia-dizer-que-lei-ia-criar-empregos-diz-presidente-do-tst.htm. Capturado em: 30 mai. 2020.
Reforma trabalhista reduziu renda, não gerou emprego e precarizou trabalho. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2018/11/11/reforma-trabalhista-reduziu-renda-nao-gerou-emprego-e-precarizou-trabalho. Capturado em: 30 mai. 2020.
Reforma trabalhista gerou só 114 mil vagas intermitentes em 2 anos. Disponível em: https://noticias.r7.com/economia/reforma-trabalhista-gerou-so-114-mil-vagas-intermitentes-em-2-anos-11112019. Capturado em: 31 mai. 2020.
[1]DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 61.
[2]Nova lei trabalhista – principais mudanças para o trabalhador. Disponível em https://www.lfg.com.br/conteudos/artigos/geral/nova-lei-trabalhista-principais-mudancas-para-o-trabalhador. Acesso em: 30 jan. 2019.
[3]MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1 – o processo de produção do capital. Vol. II. 12ª edição. Tradução: Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, p. 852.
[4]MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1 – o processo de produção do capital. Vol. II. 12ª edição. Tradução: Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, p. 857-858.
[5] SANTOS, Marcelo Fausto Figueiredo. Teoria Geral do Estado. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 94-95.
[6] MEDEIROS, Étore; FONSECA, Bruno. Conheça as 11 bancadas mais poderosas da câmara. Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/conheca-as-11-bancadas-mais-poderosas-da-camara/. Acesso em: 13 mai. 2019.
[7] TEIXEIRA, Marilane Oliveira. et al. (org). Contribuição crítica à reforma trabalhista. São Paulo: Unicamp/IE/CESIT, 2017, p. 7-8 (abertura).
[8] Brasil. Constituição Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf. Acesso em: 16 mai. 2019.
[9] Idem.
[10] COSTA. Marcia da Silva. Terceirização no Brasil: velhos dilemas e a necessidade de uma ordem mais includente. Cad. EBAPE.BR, v. 15, nº 1, Artigo 7, Rio de Janeiro, Jan./Mar. 2017, p. 129. Disponivel em http://www.scielo.br/pdf/cebape/v15n1/1679-3951-cebape-15-01-00115.pdf. Acesso em: 18 mai. 2019.