A Lei 13.964/19 foi concebida com a pretensão de criar mecanismos jurídicos de enfrentamento ao crime, especialmente à criminalidade organizada. Não por acaso, a Lei 12.850/13, que trata das organizações criminosas, foi um dos principais focos do legislador, sendo certo que a colaboração premiada, técnica investigativa que ganhou fama durante a denominada “Operação Lava-Jato”, sofreu significativas alterações, especialmente na sua fase preliminar de tratativas.
Vale registrar que o início das negociações visando à formalização do pacto cooperativo sempre foi considerado o momento de maior insegurança para as partes, seja porque os “celebrantes” (delegado de polícia e MP) não tinham condições de identificar claramente a dimensão da colaboração ofertada, seja porque o investigado-colaborador não possuía a blindagem legislativa adequada para apresentar as suas informações.
Ocorre que com as inovações legislativas esse cenário foi completamente alterado, especialmente pelos artigos 3º-B e 3º-C, da LOC. Neste estudo, todavia, iremos nos concentrar nas previsões constantes no primeiro dispositivo legal mencionado.
Nos termos do “caput”, do novo artigo 3º-B, da LOC, o início das negociações é marcado pelo recebimento da proposta, que também constitui marco de confidencialidade e sigilo. Nesse contexto, parece-nos que o legislador conferiu ao colaborador-investigado a prerrogativa de provocar o início das tratativas, o que apenas reforça que a colaboração se caracteriza não apenas como um meio de obtenção de prova, mas, sobretudo, como um mecanismo de defesa.
Mas isso não significa que o delegado de polícia e o Ministério Público não possam sugerir o pacto cooperativo, ainda que informalmente. Aliás, em muitos casos é importante que haja essa advertência por parte dos agentes estatais, afinal, pode ser que o investigado nem sequer tenha conhecimento sobre a possibilidade do acordo e seus prêmios legalmente previstos. Assim, cabe ao Estado-Investigação avaliar o panorama fático probatório de cada caso e, se entender pertinente, colocar-se à disposição para o acordo de colaboração, indicando os prêmios e os resultados que se pretende alcançar, norteando, assim, a formalização da proposta.
A lei estabelece que o recebimento da proposta pelos agentes do Estado (celebrantes) constitui o termo inicial das negociações, sendo que a partir daí surge, para ambas as partes, um dever de confidencialidade, lealdade e boa-fé, valores que devem pautar o negócio jurídico em questão. Destaque-se, ainda, que qualquer divulgação das tratativas iniciais, bem como do documento que as formaliza (Termo de Confidencialidade), caracteriza o rompimento das premissas supramencionadas, afinal, o sigilo da colaboração só pode ser levantado por meio de decisão judicial.
Interessante consignar que o § 1º, do artigo 3º-B, da LOC, atendendo aos anseios de parcela da doutrina, estabelece a necessidade de justificativa por parte do celebrante (delegado de polícia ou MP) nas hipóteses em que a proposta de colaboração for indeferida.
Já o § 3º, do artigo 3º-B, da LOC, prevê que o recebimento da proposta e a formalização do Termo de Confidencialidade não inviabilizam o prosseguimento da investigação, o que, aliás, seria um absurdo, afinal, o dinamismo dessas apurações, especialmente quando envolvem organizações criminosas, exige investigações ininterruptas, inclusive sobre a figura do colaborador, que pode estar agindo de má-fé.[1]
Não obstante, em respeito ao princípio da boa-fé objetiva e, sobretudo, a lealdade que deve marcar as tratativas, sugerimos, com amparo na lei, que seja lavrado Termo de Confidencialidade e Recebimento da Proposta, onde sejam fixadas as premissas que devem pautar as negociações, vinculando ambas as partes. Com efeito, além do dever de sigilo sobre as tratativas, podem ser impostos outros deveres, como, por exemplo, o de não propor medidas processuais penais de natureza cautelar ou assecuratórias, bem como outras medidas de natureza extrapenal por parte dos celebrantes ou o dever de não manter contato com outros investigados por parte do colaborador.
Com o objetivo de conferir maior segurança ao Estado sobre a eficácia do acordo de colaboração proposto, o § 4º, do artigo 3º-B, estabelece que antes da conclusão do pacto cooperativo e já em posse de informações preliminares fornecidas pelo colaborador, os agentes estatais podem promover diligências investigativas no intuito de reforçar a veracidade do conteúdo apresentado, o que, por obviedade, também contribuirá para demonstrar a utilidade e o interesse público do acordo.
De maneira ilustrativa, imagine que numa investigação de organização criminosa voltada a prática de corrupção passiva, o colaborador indique o envolvimento de determinado servidor público, destacando que foram realizados diversos pagamentos em seu benefício em um shopping. Com base nessas informações, são realizadas diligências no referido estabelecimento comercial e por meio do sistema de monitoramento é possível demonstrar que a pessoa delatada se encontrou diversas vezes com outro investigado e em todas ocasiões recebeu um envelope pardo que aparentava ter dinheiro em seu interior. Note-se que essas imagens, já obtidas com o auxílio do colaborador, podem instruir o acordo em seus anexos, demonstrando ao juiz o potencial da colaboração que se pretende homologar.
O § 5º, do artigo 3º-B, da LOC, por sua vez, evidencia a necessidade da formalização do referido Termo de Confidencialidade e Recebimento da Proposta, atribuindo sua elaboração ao celebrante (delegado de polícia ou MP), sendo o documento assinado por ele, pelo colaborador e pelo advogado ou defensor público.
Percebe-se, destarte, que enquanto a proposta de acordo deve ser elaborada pelo colaborador-investigado, a elaboração do Termo de Confidencialidade e Recebimento da Proposta compete ao celebrante. Vale consignar, ademais, que, seguindo a regra já fixada na Lei 12.850/13, desde sua origem, o novo § 5º reforça a imprescindibilidade da participação da defesa durante as negociações, exigindo, ainda, procuração com poderes específicos para este ato.
Por fim, o § 6º determina que na hipótese de o acordo não ser celebrado por vontade do celebrante, nenhuma das informações ou provas apresentadas pelo colaborador, de boa-fé, poderão ser utilizadas para qualquer outra finalidade. Esse dispositivo é, sem dúvida, um dos mais importantes dessa fase de tratativas, devendo sem interpretado em conjunto com o artigo 4º, § 10, da LOC.
Nesse contexto, devemos consignar que o novo dispositivo legal reforça o dever de lealdade entre as partes e, ao mesmo tempo, confere uma maior segurança jurídica ao colaborador, o que nos parece positivo, afinal, serve de estímulo a adoção deste meio de obtenção de prova.
Institui-se, portanto, as chamadas proffer sessions, também denominadas de queen for a day (rainha por um dia), haja vista que todos os elementos apresentados pelo colaborador nessa fase de tratativas, seja de natureza autoincriminatória ou que incriminem terceiros, não poderão ser utilizados para qualquer finalidade.
Nesse ponto é interessante salientar que o inalterado artigo 4º, § 10, da LOC, prevê que “As partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor”. Antes das inovações promovidas pelo “Pacote Anticrime”, entendíamos que nos casos em que o acordo não fosse homologado, as provas autoincriminatórios apresentadas pelo colaborador não poderiam ser utilizadas somente em seu prejuízo, mas poderiam ser adotadas contra terceiros também investigados.
É evidente que o referido dispositivo gerava enorme discussão na doutrina, mas agora nos parece clara a vontade do legislador, sendo que o novo artigo 3º-B, § 6º, deve nortear a sua interpretação, não se admitindo a utilização das provas apresentadas pelo colaborador para qualquer finalidade, inclusive contra eventuais delatados.
Vislumbramos, contudo, uma exceção na hipótese em que o colaborador estiver agindo de má-fé. Isso porque o § 6º em estudo estatui que nenhuma das informações ou provas apresentadas “de boa-fé” poderão ser utilizadas para qualquer finalidade. Imaginemos, por exemplo, que durante a fase de tratativas o colaborador apresente provas contra determinado investigado, o indicando como líder da organização criminosa com a finalidade de se excluir dessa posição, buscando, assim, a obtenção do acordo de não persecução penal (art. 4º, § 4º, da LOC). Se a investigação demonstrar que, na verdade, o colaborador seria o líder da organização, as provas apresentadas contra o terceiro poderiam ser utilizadas, haja vista terem sido apresentadas de má-fé.
Outro exemplo seria o caso em que o colaborador, durante as tratativas, continue envolvido com a organização criminosa e concorrendo para a prática de novos crimes. Ora, resta evidente que nesse cenário sua postura colaborativa não é pautada na boa-fé imprescindível às negociações. Em nosso sentir, essa previsão legal funciona como uma espécie de sanção ao colaborador que agir de má-fé, viabilizando, destarte, a utilização das provas apresentadas por ele, inclusive as autoincriminatórias.
Em reforço a essas conclusões, salienta-se que o mesmo § 6º dispõe que as provas apresentadas pelo colaborador não poderão ser utilizadas para qualquer finalidade quando o acordo não se concretizar por “iniciativa do celebrante”. Com efeito, nas hipóteses em que o pacto não se concretizar por culpa do próprio colaborador, as provas e informações por ele apresentadas poderão, sim, ser utilizadas pelos órgãos de persecução penal.
Por obviedade, a utilização desse material probatório só será possível se confirmada a má-fé do colaborador. Se, por outro lado, o acordo não se concretizar por uma opção legítima da defesa, entendendo, por exemplo, que os agentes estatais não dispõem de provas suficientes sobre o seu envolvimento na organização criminosa, nenhuma informação prestada poderá ser utilizada.
Após todas essas considerações, resta evidente a importância desse novo artigo 3º-B, § 6º, da LOC, que ao permitir a utilização das provas e informações prestadas pelo colaborador durante as tratativas quando comprovada sua má-fé, acaba promovendo os valores de lealdade e boa-fé que devem pautar o instituto, sancionando, consequentemente, o criminoso que tentar se valer da colaboração com fins escusos. Ciente de que poderá estar produzindo provas contra si mesmo, o colaborador tende a agir de forma verdadeira e com a real intenção de contribuir com a Justiça.
Por tudo isso, esperamos que com todas essas inovações legislativas a colaboração premiada possa, cada vez mais, ser utilizada como técnica de investigação imprescindível para o desmantelamento de organizações criminosas.
[1] Vale registrar que o fato de o colaborador voltar a delinquir constitui motivo para a rescisão do pacto cooperativo, o que apenas reforça a necessidade das autoridades se manterem em alerta, sem descuidar de sua investigação.