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A inconstitucionalidade do Projeto de Lei 2578/2020

Agenda 05/06/2020 às 12:02

O Projeto de Lei 2578/2020 deseja definir o gênero com base em características biológicas, porém, é necessário a observação de normas legais para averiguar a constitucionalidade do PL.

INTRODUÇÃO

O deputado Filipe Barros, do Partido Social Liberal, apresentou no corrente ano o Projeto de Lei 2578/2020, que determina que o sexo biológico, as características sexuais primárias e cromossômicas definam o gênero dos brasileiros. Na justificação do PL, o Deputado argumentou que o termo gênero tem recebido diversos significados e favorece grupos de pressão hostis à instituição da família, fazendo ligação da mudança de gênero com grupos extremistas do movimento feminista. Contudo, a legislação se adapta as mudanças temporais, sendo necessária a avaliação do entendimento constitucional vigente, para o conhecimento da constitucionalidade do Projeto de Lei em questão.

1 - Do Projeto de Lei 2578/2020

No dia 12/05/2020, foi apresentado o Projeto de Lei n. 2578/2020, pelo Deputado Filipe Barros (PSL/PR), que decide que o sexo biológico, bem como as características sexuais primárias e cromossômicas decidam o gênero do indivíduo no Brasil, como pode ser observado no referido PL:

“Determina que tanto o sexo biológico como as características sexuais primárias e cromossômicas definem o gênero do indivíduo no Brasil.

“Art. 1º. O gênero de um indivíduo é baseado no sexo biológico ao nascer e nas características sexuais primárias e cromossômicas.

Parágrafo Único. Entendem-se como características sexuais primárias e cromossômicas aquelas que o indivíduo possui no momento de seu nascimento.

Art. 2º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. “

Na justificação, Filipe Barros afirmou que:

“Nas últimas décadas o termo “gênero” tem recebido significados múltiplos, provocado grandes confusões no campo legislativo e favorecido grupos de pressão hostis à instituição da família. Convém, portanto, especificálo no texto da lei, de modo a não permitir que o mesmo seja usado intencionalmente de forma ambígua, deturpando os autênticos propósitos dos legisladores quando o invocam.

No passado, o termo sempre foi visto como inofensivo, utilizado, no campo científico, simplesmente para classificar organismos vivos num nível mais amplo do que “espécie”, e, de forma geral, apenas como um sinônimo mais polido para sexo biológico.

Essa situação mudou no século XX, quando ideólogos ligados às tendências mais extremistas do feminismo mundial, estrategicamente, passara a usar o termo com um significado inventado por eles mesmos. Segundo os defensores desse novo conceito, gênero seria apenas um papel social flexível e fluido que cada um representaria como e quando quisesse, independentemente do que a biologia determine como tendências masculinas e femininas. Os críticos dessa teoria - que é desprovida de embasamento científico sério e contradiz diretamente descobertas no campo das neurociências - a chamam de ideologia de gênero. “ [1]

2 - Da Corte Interamericana de Direitos Humanos: OC 24/2017

A Organização dos Estados americanos, instituição internacional a qual o Brasil faz parte, criou em 1969 o pacto de San José da Costa Rica, que é ratificado pelo Brasil e  também pode ser chamado de Convenção Interamericana de Direitos Humanos. A CIDH tem grande importância na defesa de direitos e garantias fundamentais, principalmente por criar um Tribunal para a proteção dos Direitos Humanos: a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Corte realiza a interpretação de normas do tratado, por deter competência consultiva, que pode ser pleiteada por qualquer um dos estados membros.

No ano de 2017 um parecer consultivo foi pedido pelo Estado da Costa Rica, tratando sobre a identidade de gênero, igualdade e não discriminação. A intenção do pedido era a manifestação da Corte para a interpretação dos artigos 1°, 11.2, 18, 24, observando a compatibilidade com o artigo 54 do Código Civil da Costa Rica, para a modificação do nome através da identidade de gênero, como é possível observar nos seguintes artigos:

“Artigo 1.  Obrigação de respeitar os direitos

            1.Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

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            2.Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

Artigo 11.  Proteção da honra e da dignidade

            2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.

Artigo 18.  Direito ao nome

            Toda pessoa tem direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes.  A lei deve regular a forma de assegurar a todos esse direito, mediante nomes fictícios, se for necessário.

Artigo 24.  Igualdade perante a lei

            Todas as pessoas são iguais perante a lei.  Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei. “  

O art. 54 do Código Civil da Costa Rica estabelece o seguinte: "Todo costarriquenho inscrito no Registro Civil pode mudar seu nome com a autorização do Tribunal, o que será feito mediante os procedimentos da jurisdição voluntária promovida para esse fim. ” [2]

Na Opinião Consultiva, a corte tratou da importância do nome para a identidade do ser humano na sociedade:

 “o nome como atributo da personalidade é uma expressão da individualidade e tem como finalidade afirmar a identidade de uma pessoa ante a sociedade e nas atuações perante o Estado. Com isso se procura garantir que cada pessoa possua um sinal único e singular frente aos demais, com o qual possa se identificar e se reconhecer como tal. Se trata de um direito fundamental inerente a todas as pessoas pelo simples fato de sua existência. Além disso, esta Corte indicou que o direito ao nome reconhecido no artigo 18 da Convenção e também em diversos instrumentos internacionais, constitui um elemento básico e indispensável da identidade de cada pessoa, sem o qual não pode ser reconhecido pela sociedade nem registrado ante o Estado. “ [3]

A Corte concedeu o parecer sobre a mudança e nome como:

“A mudança de nome, a adequação da imagem, assim como a retificação à menção do sexo ou gênero, nos registros e nos documentos de identidade, para que estes estejam de acordo com a identidade de gênero autopercebida, é um direito protegido pelo artigo 18 (direito ao nome), mas também pelos artigos 3° (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 7.1 (direito à liberdade) e 11.2 (direito à vida privada), todos da Convenção Americana. Consequentemente, em conformidade com a obrigação de respeitar e garantir os direitos sem discriminação (artigos 1.1 e 24 da Convenção), e com o dever de adotar as disposições de direito interno (artigo 2° da Convenção), os Estados estão obrigados a reconhecer, regular e estabelecer os procedimentos adequados para tais fins. ” [4]

3 - Da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275

No ano de 2018, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ADI 4275, reconhecendo a mudança prenome e do sexo no registro civil para pessoas transgênero, em suas decisões, os Ministros destacaram a Opinião Consultiva 24/2017, realizada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que de acordo com o art. 5º, § 3º da Constituição Federal, tem força de emenda constitucional, assim, conforme é definido pela Corte:

“O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa; ii) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo “transgênero”; iii) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial; iv) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos. “ [5]

Foi relatado ainda que:

“1. O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero. 2. A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. 3. A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. 4. Ação direta julgada procedente. “ [6]

4 - Conclusão

A Constituição Federal é clara em seu art. 5º, § 3°, quando afirma que tratados internacionais que versem sobre direitos humanos e forem aprovados no ordenamento legal, terão força de emenda constitucional. Portanto, é observado o parecer da Corte Interamericana, que é um tratado de direitos humanos o qual o Brasil faz parte, na intenção de reconhecer a mudança de nome para transexuais como direito fundamental para a constituição singular de cada ser humano. Assim, o Supremo Tribunal Federal, que exerce a função de guardião da Constituição, se baseou na opinião da CIDH para decidir sobre a mudança do prenome e do sexo no registro civil de pessoas trans.

O Projeto de Lei 2578/2020 trata então, de matéria inconstitucional, por dois motivos; o primeiro pela interpretação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que é tratado com força de emenda constitucional, no sentido de interpretar os artigos da Convenção como permissivos para a mudança de nome; o segundo pelo fato do Supremo Tribunal Federal já ter julgado a matéria na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275, se baseando também no parecer consultivo emitido pela Corte Interamericana, e preservando as normas legais previstas na Constituição Federal. Deve então, ser respeitada a Carta Magna, para a efetivação dos direitos fundamentais que constituem a República Federativa do Brasil.

REFERÊNCIAS

[1]https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1892753&filename=PL+2578/2020

[2] http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_por.pdf (pág 4)

[3] http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_por.pdf (Pág 48)

[4] http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_por.pdf (Pág 51)

[5] (STF. Tese definida no RE 670.422, rel. min. Dias Toffoli, P, j. 15-8-2018, Tema 7611.)

[6]https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADI%204275%22&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true

Sobre o autor
Pedro Vitor Serodio de Abreu

LL.M. em Direito Econômico Europeu, Comércio Exterior e Investimento pela Universität des Saarlandes. Legal Assistant na MarketVector Indexes.

Informações sobre o texto

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